Este foi o ano mais difícil de minha carreira como professor. Por isso, quero fazer menção, nesta postagem, apenas àquilo que realmente foi bom. Dadas as dificuldades e os problemas enfrentados, as conquistas se tornam ainda mais valorosas.
Gostaria de terminar 2009 pensando em que iniciativas posso manter para 2010. A ideia, na verdade, é citar apenas as ações que podem ser repetidas ou desenvolvidas, e as apostas que ainda não descartei para um trabalho a longo prazo. Por isso, trata-se de uma "retroexpectativa"*: falo do que passou como ponte para o que pretendo.
Uma das experiências que se mostraram válidas foi o sistema de pontuação, que aperfeiçoei no decorrer do ano. Adaptado da didática da professora Yumi Kodama, minha colega de trabalho, o sistema conseguiu o efeito de estimulação por reforço positivo que eu esperava. Os alunos demonstraram maior empenho e as atividades que realizaram ganharam mais visibilidade para eles mesmos, para o grupo e para o professor. Consegui atenuar o problema da desigualdade de desempenhos como fator de desestímulo ao criar equipes mistas e estabelecer pontuações para a classe, que dependiam da participação de todos. Alunos e pais gostaram da ideia e a encamparam, parabenizando-me por tê-la colocado em prática. Ainda preciso corrigir alguns problemas para 2010: primeiro, a tendência a mecanizar a realização das atividades pontuadas (os problemas de compreensão de leitura e reflexão limitam a gradação paulatina das dificuldades, que seria necessária); segundo, a agressividade competitiva advinda da comparação de desempenhos (que foi, na verdade, muito menor do que eu supunha, mas que existiu em alguns casos); terceiro, a implementação de atividades coletivas mais criativas e calcadas em recursos mais atraentes.
Outra das coisas que quero manter para o ano que vem é o ritmo de estudos que adquiri por ocasião do concurso da Prefeitura. Mesmo sabendo que deixei de ler quase um terço da bibliografia, percebi que consegui informações muito úteis e pude refletir sobre minha prática sob outros pontos de vista. Senti muita falta de referencial teórico para desenvolver meu trabalho durante todo o ano, pois acho que as horas de trabalho coletivo não prestigiaram essa demanda. O concurso salvou meu ano de ser uma completa estagnação nesse sentido. Se eu puder manter o mesmo nível de exigência pessoal de atualização, creio que poderei trazer mais e melhores novidades para a escola.
Uma iniciativa que pretendo implementar em definitivo no ano que vem é a postagem constante de atividades, eventos e realizações dos alunos no blog da escola. Penso que esse blog deve ser independente, e gerenciado pelos coordenadores e pela direção. Consegui construí-lo, mas faltou tempo para postar e, principalmente, conhecimento do amparo legal para utilização de fotos dos alunos nas várias atividades desenvolvidas. É perfeitamente possível mudar tudo isso rapidamente, com a ajuda dos meus colegas mais "internéticos".
Do ponto de vista do conteúdo, este foi o primeiro ano, em toda a minha vida profissional no ensino fundamental, em que consegui vencer todos os pontos programados para todas as turmas. Foi uma experiência e tanto, mas sinto que isso acabou custando caro em termos de aprofundamento e atividades de leitura, que seriam o principal objetivo da minha prática. Duas turmas foram severamente prejudicadas, pois ficaram sem livro o ano inteiro. Nas outras, consegui, até desenvolver um dia de leitura, sistemático e aberto à participação de todos. Mas ainda é pouco. As carências são enormes, precisamos de mais material didático escrito, livros, apostilas, textos, etc. As crianças deveriam ficar em definitivo com os livros didáticos distribuídos. Os pais deveriam assinar termos de responsabilidade sobre esse material, comprometendo-se a repô-los no caso de perda. Livros deveriam ser o recurso por excelência da educação, ainda mais com o investimento que o governo vem fazendo na melhoria das habilidades de leitura e escrita. Mas não posso contar com isso, e devo rever as práticas no sentido de compensar essas carências estruturais.
Outro ponto que pretendo rever no próximo ano é a utilização de recursos audiovisuais. Praticamente só os utilizei no último bimestre, mas pude perceber que houve boa receptividade. Acredito que posso criar uma dinâmica mensal ou bimestral com filmes e músicas, como sempre fiz em Sala de Leitura. Este ano, optei pelo conteúdo escrito em detrimento dessa parte; não pretendo fazer isso ano que vem. Quero experimentar um investimento maior na ponte entre imagens e palavras, com todos os cuidados que sei que esse trabalho implica. Continuo achando que a escola deve ser o ambiente privilegiado da cultura escrita, mas o audiovisual bem utilizado tem condições de colaborar nesse sentido, como demonstraram minhas experiências com o filme "Olga".
Saldo? Alunos que nada faziam começaram a trabalhar nas minhas aulas. Tenho o respeito e o carinho da comunidade, em reconhecimento à seriedade de meu trabalho. Raramente vivencio problemas de desrespeito explícito ou agressão, e percebi mudanças significativas em termos de postura de leitura nas classes onde consegui estabelecer as dinâmicas citadas. Acho que tudo valeu a pena, mesmo os erros cometidos.
A tudo isso devem ser acrescidos dois fatos importantes, externos ao trabalho na escola, mas que podem influenciar muito minha vida de professor nos próximos meses: a aprovação no concurso para coordenação e o avançado encaminhamento de minha licenciatura em Pedagogia. Pode ser que essas sementes desabrochem em 2010, fazendo com que eu tenha de recomeçar a vida profissional numa outra situação. Apesar disso, estou certo de que não sairei do zero. Tudo o que aprendi e conquistei em meio a tantas dificuldades e problemas carregarei como um trunfo moral e intelectual.
Que venham os novos desafios!
* Perdoem-me, mas achei a palavra engraçadinha e resolvi colocá-la no título da postagem. Não levem a sério o processo de composição, não tem nenhum rigor morfológico, nem nenhuma lógica profunda embutida. :-)
domingo, 27 de dezembro de 2009
"Retroexpectativa" 2009-2010
Marcadores:
alunos,
avaliação,
cotidiano,
escola,
perspectiva,
sala de aula,
valorização
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Feliz Natal 2009 e Feliz Ano Novo 2010
A todos os que aqui estiveram durante 2009 e aos que aparecerão fuuramente, desejo um Feliz Natal e um excelente ano de 2010.
Grande abraço.
Grande abraço.
domingo, 20 de dezembro de 2009
Em linhas gerais, o que acho da prova dos OFAs
Acho muito complicado o governo do Estado, de um ano para o outro, decidir que os profissionais que vêm atuando em caráter precário e temporário nas escolas precisam comprovar, numa prova de 80 questões, se têm ou não habilitação para continuarem trabalhando dentro da mesma precariedade de contrato e fazendo basicamente aquilo que já faziam. É realmente estranho pensar que esses indivíduos, que ganham uma miséria por quebrar o galho da rede quando faltam professores nas escolas, podem passar a ser considerados, do dia para a noite, incapazes de fazer o que fizeram por anos, com anuência e até incentivo do poder público. As pessoas não estão prestando provas, nos últimos dias, para ingressar num sistema de educação pública, fazendo parte de sua estrutura e participando de suas decisões. As pessoas estão prestando provas para mostrarem que podem, se for o caso e se convier à Secretaria de Educação, ser contratadas por esse sistema por um determinado período de tempo. Se elas decorarem as propostas de ensino e o resto da bibliografia e acertarem as 80 questões (vejam bem, 80 questões em 4 horas), estarão atestando apenas que podem receber essa chance do Estado, mas ainda não farão jus a aparecer no seleto rol dos concursados, com estabilidade, possibilidades de escolha mais amplas e garantias de, pelo menos, continuidade do trabalho. É isso mesmo: o sujeito pode acertar todas as 80 questões e continuar sem saber sobre o que acontecerá com ele no anos posteriores. Não consigo acreditar que haja alguma boa vontade nesse processo. Para mim, é pura exclusão, pura necessidade de eliminar, de rotular, de classificar. Pura economia da educação, tentativa de evitar ao máximo a caracterização de vínculo do profissional. Até porque saber as propostas e o resto da bibliografia de cor não garante qualidade de ensino, nem sequer atesta capacidade de aplicá-las com competência. E eu até diria que aplicar as propostas com competência também não garante qualidade de ensino, porque as propostas não são O ensino, mas apenas UMA PARTE dele.
Por tudo isso, penso que o Estado deveria mobilizar-se para abertura de concursos, para preencher as lacunas da rede com profissionais que tivessem, no mínimo, a garantia da continuidade de seu trabalho. Garantida a continuidade, deveria-se trabalhar a tão propalada e tão mal conduzida formação contínua. Aí, sim, o Estado poderia contar com um corpo de trabalho sólido e apto a estabelecer e gerenciar bons processos e projetos a longo prazo. Mas, do jeito que foi feita, essa prova de OFA é uma crueldade: seleciona mal, e não garante nem o básico do básico para quem é selecionado.
-------------------------------------------------------------------------------------
A expressão "resto da bibliografia" foi adicionada posteriormente, a partir de um comentário da Patrícia, para deixar claro que entendi que a prova do Estado exigia mais que a proposta curricular. O que apenas reforça minha tese sobre a crueldade do exame.
Por tudo isso, penso que o Estado deveria mobilizar-se para abertura de concursos, para preencher as lacunas da rede com profissionais que tivessem, no mínimo, a garantia da continuidade de seu trabalho. Garantida a continuidade, deveria-se trabalhar a tão propalada e tão mal conduzida formação contínua. Aí, sim, o Estado poderia contar com um corpo de trabalho sólido e apto a estabelecer e gerenciar bons processos e projetos a longo prazo. Mas, do jeito que foi feita, essa prova de OFA é uma crueldade: seleciona mal, e não garante nem o básico do básico para quem é selecionado.
-------------------------------------------------------------------------------------
A expressão "resto da bibliografia" foi adicionada posteriormente, a partir de um comentário da Patrícia, para deixar claro que entendi que a prova do Estado exigia mais que a proposta curricular. O que apenas reforça minha tese sobre a crueldade do exame.
Marcadores:
concurso,
educação,
OFA,
perspectiva,
público,
valorização
domingo, 13 de dezembro de 2009
Fim de ano letivo
Ficar três semanas sem postar pode significar, para muitos blogueiros, um desrespeito aos seus leitores, sob forma de desconsideração. No caso deste blog, que é voltado para professores e feito por um deles, creio poder contar com a compreensão dos que me acompanham. Fim de ano letivo, fechamento de notas e conceitos, mil diários para finalizar, mil avaliações para fazer, enorme quantidade de formulários para preencher, dois empregos, notas que saíram erradas, alunos que se consideram injustiçados... e muito mais, tudo isso tira a disponibilidade de qualquer cristão.
Ainda assim, eu publicaria mais postagens, se um acontecimento violento não tivesse me derrubado emocionalmente há duas semanas. Num microdesfile de moda das alunas da escola, uma série de pequenas atitudes desrespeitosas toleradas acabou culminando na agressão física a dois funcionários do quadro de apoio, por parte de dois diferentes alunos, em dois momentos distintos.
Não sei lidar com violência, essa é a minha maior limitação. Não tive reação lógica nem emocional àquilo que vi, e perdi completamente o centro. Nas duas semanas seguintes, falei pouco, sofri muito. Preenchi o que era para preencher, respondi ao que me perguntaram, participei dos conselhos a que era obrigado. Minha resistência caiu, fiquei doente, deprimido, gripado, sem vontade, com todos aqueles sintomas que caracterizam a síndrome da desistência. Pensei e repensei minha condição de professor, pensei em sair, pensei ficar, pensei em lutar até a morte (ou a surra), pensei em fazer outra coisa, pensei em abrir novas alternativas. Tive vontade de fugir, sinceramente. E - obviamente - não postei.
E não me sinto menor por causa disso.
Agora passou, e posso retomar a trajetória com alguma lucidez. Mas acho que ainda não tenho estômago para escrever uma postagem com os detalhes do que aconteceu. Precisarei de mais tempo para deglutir. O único gosto que ainda carrego na boca em relação ao espisódio é o do desamparo, muito amargo para quem depende de um trabalho em equipe. Um dia, voltarei para escrever mais aqui. Por enquanto, é isso.
Ainda assim, eu publicaria mais postagens, se um acontecimento violento não tivesse me derrubado emocionalmente há duas semanas. Num microdesfile de moda das alunas da escola, uma série de pequenas atitudes desrespeitosas toleradas acabou culminando na agressão física a dois funcionários do quadro de apoio, por parte de dois diferentes alunos, em dois momentos distintos.
Não sei lidar com violência, essa é a minha maior limitação. Não tive reação lógica nem emocional àquilo que vi, e perdi completamente o centro. Nas duas semanas seguintes, falei pouco, sofri muito. Preenchi o que era para preencher, respondi ao que me perguntaram, participei dos conselhos a que era obrigado. Minha resistência caiu, fiquei doente, deprimido, gripado, sem vontade, com todos aqueles sintomas que caracterizam a síndrome da desistência. Pensei e repensei minha condição de professor, pensei em sair, pensei ficar, pensei em lutar até a morte (ou a surra), pensei em fazer outra coisa, pensei em abrir novas alternativas. Tive vontade de fugir, sinceramente. E - obviamente - não postei.
E não me sinto menor por causa disso.
Agora passou, e posso retomar a trajetória com alguma lucidez. Mas acho que ainda não tenho estômago para escrever uma postagem com os detalhes do que aconteceu. Precisarei de mais tempo para deglutir. O único gosto que ainda carrego na boca em relação ao espisódio é o do desamparo, muito amargo para quem depende de um trabalho em equipe. Um dia, voltarei para escrever mais aqui. Por enquanto, é isso.
Marcadores:
agressão,
assédio moral,
burnout,
condições de trabalho,
cotidiano,
escola,
violência
sábado, 21 de novembro de 2009
Estilo Hepático de Gestão (EHG) - conceito e pressupostos
Estava para escrever esta postagem há muito tempo, mas a preguiça não deixou. Hoje, resolvi encarar. Lá vai.
A expressão "desopilar o fígado" significa algo como afastar as preocupações e problemas. A palavra "desopilar" significa desobstruir, aliviar. O fígado aparece, nesse caso, como centro físico das preocupações no corpo humano. Pelo que pesquisei, a função que ele ocupava na medicina antiga era a de centro das funções vitais. A bílis, líquido por ele produzido, era associada à disposição de espírito, ao humor - quando negra, por exemplo, estaria ligada à depressão e à melancolia.
Uma das coisas de que mais precisamos quando somos professores é desopilar o fígado. Para superar os contratempos e os problemas do dia a dia, temos de manter uma reserva considerável de bom humor e tolerância, ainda mais porque lidamos com pessoas e, em especial, com crianças, para quem um sorriso ou um grito são muitas vezes mais marcantes que um raciocínio brilhante. Será a partir dessa expressão popular e de sua associação aos conhecimentos médicos antigos que construiremos, nesta postagem, a ideia de um estilo de administração escolar capaz de obstruir o fluido vital de qualquer criatura movente, ao qual chamaremos Estilo Hepático de Gestão, ou EHG.
O EHG desenvolveu-se no decorrer da história da educação brasileira, ganhou notoriedade na fase do tecnicismo-militarismo e criou estruturas de funcionamento que transcendem os princípios políticos de quem esteve, está ou estará no poder, seja na Prefeitura, no Estado, na esfera federal ou mesmo no âmbito das administrações particulares. Constituído de paradigmas próprios e modos de atuação consagrados pela prática cotidiana, o EHG se transformou em uma espécie de regra não oficial de funcionamento das instituições educacionais. Tem havido, nas últimas décadas, um ainda tímido esforço de transformação do EHG em norma declarada e legitimamente estabelecida, esforço que esbarra nas contradições entre seus princípios e os ideais de educação que por eles estariam sendo protegidos. Além disso, deve-se considerar o fato de que, enquanto a Administração Científica tem insistentemente apontado para a necessidade de promover a criatividade, a participação, o espírito coletivo, a deshierarquização e a desburocratização da rotina de trabalho, o EHG aponta para um reforço da hierarquia, da burocracia, da tensão no ambiente do trabalho, da limitação das possibilidades criativas dos professores, o que soa atrasado e ineficiente. Ainda assim, é forçoso reconhecer que ele já está estabelecido e que várias de suas normas tornaram-se virtualmente inquestionáveis, mesmo com todos os desconfortos que acarretam.
E como exatamente funciona esse tal de EHG? Para esclarecer a estrutura lógica dessa forma de administrar, vamos recuperar a metáfora que utiliza as partes do corpo humano. Consideremos três dos órgãos mais importantes de nossa constituição física: o já citado fígado, o cérebro, e o coração. Consideremos as tradicionais associações: do cérebro com a razão, do coração com as emoções e sentimentos, e do fígado com o humor.
Há estilos de gestão que conquistam as pessoas pela razão, convencendo-as de que trabalhar pelos objetivos estabelecidos será melhor para todos, e estimulando-as a analisar, discutir e divulgar os porquês de cada determinação recebida. Esses estilos são caracteristicamente cerebrais, e se baseiam num esforço de constante formação dos profissionais, por meio do diálogo e da reflexão sobre as práticas e as necessidades de mudança.
Há estilos, por sua vez, que procuram conquistar as pessoas persuadindo-as de que elas têm valor, de que são importantes na estrutura, de que farão diferença para as crianças, e estimulando-as a sentirem-se parte de um grupo coeso, integrado, que reconhece o quanto são imprescindíveis. Esses estilos estão ligados ao coração, e se baseiam em realizações de encontros, projetos, excursões, reuniões, eventos que unam os integrantes da comunidade escolar e permitam relação mais humana e afetuosa entre os mestres.
Há, entretanto, um momento em que se considera que é preciso oferecer soluções rápidas para problemas persistentes. Há um momento em que pessoas desligadas do cotidiano da escolar passam a acreditar que podem administrá-la da mesma forma que qualquer outra organização social. Há um momento em que a pressão política por resultados numericamente verificáveis sobrepõe-se à noção de que educação é um processo, e que todo processo é mais amplo e complexo que a mera enunciação de seus resultados. Nesse momento, desaparecem todas as evidências de que o professor é um trabalhador e um ser humano. O professor passa a ser apenas um aplicador de soluções já pensadas. O professor passa a ser uma peça de um mecanismo, podendo funcionar bem ou mal e, nessa mesma medida, ser remodelada ou simplesmente substituída. O professor passa a ser um instrumento de uma política de Estado, e não um construtor e debatedor inteligente das concepções de cidadania. Nesse momento, não é preciso convencer o professor de nada, nem racionalmente, nem emocionalmente. Nesse momento, é preciso garantir o menor risco possível de que ele faça algo que não seja o que lhe foi incumbido pelos técnicos e estudiosos. E isso se faz pelo medo. Pelo fígado. Pela destruição do humor.
Quando se considera perda de tempo convencer as pessoas a seguir determinados caminhos ou motivá-las e valorizá-las a fazê-lo, resta apenas a alternativa de obrigá-las a tal. É a coisa do "manda quem pode, obedece quem tem juízo". É aí que começa o Estilo Hepático de Gestão. As ordens são ordens, não devem ser discutidas, não podem ser contestadas. Posso chamá-las disfarçadamente de recomendações, orientações, instruções, mas no fundo são sempre ordens. Não admitem contraditório. Não podem ser adpatadas nem reinterpretadas. Devem ser cumpridas. Lei é lei. Palavra de superior é lei. Quando algo está fora da lei, ou da palavra do superior, é um problema assustador: não pode ser resolvido pelo bom senso, mas só pela intervenção de quem está acima.
Acontece, porém, que no serviço público os trabalhadores conseguiram, depois de anos e anos de luta, algumas garantias que dão margem à recusa de processos de intimidação. Nós, professores da Prefeitura, por exemplo, temos estabilidade no emprego, e temos carreira. Não é fácil nos ameaçar, porque contamos com uma série de garantias estatutárias, entre elas a autonomia de cátedra, a necessidade de estabelecimento de longo processo administrativo para que percamos um cargo, e a possibilidade de mudarmos de escola, de região, de atividade quando nos convém ou quando precisamos de novos ares.
Há, portanto, um impasse: como conduzir o professor a um caminho que ele não sabe ou não quer trilhar se não posso mandá-lo embora a meu bel-prazer? A resposta não precisa de muita reflexão: se não posso demitir o funcionário, posso perturbá-lo a tal ponto de tornar difícil para ele não fazer o que estou mandando. Posso criticá-lo, posso atacá-lo, posso fazer cobranças. Posso, em suma, mirar seu fígado. Posso tentar causar um incômodo tal que, para se ver livre dele, e não por acreditar no que faz, o funcionário aja como pretendo e determino.
E como é possível perpetrar tais incômodos nas situações de trabalho? Não é tão fácil assim. Alguns cuidados são necessários, porque agredir as pessoas, acusá-las abertamente, achacá-las, pode caracterizar o chamado assédio moral, e isso pode desmoralizar e desautorizar aquele que assedia. Em primeiro lugar, é necessário transformar todas as ordens em documentos, circulares, papéis para serem assinados, porque o papel aceita tudo, não tem cara, não pode ser identificado com um indivíduo, não tem compromisso com uma "identidade" da gestão, ou do gestor, ou da política implementada. Em segundo lugar, é preciso apresentar todas as ordens como se fossem pedidos desesperados dos próprios professores. Isso exige que, nas reuniões de planejamento, todas as discussões se encaminhem para um documento final que apenas confirme o que se queria impor, mas dessa vez com a desatenta ou conivente assinatura de todos os profissionais, como se eles concordassem com tudo e tudo subscrevessem. Depois disso, deve-se esfregar, sempre que possível, esses documentos, pseudo-documentos e escritos em geral na cara dos professores, mas sempre com sutileza, sorrisos e feição de quem não tem intenção nenhuma de fazer o que está fazendo. Deve-se, além disso, utilizar as palavras de forma a fazer as pessoas se sentirem mal, incomodadas, insuficientes, mas tudo isso de forma oblíqua, dissimulada, capituliana. Por exemplo, dizer que o desempenho da escola é insatisfatório, que os professores precisam rever suas práticas ou que outras soluções poderiam resolver a questão de disciplina com determinado aluno devem ser formas polidas de dizer que os professores não ensinam direito, que a didática daquele profissional é uma droga e que o professor tem mais é que se virar para lidar com um aluno x ou y. Deve-se usar também a comunicação corporal: cara feia, semblante pesado, seriedade ameaçadora, mau humor permanente, postura arrogante e fechada ao diálogo, sinais de enfado com perguntas incovenientes, sorrisos premiando a obediência, suspiros de impaciência condenando a não submissão. Por fim, deve-se garantir um clima de constante ameaça, com visitas surpresa à escola e às salas de aula, possibilidade constante de conferência sem aviso dos diários de classe e livros de registro, e falta de clareza nos critérios de aprovação ou reprovação de determinados comportamentos, para minar a segurança psicológica do professor e bloquear a construção de sua autoestima, incompatével com sua subserviência.
O EHG tem, além dessas características, a peculiaridade de ser um sistema hierarquicamente rígido. Ou seja, a ordem do ataque ao fígado do subordinado tem de ser rigorosamente respeitada. Na Prefeitura: o secretário ataca o fígado dos assessores. Os assessores atacam o fígado dos supervisores. Os supervisores enegrecem a bílis dos coordenadores. Os coordenadores comem o fígado dos professores. E os professores, contra todas as crenças que os levaram ao magistério, terminam por roer o fígado dos alunos. Mas o supervisor não dá conta, por exemplo, de opilar o fígado de milhares de professores numa determinada região. Isso fica a cargo dos coordenadores. São eles que devem dizer aquela famosa frase: vamos fazer tudo direitinho que o supervisor vem na escola hoje. E isso mesmo que ele não venha, nem nunca tenha sequer imaginado essa possibilidade. No EHG, as coisas devem funcionar porque as pessoas podem brigar, e não porque esse funcionamento conduza a um processo mais eficiente. Quando se gerencia pelo medo, é preciso alimentá-lo, reiterá-lo, promovê-lo. É preciso espalhar boatos, assustar as pessoas, tirá-las da tranquilidade natural.
O EHG existe já há muito tempo, assumindo dimensões de assédio moral, quando transbordante, ou de jogos imbecilóides de manipulação, quando sutil. Seu advento contraria um dos princípios mais básicos da LDB, o de autonomia progressiva e participação democrática, desenvolvido nos artigos 14 e 15 da lei. Entretanto, como não funciona como norma explícita, e como toma todo o cuidado para não traduzir seus paradigmas em legislações, pareceres, ou orientações textuais, é muito difícil localizá-lo. Ele pode reger toda a formação e gerenciamento de um projeto pedagógico sem nunca deixar, nos registros desse projeto, marcas de sua influência. Para superá-lo, é preciso surpreendê-lo em ação, no pulo do gato, no momento em que ele aparece e tenta imediatamente se desfazer no ar, como se nunca tivesse se mostrado. Na teoria, não temos que fazer nada do que já não fazemos todo dia quando uma autoridade nos visita. Na prática, o EHG estabeleceu a norma de que precisamos maquiar a escola. Na teoria, não temos de ter medo de expor nossas opiniões divergentes em relação àquelas que vêm das instâncias superiores. Na prática, o EHG encontrou formas sutis de nos desestimular a proferi-las. Na teoria, nossas aulas e nosso esforço de educadores são mais importantes que os registros que eventualmente deixamos de efetivar em função do tumulto cotidiano. Na prática, o EHG conseguiu inverter essa ordem, porque precisa dos aspectos burocráticos como indicadores políticos e porque pode utilizá-los como parâmetro documental de medidas punitivas. Na teoria, temos autonomia na avaliação dos alunos. Na prática, o EHG tira do professor qualquer possibilidade nesse sentido quando um pai liga para a coordenadoria - bicando o fígado do supervisor - e o próprio supervisor se encarrega - para evitar que o secretário bique seu fígado - de mudar uma avaliação da qual nunca participou. Nada disso se registra, nada disso vai para o papel, nada disso se declara, mas tudo isso está aí, constituindo um corpo consubstanciado de pequenas verdades que, por ser uma forma de agir essencialmente distinta de outras possíveis, podemos chamar de estilo, e por ser direcionada ao que entendemos como nossa disposição vital para o trabalho, nosso humor, podemos chamar de hepático. Só não sei se podemos chamar isso de gestão. Mas isso fica para outra postagem.
A expressão "desopilar o fígado" significa algo como afastar as preocupações e problemas. A palavra "desopilar" significa desobstruir, aliviar. O fígado aparece, nesse caso, como centro físico das preocupações no corpo humano. Pelo que pesquisei, a função que ele ocupava na medicina antiga era a de centro das funções vitais. A bílis, líquido por ele produzido, era associada à disposição de espírito, ao humor - quando negra, por exemplo, estaria ligada à depressão e à melancolia.
Uma das coisas de que mais precisamos quando somos professores é desopilar o fígado. Para superar os contratempos e os problemas do dia a dia, temos de manter uma reserva considerável de bom humor e tolerância, ainda mais porque lidamos com pessoas e, em especial, com crianças, para quem um sorriso ou um grito são muitas vezes mais marcantes que um raciocínio brilhante. Será a partir dessa expressão popular e de sua associação aos conhecimentos médicos antigos que construiremos, nesta postagem, a ideia de um estilo de administração escolar capaz de obstruir o fluido vital de qualquer criatura movente, ao qual chamaremos Estilo Hepático de Gestão, ou EHG.
O EHG desenvolveu-se no decorrer da história da educação brasileira, ganhou notoriedade na fase do tecnicismo-militarismo e criou estruturas de funcionamento que transcendem os princípios políticos de quem esteve, está ou estará no poder, seja na Prefeitura, no Estado, na esfera federal ou mesmo no âmbito das administrações particulares. Constituído de paradigmas próprios e modos de atuação consagrados pela prática cotidiana, o EHG se transformou em uma espécie de regra não oficial de funcionamento das instituições educacionais. Tem havido, nas últimas décadas, um ainda tímido esforço de transformação do EHG em norma declarada e legitimamente estabelecida, esforço que esbarra nas contradições entre seus princípios e os ideais de educação que por eles estariam sendo protegidos. Além disso, deve-se considerar o fato de que, enquanto a Administração Científica tem insistentemente apontado para a necessidade de promover a criatividade, a participação, o espírito coletivo, a deshierarquização e a desburocratização da rotina de trabalho, o EHG aponta para um reforço da hierarquia, da burocracia, da tensão no ambiente do trabalho, da limitação das possibilidades criativas dos professores, o que soa atrasado e ineficiente. Ainda assim, é forçoso reconhecer que ele já está estabelecido e que várias de suas normas tornaram-se virtualmente inquestionáveis, mesmo com todos os desconfortos que acarretam.
E como exatamente funciona esse tal de EHG? Para esclarecer a estrutura lógica dessa forma de administrar, vamos recuperar a metáfora que utiliza as partes do corpo humano. Consideremos três dos órgãos mais importantes de nossa constituição física: o já citado fígado, o cérebro, e o coração. Consideremos as tradicionais associações: do cérebro com a razão, do coração com as emoções e sentimentos, e do fígado com o humor.
Há estilos de gestão que conquistam as pessoas pela razão, convencendo-as de que trabalhar pelos objetivos estabelecidos será melhor para todos, e estimulando-as a analisar, discutir e divulgar os porquês de cada determinação recebida. Esses estilos são caracteristicamente cerebrais, e se baseiam num esforço de constante formação dos profissionais, por meio do diálogo e da reflexão sobre as práticas e as necessidades de mudança.
Há estilos, por sua vez, que procuram conquistar as pessoas persuadindo-as de que elas têm valor, de que são importantes na estrutura, de que farão diferença para as crianças, e estimulando-as a sentirem-se parte de um grupo coeso, integrado, que reconhece o quanto são imprescindíveis. Esses estilos estão ligados ao coração, e se baseiam em realizações de encontros, projetos, excursões, reuniões, eventos que unam os integrantes da comunidade escolar e permitam relação mais humana e afetuosa entre os mestres.
Há, entretanto, um momento em que se considera que é preciso oferecer soluções rápidas para problemas persistentes. Há um momento em que pessoas desligadas do cotidiano da escolar passam a acreditar que podem administrá-la da mesma forma que qualquer outra organização social. Há um momento em que a pressão política por resultados numericamente verificáveis sobrepõe-se à noção de que educação é um processo, e que todo processo é mais amplo e complexo que a mera enunciação de seus resultados. Nesse momento, desaparecem todas as evidências de que o professor é um trabalhador e um ser humano. O professor passa a ser apenas um aplicador de soluções já pensadas. O professor passa a ser uma peça de um mecanismo, podendo funcionar bem ou mal e, nessa mesma medida, ser remodelada ou simplesmente substituída. O professor passa a ser um instrumento de uma política de Estado, e não um construtor e debatedor inteligente das concepções de cidadania. Nesse momento, não é preciso convencer o professor de nada, nem racionalmente, nem emocionalmente. Nesse momento, é preciso garantir o menor risco possível de que ele faça algo que não seja o que lhe foi incumbido pelos técnicos e estudiosos. E isso se faz pelo medo. Pelo fígado. Pela destruição do humor.
Quando se considera perda de tempo convencer as pessoas a seguir determinados caminhos ou motivá-las e valorizá-las a fazê-lo, resta apenas a alternativa de obrigá-las a tal. É a coisa do "manda quem pode, obedece quem tem juízo". É aí que começa o Estilo Hepático de Gestão. As ordens são ordens, não devem ser discutidas, não podem ser contestadas. Posso chamá-las disfarçadamente de recomendações, orientações, instruções, mas no fundo são sempre ordens. Não admitem contraditório. Não podem ser adpatadas nem reinterpretadas. Devem ser cumpridas. Lei é lei. Palavra de superior é lei. Quando algo está fora da lei, ou da palavra do superior, é um problema assustador: não pode ser resolvido pelo bom senso, mas só pela intervenção de quem está acima.
Acontece, porém, que no serviço público os trabalhadores conseguiram, depois de anos e anos de luta, algumas garantias que dão margem à recusa de processos de intimidação. Nós, professores da Prefeitura, por exemplo, temos estabilidade no emprego, e temos carreira. Não é fácil nos ameaçar, porque contamos com uma série de garantias estatutárias, entre elas a autonomia de cátedra, a necessidade de estabelecimento de longo processo administrativo para que percamos um cargo, e a possibilidade de mudarmos de escola, de região, de atividade quando nos convém ou quando precisamos de novos ares.
Há, portanto, um impasse: como conduzir o professor a um caminho que ele não sabe ou não quer trilhar se não posso mandá-lo embora a meu bel-prazer? A resposta não precisa de muita reflexão: se não posso demitir o funcionário, posso perturbá-lo a tal ponto de tornar difícil para ele não fazer o que estou mandando. Posso criticá-lo, posso atacá-lo, posso fazer cobranças. Posso, em suma, mirar seu fígado. Posso tentar causar um incômodo tal que, para se ver livre dele, e não por acreditar no que faz, o funcionário aja como pretendo e determino.
E como é possível perpetrar tais incômodos nas situações de trabalho? Não é tão fácil assim. Alguns cuidados são necessários, porque agredir as pessoas, acusá-las abertamente, achacá-las, pode caracterizar o chamado assédio moral, e isso pode desmoralizar e desautorizar aquele que assedia. Em primeiro lugar, é necessário transformar todas as ordens em documentos, circulares, papéis para serem assinados, porque o papel aceita tudo, não tem cara, não pode ser identificado com um indivíduo, não tem compromisso com uma "identidade" da gestão, ou do gestor, ou da política implementada. Em segundo lugar, é preciso apresentar todas as ordens como se fossem pedidos desesperados dos próprios professores. Isso exige que, nas reuniões de planejamento, todas as discussões se encaminhem para um documento final que apenas confirme o que se queria impor, mas dessa vez com a desatenta ou conivente assinatura de todos os profissionais, como se eles concordassem com tudo e tudo subscrevessem. Depois disso, deve-se esfregar, sempre que possível, esses documentos, pseudo-documentos e escritos em geral na cara dos professores, mas sempre com sutileza, sorrisos e feição de quem não tem intenção nenhuma de fazer o que está fazendo. Deve-se, além disso, utilizar as palavras de forma a fazer as pessoas se sentirem mal, incomodadas, insuficientes, mas tudo isso de forma oblíqua, dissimulada, capituliana. Por exemplo, dizer que o desempenho da escola é insatisfatório, que os professores precisam rever suas práticas ou que outras soluções poderiam resolver a questão de disciplina com determinado aluno devem ser formas polidas de dizer que os professores não ensinam direito, que a didática daquele profissional é uma droga e que o professor tem mais é que se virar para lidar com um aluno x ou y. Deve-se usar também a comunicação corporal: cara feia, semblante pesado, seriedade ameaçadora, mau humor permanente, postura arrogante e fechada ao diálogo, sinais de enfado com perguntas incovenientes, sorrisos premiando a obediência, suspiros de impaciência condenando a não submissão. Por fim, deve-se garantir um clima de constante ameaça, com visitas surpresa à escola e às salas de aula, possibilidade constante de conferência sem aviso dos diários de classe e livros de registro, e falta de clareza nos critérios de aprovação ou reprovação de determinados comportamentos, para minar a segurança psicológica do professor e bloquear a construção de sua autoestima, incompatével com sua subserviência.
O EHG tem, além dessas características, a peculiaridade de ser um sistema hierarquicamente rígido. Ou seja, a ordem do ataque ao fígado do subordinado tem de ser rigorosamente respeitada. Na Prefeitura: o secretário ataca o fígado dos assessores. Os assessores atacam o fígado dos supervisores. Os supervisores enegrecem a bílis dos coordenadores. Os coordenadores comem o fígado dos professores. E os professores, contra todas as crenças que os levaram ao magistério, terminam por roer o fígado dos alunos. Mas o supervisor não dá conta, por exemplo, de opilar o fígado de milhares de professores numa determinada região. Isso fica a cargo dos coordenadores. São eles que devem dizer aquela famosa frase: vamos fazer tudo direitinho que o supervisor vem na escola hoje. E isso mesmo que ele não venha, nem nunca tenha sequer imaginado essa possibilidade. No EHG, as coisas devem funcionar porque as pessoas podem brigar, e não porque esse funcionamento conduza a um processo mais eficiente. Quando se gerencia pelo medo, é preciso alimentá-lo, reiterá-lo, promovê-lo. É preciso espalhar boatos, assustar as pessoas, tirá-las da tranquilidade natural.
O EHG existe já há muito tempo, assumindo dimensões de assédio moral, quando transbordante, ou de jogos imbecilóides de manipulação, quando sutil. Seu advento contraria um dos princípios mais básicos da LDB, o de autonomia progressiva e participação democrática, desenvolvido nos artigos 14 e 15 da lei. Entretanto, como não funciona como norma explícita, e como toma todo o cuidado para não traduzir seus paradigmas em legislações, pareceres, ou orientações textuais, é muito difícil localizá-lo. Ele pode reger toda a formação e gerenciamento de um projeto pedagógico sem nunca deixar, nos registros desse projeto, marcas de sua influência. Para superá-lo, é preciso surpreendê-lo em ação, no pulo do gato, no momento em que ele aparece e tenta imediatamente se desfazer no ar, como se nunca tivesse se mostrado. Na teoria, não temos que fazer nada do que já não fazemos todo dia quando uma autoridade nos visita. Na prática, o EHG estabeleceu a norma de que precisamos maquiar a escola. Na teoria, não temos de ter medo de expor nossas opiniões divergentes em relação àquelas que vêm das instâncias superiores. Na prática, o EHG encontrou formas sutis de nos desestimular a proferi-las. Na teoria, nossas aulas e nosso esforço de educadores são mais importantes que os registros que eventualmente deixamos de efetivar em função do tumulto cotidiano. Na prática, o EHG conseguiu inverter essa ordem, porque precisa dos aspectos burocráticos como indicadores políticos e porque pode utilizá-los como parâmetro documental de medidas punitivas. Na teoria, temos autonomia na avaliação dos alunos. Na prática, o EHG tira do professor qualquer possibilidade nesse sentido quando um pai liga para a coordenadoria - bicando o fígado do supervisor - e o próprio supervisor se encarrega - para evitar que o secretário bique seu fígado - de mudar uma avaliação da qual nunca participou. Nada disso se registra, nada disso vai para o papel, nada disso se declara, mas tudo isso está aí, constituindo um corpo consubstanciado de pequenas verdades que, por ser uma forma de agir essencialmente distinta de outras possíveis, podemos chamar de estilo, e por ser direcionada ao que entendemos como nossa disposição vital para o trabalho, nosso humor, podemos chamar de hepático. Só não sei se podemos chamar isso de gestão. Mas isso fica para outra postagem.
Marcadores:
assédio moral,
EHG,
escola,
gestão,
hipocrisia,
humor,
responsabilidade,
valores,
valorização
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Resposta interessante
Estou fazendo um curso de Licenciatura em Pedagogia, algo como uma antiga complementação pedagógica, que me abrirá portas para outros tipos de trabalho em minha carreira. Respondendo a uma das questões propostas no curso, que pedia uma reflexão sobre avaliações do tipo "observação cotidiana" e avaliações do tipo "testagem" à luz de nossas experiências no magistério. Produzi algo que julguei interessante, e decidi compartilhar:
Considerando minha experiência como professor, acredito que deve haver um maior investimento nos processos de observação e registro em sala de aula, pois esses são menos contemplados, na prática educacional atual, que os processos de testagem. A escola em que trabalho, por exemplo, demonstra grande preocupação com os resultados de avaliações do tipo de testagem, sejam externos (Prova São Paulo, Prova Brasil) ou internos (Avaliações diagnósticas padronizadas), porque a atual proposta de trabalho da Prefeitura de São Paulo traz claramente a meta de melhoria desses índices. Entretanto, boa parte dos problemas que enfrentamos relacionam-se a questões atitudinais e comportamentais dos alunos, que normalmente não são contempladas por esse tipo de avaliação, e que encontrariam muito maior espaço de diagnóstico e de tentativa de mudança em registros constantes e insistentes do professor.
O diário de classe, que poderia ser utilizado para esse fim, acaba sendo "maquiado", em função de sua oficialidade. Nele, os professores não registram o cotidiano da sala de aula, não fazem observações segundo critérios de pertinência e relevância, mas anotam informações gerais sobre realização ou não de atividades, conteúdos do dia e ocorrências disciplinares. Além disso, como os diários de classe são considerados documentos oficiais, os professores são cobrados por mantê-los "limpos", sem rasuras, sem descontinuidades, e sem observações não quantificáveis ou passíveis de se transformar em nota. Cabe dizer, ainda, que os diários de classe não têm espaço suficiente para que se coloquem todos os registros importantes a respeito de cada aluno.
Também deve-se lembrar que o grande número de alunos por sala de aula é inimigo do registro diário. Um professor com seis aulas em um dia chega a lidar com 240 alunos, e é fisicamente impossível realizar uma observação escrita relevante a respeito de cada um, seja qual for a jornada desse profissional.
Por fim, penso que a aprendizagem é um processo, e que os processos de testagem estão mais próximos de registrar produtos finais das etapas superadas que de mostrar quais os procedimentos efeicientes para superá-las, e a outras. Um aluno que não consegue boas notas nas avaliações externas torna-se um problema para a escola, do ponto de vista estritamente estatístico; entretanto, seu fracasso nesses exames pode estar associado, por exemplo, a uma incapacidade de integração social com a turma, o que não será detectado nem diagnosticado pelo exame externo. Somente a observação do professor pode dar subsídios para uma interferência construtiva nesse sentido, que venha ocasionar uma mudança comportamental necessária para um avanço no processo de aprendizagem, e que poderá se refletir, mais tarde, em melhor desempenho nas testagens. O problema estatístico, se se adota esse procedimento, torna-se um problema efetivamente humano, pedagógico, didático. Creio que, na gestão de nossas escolas e nas concepções políticas de educação, tem faltado essa perspectiva.
Considerando minha experiência como professor, acredito que deve haver um maior investimento nos processos de observação e registro em sala de aula, pois esses são menos contemplados, na prática educacional atual, que os processos de testagem. A escola em que trabalho, por exemplo, demonstra grande preocupação com os resultados de avaliações do tipo de testagem, sejam externos (Prova São Paulo, Prova Brasil) ou internos (Avaliações diagnósticas padronizadas), porque a atual proposta de trabalho da Prefeitura de São Paulo traz claramente a meta de melhoria desses índices. Entretanto, boa parte dos problemas que enfrentamos relacionam-se a questões atitudinais e comportamentais dos alunos, que normalmente não são contempladas por esse tipo de avaliação, e que encontrariam muito maior espaço de diagnóstico e de tentativa de mudança em registros constantes e insistentes do professor.
O diário de classe, que poderia ser utilizado para esse fim, acaba sendo "maquiado", em função de sua oficialidade. Nele, os professores não registram o cotidiano da sala de aula, não fazem observações segundo critérios de pertinência e relevância, mas anotam informações gerais sobre realização ou não de atividades, conteúdos do dia e ocorrências disciplinares. Além disso, como os diários de classe são considerados documentos oficiais, os professores são cobrados por mantê-los "limpos", sem rasuras, sem descontinuidades, e sem observações não quantificáveis ou passíveis de se transformar em nota. Cabe dizer, ainda, que os diários de classe não têm espaço suficiente para que se coloquem todos os registros importantes a respeito de cada aluno.
Também deve-se lembrar que o grande número de alunos por sala de aula é inimigo do registro diário. Um professor com seis aulas em um dia chega a lidar com 240 alunos, e é fisicamente impossível realizar uma observação escrita relevante a respeito de cada um, seja qual for a jornada desse profissional.
Por fim, penso que a aprendizagem é um processo, e que os processos de testagem estão mais próximos de registrar produtos finais das etapas superadas que de mostrar quais os procedimentos efeicientes para superá-las, e a outras. Um aluno que não consegue boas notas nas avaliações externas torna-se um problema para a escola, do ponto de vista estritamente estatístico; entretanto, seu fracasso nesses exames pode estar associado, por exemplo, a uma incapacidade de integração social com a turma, o que não será detectado nem diagnosticado pelo exame externo. Somente a observação do professor pode dar subsídios para uma interferência construtiva nesse sentido, que venha ocasionar uma mudança comportamental necessária para um avanço no processo de aprendizagem, e que poderá se refletir, mais tarde, em melhor desempenho nas testagens. O problema estatístico, se se adota esse procedimento, torna-se um problema efetivamente humano, pedagógico, didático. Creio que, na gestão de nossas escolas e nas concepções políticas de educação, tem faltado essa perspectiva.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Impressões do Congresso - 2009 - parte 2
Este ano, o Congresso do SINPEEM, contou novamente com a participação de gala do sempre divertido professor Gabriel Perissé, atração principal do último dia. Já no ano passado dediquei uma postagem à participação de Perissé, que considerei excelente. E, por incrível que pareça, fui contemplado com um comentário do próprio palestrante, e um link de seu blog para o meu, um ato de grande simpatia, considerando o limitado alcance deste blog.
Julgo que minhas impressões foram compartilhadas por outros professores, porque Perissé voltou este ano, e para fazer o encerramento do encontro. Depois de um supershow de Luiz Melodia, seria tarefa complicada.
Mas nem foi. Porque Perissé é natural, sabe manter suspense na fala, calcula o ritmo da apresentação, não usa as apresentações de computador como muleta. E - mais importante que tudo isso - ele fala do professor de todo dia, sem idealizá-lo, sem rodeios, sem elocubrações confusas. E embasado na Filosofia.
Este ano, guardei uma frase interessante, que desconhecia: "Seja a tua própria lição de casa". Acho que essa é a citação que sintetiza a apresentação de Perissé. Com muita habilidade, o palestrante foi se aproximando da ideia de que não há solução possível para os problemas do professor se este não compreender a si próprio, como indivíduo e profissional, se não conhecer seus caminhos, seus dons e seus limites. Um conhecimento que não vem do que os especialistas receitam ou apontam - aliás, engraçadíssimo o uso das citações de várias autoridades em educação detonando os professores. Um conhecimento que não vem de livros de autoajuda - aliás, muito bem sacado o uso da literatura infantil e juvenil para ilustrar as falas. Um conhecimento que não pode vir do comodismo, mas não está garantido pela rebeldia - pra variar, brilhante o uso da metáfora de camelo, leão e criança, trazida de Nietzsche. Esse conhecimento só pode advir de um mergulho no potencial do professor enquanto cidadão, leitor, engajado, culturalmente participante, intelectual. A opção de Gabriel Perissé pela provocação, pela ironia, pela forma inteligente de captar a audiência - por exemplo, a esperteza de chamar-se de chatíssimo a partir de um comentário de Rubem Alves, assumindo para si uma crítica direcionada ao coletivo e transformando em riso a indignação que poderia desembocar em manifestação agressiva -, enfim, sua habilidade de nos fazer pensar a respeito de temas espinhosos sem a pressão do discurso que cobra e agride, tudo isso garante que o veremos no ano que vem, de novo. Ou, se não virmos, que sentiremos falta dele.
Julgo que minhas impressões foram compartilhadas por outros professores, porque Perissé voltou este ano, e para fazer o encerramento do encontro. Depois de um supershow de Luiz Melodia, seria tarefa complicada.
Mas nem foi. Porque Perissé é natural, sabe manter suspense na fala, calcula o ritmo da apresentação, não usa as apresentações de computador como muleta. E - mais importante que tudo isso - ele fala do professor de todo dia, sem idealizá-lo, sem rodeios, sem elocubrações confusas. E embasado na Filosofia.
Este ano, guardei uma frase interessante, que desconhecia: "Seja a tua própria lição de casa". Acho que essa é a citação que sintetiza a apresentação de Perissé. Com muita habilidade, o palestrante foi se aproximando da ideia de que não há solução possível para os problemas do professor se este não compreender a si próprio, como indivíduo e profissional, se não conhecer seus caminhos, seus dons e seus limites. Um conhecimento que não vem do que os especialistas receitam ou apontam - aliás, engraçadíssimo o uso das citações de várias autoridades em educação detonando os professores. Um conhecimento que não vem de livros de autoajuda - aliás, muito bem sacado o uso da literatura infantil e juvenil para ilustrar as falas. Um conhecimento que não pode vir do comodismo, mas não está garantido pela rebeldia - pra variar, brilhante o uso da metáfora de camelo, leão e criança, trazida de Nietzsche. Esse conhecimento só pode advir de um mergulho no potencial do professor enquanto cidadão, leitor, engajado, culturalmente participante, intelectual. A opção de Gabriel Perissé pela provocação, pela ironia, pela forma inteligente de captar a audiência - por exemplo, a esperteza de chamar-se de chatíssimo a partir de um comentário de Rubem Alves, assumindo para si uma crítica direcionada ao coletivo e transformando em riso a indignação que poderia desembocar em manifestação agressiva -, enfim, sua habilidade de nos fazer pensar a respeito de temas espinhosos sem a pressão do discurso que cobra e agride, tudo isso garante que o veremos no ano que vem, de novo. Ou, se não virmos, que sentiremos falta dele.
Marcadores:
congresso,
Gabriel Perissé,
humor,
valorização
sábado, 31 de outubro de 2009
O caso da agressão a Geyse Arruda na Uniban, e a hipocrisia conservadora
A primeira consideração que faço a respeito do deprimente espetáculo de estupidez, intolerância, machismo e mediocridade protagonizado pelos estudantes da Uniban que agrediram Geyse Arruda é de cunho psicológico. Perguntei-me quais seriam as razões para tamanho ódio contra a garota. Colocando-me no lugar dos rapazes que a chamavam de puta aos berros nos corredores da faculdade, conforme atesta vídeo do YouTube, tentei identificar as motivações para agredir de forma tão covarde alguém que, ao que parece, não estava agredindo ninguém. Se eu estudasse com ela, e ela usasse microssaias, haveria duas hipóteses: isso ou não me incomodaria em nada, ou chamaria minha atenção. Se chamasse minha atenção, seria ou porque me despertaria atração física, pela beleza das pernas, ou porque me constrangeria, em função do incômodo de ver pernas à mostra. No primeiro caso, eu poderia simplesmente olhar, e tentar praticar, talvez, o saudável exercício de focar minha atenção na aula apesar do outro atrativo do ambiente. No segundo caso, bastaria não olhar, já que as pernas não representariam para mim nenhum atrativo, e sim uma visão indecorosa. Mas, então, porque agredir alguém em função de algo que, num caso e no outro, só posso resolver comigo mesmo, por meio de escolhas rigorosamente minhas? Arrisco uma resposta: talvez justamente porque eu não possa, ou saiba, resolver isso comigo mesmo. Talvez eu não possa suportar sentir desejo por algo que vejo e não tenho como alcançar; talvez eu precise recalcar esse desejo sob forma de aversão, ou transformar a energia do desejo em violência. Talvez eu seja até imbecil a ponto de, mesmo considerando-me indivíduo adulto e cidadão consciente, dizer ao objeto de meu desejo: "- Desapareça, pois não posso lidar com o fato de querer você". Para mim, Geyse incomodou por ser atraente num mundo em que as pessoas não sabem lidar com a frustração de não poder ter à sua disposição aquilo que as atrai.
Isso me conduziu a uma segunda consideração, de cunho lógico-especulativo - na verdade, irônico. Se os rapazes que se sentiram à vontade para ofender uma pessoa desarmada, isolada e indefesa chamando-na de puta porque usava roupas chamativas... pois bem, se esses rapazes são eticamente coerentes em suas vidas com a atitude que tiveram, a saber, a de condenar a suposta superexposição do corpo da jovem Geyse, creio que é possível traçar um perfil de seus comportamentos fora do âmbito da faculdade. Em primeiro lugar, deve-se deduzir que esses rapazes nunca, jamais, em nenhum momento, tiveram relações com prostitutas, visto que utilizaram o termo "puta" com caráter pejorativo. Acho que é possível acrescentar, com toda a segurança, que eles também nunca, em nenhum momento, olharam para prostitutas, nem jamais caíram na tentação de mexer com elas, e que têm perfeita e inquestionável capacidade de distinguir, apenas em função do uso de determinadas peças de roupa, as mulheres que são prostitutas das que não o são. Deduz-se, também, obviamente, que esses rapazes não admitem nem nunca admitiram, em âmbito público, o uso de roupas ofensivas ao decoro; portanto, é fácil constatar que não vão à praia, não pulam Carnaval, não frequentam baile funk, não aceitam que as mulheres caminhem em roupas sumárias nos clubes esportivos com piscinas, e muito menos aceitam sair da cidade de São Paulo para lugares mais quentes do território nacional, onde os hábitos de vestuário são completamente distintos. Com toda certeza, esses rapazes também não admitem, de maneira alguma, que suas irmãs, namoradas, esposas, consortes, mães, primas e amigas usem roupas que ofendam os bons princípios, e seria um disparate acreditar que eles, em algum momento, tenham pedido a suas companheiras o uso de algum item desse teor, para estimular fantasias particulares. Também é muito claro que esses rapazes consideram absolutamente imorais o Big Brother, a Fazenda, as Panicats, todos os programas de auditório com suas dançarinas, os quadros apelativos dos programas humorísticos, e as novelas de televisão, porque nestes espaços há abundância de corpos exibidos sem o devido recato, daí se podendo deduzir com alto grau de certeza que eles nunca, jamais, em nenhuma hipótese assistem a esses programas de televisão, ou que os assistem apenas até o momento em que algo desse tipo aparece. Quando isso ocorre, desligam o aparelho. Deve-se acrescer ainda, apenas a título de clareza, que, se acaso esses rapazes veem, por acidente, alguma cena na TV em que mulheres usam roupas mais decotadas, eles nunca, de forma alguma, jamais se excitam, visto que consideram essa forma de se vestir indecorosa e digna de xingamentos. Esses rapazes, provavelmente, consideram também uma imoralidade a nudez pública de certas figuras da mídia, o que faz com que condenem veementemente a compra de revistas com o a Playboy ou a Hustler, que nunca folhearam e nunca folhearão. Enfim, se os rapazes que se manifestaram de forma brutal contra a jovem na Uniban são tão moralistas quanto demonstraram no vídeo do YouTube, deveríamos ter a certeza de que toda essa segurança na agressividade advém de um comportamento eticamente ilibado, incorruptível e totalmente coerente com os princípios conservadores que o engendraram. Mas, vejam só, a única certeza que podemos ter é a de que existe, em tudo isso, uma imensa e deslavada hipocrisia, inflada pela imbecilidade conservadora do machismo ainda reinante em nossa sociedade. Uma atitude exemplar e paradigmática por parte da Uniban seria identificar todos os idiotas que participaram desse ato e mandá-los embora da instituição, e, em complemento a essa ação, garantir o retorno da estudante Geyse para as salas de aula COM A ROUPA QUE ELA QUISESSE. Quero ver se vão fazer isso.
Uma última consideração, que extrapola os fatos analisados. Geyse é só uma menina bonita que gosta de vestir roupas que valorizam seu corpo. Mas vamos supor que esse caso tivesse ocorrido com outra pessoa. Vamos supor que uma menina que fosse efetivamente prostituta se matriculasse numa faculdade. Ela seria proibida de usar roupas provocantes? Ela seria hostilizada pelos alunos? Ela seria repreendida pela direção da instituição? Ela seria chamada de puta aos berros pelos corredores? Já não é hora de mudarmos alguns conceitos estapafúrdios que a sociedade impõe? Em minha sala de aula, prostitutas são bem-vindas, e receberão meu respeito em forma de aula bem planejada e apoio didático consistente, usem ou não calça jeans, vestido longo, microssaia, ou o que bem entenderem. E ai daquele que as discriminar!
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Vale a pena reler um poema de Drummond, incluído em A rosa do povo, que se chama justamente "O caso do vestido", e tentar repensar este episódio da estudante. A leitura sugerirá que algumas mentalidades têm perdurado mais do que deveriam, e alguns comportamentos infelizmente teimam em atualizar suas formas.
Marcadores:
agressão,
assédio moral,
faculdade,
hipocrisia,
uniban,
violência
Impressões do Congresso - 2009 - parte 1
O Congresso do SINPEEM deste ano teve, na quarta-feira, dia 28, seu mais importante e necessário momento. Duas palestrantes - Katia Reis de Souza e Gesa Corrêa - abordaram, em suas exposições, as condições de saúde dos profissionais da categoria. As colocações foram surpreendentes, não porque trouxessem notícias novas sobre aquilo que já sabemos de tanto observar a prática cotidiana dos professores e funcionários da escola, mas por soarem como questionamento pertinente e corajoso num momento em que os discursos oficiais - e mesmo sindicais - pareciam ter relegado a questão a segundo plano. A apresentação das palestrantes trouxe uma sensação de desafogo para as minhas inquietações pessoais, entre as quais a percepção de que o trabalho em sala de aula é realizado em condições insalutares e exageradamente desgastantes, e a de que isso É MAIS URGENTE E AGUDO que as questões salariais ou político-pedagógicas, embora não esteja desvinculado destas.
Meu irmão, que é da área da saúde e estudou Educação Física e Nutrição, disse-me certa vez que as pessoas gostam da frase "Esporte é saúde", mas desconhecem a realidade, por exemplo, do esporte de ponta, de patrocínios, de marcas, no qual (esta frase vi em algum lugar) "a dor é o uniforme do atleta" e a pressão por resultados provoca, em curtíssimo prazo, lesões graves e até permanentes.
Aproveito as pertinentes obervações de meu irmão para refletir sobre outra frase feita, "o trabalho dignifica o homem". Evidentemente que, no geral, poderíamos dizer que sim. Mas precisamos questionar os termos da proposição. Assim como não seria nada absurdo, no caso do chavão sobre o esporte, perguntarmos "será que TODO tipo de esporte é saúde?", também considero pertinente perguntar "será que tudo o que se refere a trabalho dignifica o homem?". É bonito ler nas autodescrições que aparecem em perfis e currículos dos profissionais coisas como "amo meu trabalho", "sou realizado no que faço", e afins. Mas sabemos também que muitas das coisas que escrevemos ou dizemos são escritas ou ditas apenas porque soam bem, ou porque a convenção social exige, como forma de inserção. Entretanto, penso que essa postura acaba mascarando questões pungentes, porque conduz as pessoas a um lugar ideal, fictício, de aparência. Para fazer jus a esse lugar de aceitação, as pessoas não podem de falar das coisas de que não gostam em sua profissão, pois se o fizerem passarão a impressão de insatisfação ou descontentamento com algo que deveria enobrecer, elevar, ser aplaudido.
Entretanto, precisamos saber se nosso trabalho realmente nos dignifica; e para isso é pertinente perguntar qual é exatamente o nosso trabalho. Alguém dirá que é educar, formar gerações para protaginismo social, estimular o pensamento crítico etc. É inegável que trabalhar com esse intento dignifica um ser humano. Mas aí surgem outras perguntas que não querem calar: É ISSO O QUE DE FATO FAZEMOS NA SALA DE AULA TODOS OS DIAS? Será que NOSSOS 45 OU 50 MINUTOS COM OS ALUNOS EM SALA, OU COM OS PROFESSORES EM REUNIÕES, CONSTITUEM-SE TÃO-SOMENTE DE AÇÕES NESSE SENTIDO? Acaso AS AGRESSÕES, A PRESSÃO PSICOLÓGICA, O ASSÉDIO MORAL, O PÓ DE GIZ, A ILUMINAÇÃO PRECÁRIA, AS AMEAÇAS, O RUÍDO ESTRONDOSO, A SALAS LOTADAS são parte desse trabalho que dignifica, ou seriam IMPEDIMENTOS AO DESENVOLVIMENTO DELE? Assim como não posso admitir que esporte seja sempre saúde quando penso em questões como doping e infiltrações para manter o rendimento apesar da dor - tendo como consequências a destruição física do atleta a longo prazo -, também não cabe na minha cabeça que nosso trabalho - não o ideal preconizado de trabalho, mas a realidade cotidiana dele - nos dignifique quando não temos quase nunca as condições mínimas para realizá-lo.
Nesse sentido, a palestrante Katia Reis de Souza matou a pau quando trouxe uma reflexão de Paulo Freire para afirmar que o paradigma deveria ser outro, o de que o homem MODIFICA o mundo pelo trabalho tal como, em contrapartida, o trabalho realizado MODIFICA o próprio homem. Ora, eu preciso educar. Eu preciso das condições mínimas para educar. Os obstáculos para uma boa atuação em sala de aula precisam ser eliminados ou reduzidos, e não incorporados à lógica do trabalho, como se o sofrimento e a martirização fizessem parte integrante e inseparável da minha profissão. Não quero ser herói, quero ter saúde para continuar fazendo o que sei de melhor durante muito tempo na minha vida. É digno poder ensinar, poder transformar condições intelectuais, é a coisa mais bonita que conheço. Mas é indigno ser destruído, ao longo dos anos, pelas condições que me são dadas para fazer isso. Quero ser transformado pelo meu trabalho em uma pessoa mais humana, justamente porque uma das minhas funções profissionais é humanizar as pessoas. Educar dignifica, sim; é nosso objetivo profissional. Mas nossa atuação real tem estado muito distante desse objetivo; nosso trabalho tem sido, na verdade, fazer de tudo, e, quando possível, também educar. Precisaríamos recuperar as condições para educar, porque só assim recuperaríamos, justamente, a dignidade da profissão.
E muitas outras reflexões foram estimuladas pelas palestrantes. Eu precisaria de dezenas de postagens para tocar em todos os pontos importantes. Alguns que me instigaram: a influência comprovada e direta do estilo autoritário de gestão na precarização das condições físicas dos professores e funcionários; a ausência de reflexões e parâmetros sobre o assédio moral nas escolas; a tolerância pra lá de absurda do poder público com os problemas físicos e psicológicos que atingem os trabalhadores de educação; a incidência assustadora de Burnout - síndrome da desistência - entre os profissionais da categoria; a exemplaridade dos casos em que gestões verdadeiramente democráticas e participativas mudaram a realidade das escolas, zerando o absenteísmo e diminuindo consideravelmente os índices de violência na instituição.
Parabéns, Katia e Gesa!
Marcadores:
agressão,
assédio moral,
condições de trabalho,
congresso,
gestão,
sala de aula,
valorização
domingo, 25 de outubro de 2009
Do Concurso da Prefeitura de São Paulo para Coordenador Pedagógico
Prestei hoje o concurso de acesso para Coordenador Pedagógico da Prefeitura de São Paulo. Foi uma experiência desgastante, quatro horas e meia de provas. As questões, na maior parte, foram verificações de leitura da bibliografia, e isso dificultou sobremaneira meu desempenho, visto que centrei-me nas ideias gerais dos textos e não nos conceitos mais técnicos e específicos que eles abordavam. Não gostei das questões dissertativas, achei que foram formuladas com preocupações mais associadas a aspectos burocráticos dos cargos que a aspectos pedagógicos. Este foi o terceiro concurso que prestei (História em 1998, Língua Portuguesa em 2007) e, sem dúvida, o mais difícil deles todos. Não tenho expectativas de ser aprovado, e ficaria muito surpreso se isso acontecesse.
Não sei bem como comentar a prova, uma vez que não ficamos com o caderno de questões. Tive a impressão geral de que o foco em aspectos técnicos, em pontos de legislação e em terminologias e conceitos revela, em grande medida, o perfil de profissional que a Secretaria entende como mais apto para o cargo: alguém com domínio da tecnocracia escolar e tecnicamente habilitado para os programas da gestão atual. Os outros dois concursos pareceram-me mais abertos a questões educacionais mais amplas e a uma compreensão da atuação do profissional de educação como prioritariamente política - o termo aqui tem sentido amplo, associado ao estudo e à experiência das relações sociais de poder. Parece-me que o caráter tecnicista da proposta de governo atual ficou bastante claro nas escolhas temáticas realizadas. Por exemplo: uma das questões dissertativas nos interrogava sobre se poderíamos ou não matricular crianças sem o histórico escolar da instituição da qual vieram. Concordo que é bem possível nos depararmos com essa questão em nossa prática diária de gestão. Entretanto, se eu tivesse de escolher os conhecimentos a verificar para selecionar um profissional para coordenação, essa seria, no máximo, uma das sessenta questões objetivas. Nas dissertativas, eu sempre me preocuparia em saber se o candidato consegue elaborar seus paradigmas de atuação com coerência e se tem visão de conjunto suficiente para garantir um bom andamento do trabalho pedagógico como um todo. Comer bola em alguns aspectos da legislação é coisa até comum, que a prática cotidiana do cargo vai sanando, com a experiência. Por outro lado, compreender a sua função dentro do complexo jogo de responsabilidades que é o processo pedagógico é algo bem mais agudo, e exige do aspirante a coordenador reflexão sobre as práticas, sobre a experiência de professor e sobre as relações destas com os referenciais teóricos.
Minhas discordâncias, entretanto, não serão usadas como desculpas. Fui mal, não atingi o esperado, e não tenho vergonha disso. Posso viver perfeitamente com esse insucesso, e posso tirar muito proveito do que estudei antes de realizar essas provas, porque li coisas muito enriquecedoras. Se não foi minha hora agora, será em breve. O meu está guardado, como dizem os alunos.
-------------------------------------------------------------------------------------
Atualização em 21 de novembro, às 22h33min.
Surpreendentemente, a conferência dos gabaritos mostrou que não fui tão mal quanto supunha. Fiz mais pontos que a maioria das pessoas que conheço, e acho que chegarei à fase da correção da prova dissertativa. Para mim, já está mais que satisfatório. Ainda acho que não passei, e não alimentarei expectativas, mas estou pra lá de satisfeito com meu desempenho. Os resultados serão divulgados em 19 de dezembro, e vou achar muito engraçado se meu nome aparecer na lista final.
-------------------------------------------------------------------------------------
Atualização em 23 de dezembro, às 7h39min
Mais surpreendemente ainda, acabo de descobrir que passei em décimo-sétimo lugar. Tive um desempenho muito, mas muito acima do que imaginava. Estou mais que satisfeito com o resultado. Mantenho todas as críticas à prova, e dependo de uma série de fatores, inclusive disposição pessoal e prazo de convocação, para saber se assumirei o cargo. Por ora, estou besta. Isso estava completamente fora do script.
domingo, 18 de outubro de 2009
Boas novas?
Esta notícia da Agência Estado tem uma manchete animadora. De fato, o saldo das informações é positivo para nossa classe. Mas há alguns pontos a considerar.
1) Ganhar R$ 600,00 reais acima da média dos trabalhadores brasileiros não faz de nós privilegiados, como provavelmente alguns de ideia fixa propalarão.
2) Cálculos de médias são complicados, sempre escondem muitos fatores de diferenciação, como regiões geográficas da pesquisa, planos de carreira e jornadas de trabalho. Vou ler direto na página do Ministério e depois atualizo, se necessário, com outras avaliações.
3) O professor é o profissional mais importante entre os que têm formação para atuar na transformação da sociedade. Isso é incompatível com o fato de que ganha bem menos que a média dos profissionais com formação acadêmica idêntica. A não ser que admitamos que a lógica do sistema é justamente a da não transformação.
4) Convenhamos: R$ 1.527,00 para o Brasil, R$ 1.845 para São Paulo ainda são números indignos, considerando o que fazemos e a preparação que nos é exigida para tal. Suspeito que as médias acabem disfarçando números ainda mais aviltantes. A carreira realmente não é atraente do ponto de vista financeiro, e não adianta lascar na mídia o discurso missionário, porque as novas gerações foram ensinadas pela mesma mídia a considerar o consumo e o dinheiro os objetivos maiores da existência. Vai faltar professor mesmo.
Uma coisa de que não gostei foi que a notícia não indica referência da fonte para consulta. Como se trata de uma síntese, e como sempre há um viés no jornalismo, convém indicar de onde vieram os dados, para conferência.
Como saldo positivo, acho que fica o fato de que as coisas melhoraram, o que talvez reflita uma preocupação com o rumo intolerável que elas vinham tomando. E o piso é uma coisa boa, ao que me parece. Embora eu ache, sinceramente, que tudo isso ainda é bem pouco em comparação às melhorias que vêm sendo implementadas no Brasil em diversas áreas, e que a educação não avança no mesmo passo da economia como um todo.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Dia do professor
Uma das qualidades mais nobres do ser humano é a gratidão. Infelizmente, é uma das menos valorizadas numa sociedade que vive de manipulações, discursos convenientes e sentimentos calculados.
Eu ainda acredito na gratidão. E o dia dos professores é uma data especial, em que muitas pessoas entram em contato conosco para expressar o carinho que talvez não tivessem podido demonstrar durante nosso tempo de convívio.
Uma vez um professor comentou, a respeito de um belo filme cujo nome me falha agora: "- Nós, professores, temos uma certa melancolia toda a vez que um ciclo se encerra, porque não podemos ver o resultado final de todo nosso esforço". Isso é verdade. Uma semente que se planta hoje pode só frutificar muito tempo depois. Eu costumo dizer que nós não reconhecemos os bons professores enquanto temos aulas com eles, porque só bem depois de formados é que compreenderemos qual a real importância daquelas aulas em nossa formação como um todo. Só depois de consolidadas as principais etapas da construção de nossa identidade e de nossa cidadania é que entenderemos determinadas colocações, determinadas broncas, determinadas solicitações. É nesse momento que temos vontade de olhar para trás e ir buscar os alicerces dessa construção, e os pedreiros que nos ajudaram a levantá-los. O dia 15 de outubro representa uma oportunidade nesse sentido.
sábado, 10 de outubro de 2009
Autocrítica e divã
Estou realmente preocupado com o tecnicismo na educação. Chego a pensar que fiquei um pouco paranóico, vendo essa tendência em tudo quanto é documento ou fala que aparece. Ontem, disse a meus alunos da Pedagogia que nós conhecemos melhor as pessoas se prestamos atenção às críticas que elas fazem às outras. Toda vez que criticamos algo, ou alguém, indicamos um aspecto que nos incomoda, e assim revelamos um pouco de nossas fraquezas e nossas limitações. Talvez o tecnicismo incomode tanto porque não sei receber ordens.
Sei que não posso escrever isso numa ficha de emprego, nem confessar a um entrevistador numa seleção, mas esta é a mais pura verdade. Tenho de esforçar muito para cumprir determinações das quais discordo, e não consigo ser polido ao ouvir um "cumpra-se" sem entendê-lo ou considerá-lo pertinente. Isso pode ser qualidade ou defeito da minha personalidade, conforme o ponto de vista e a posição em que esteja no relacionamento com outras pessoas. E é uma postura recente, que só aflorou depois de cinco anos de análise em que boa parte das minhas culpas foram repensadas e descobri que não precisava ser perfeito nem agradar todo mundo.
Julgo que essa rebeldia interior me tornou insuportável para muita gente. Vejo que muitos me olham de lado depois de alguma discussão ou intervenção propositiva de minha parte. Sou arrogante, irônico e insubmisso com meus superiores, muito pouco político e, por vezes, irresponsável e exagerado em certas atitudes. O curioso é que isso me faz bem. Eu não sou uma pessoa agressiva na aparência, mas sou muito tenso por dentro. Então, quando coloco para fora minhas emoções, sinto-me melhor, menos massacrado. Sei que é feio dizer isso, mas muitas vezes gosto de dar respostas na lata, ou manifestar meu desagrado com determinadas coisas, ou mesmo agir de forma irreverente e desestabilizadora, e, com isso, constranger ou assustar pessoas que me incomodam.
A outra face da moeda da minha constante insatisfação é a recusa da disciplina individual. Parece, às vezes, que nem de mim mesmo aceito ordens! Faço programações e mais programações, preencho agendas, juro que vou fazer isto e aquilo, e no final acabo cedendo ao cansaço, à preguiça, ou até mesmo ao assédio dos pequenos prazeres da vida. Não sou workaholic, definitivamente. Por outro lado, quando estou fazendo algo de que gosto, não me incomodo de fazê-lo o dia inteiro (isso inclui, por exemplo, estudar, ler, ouvir música, fazer música, lecionar literatura e história em condições de diálogo com os alunos, namorar, corrigir textos dos outros e usar a internet). A verdade é que não deixo de cumprir prazos, mas sempre procrastino, ponho os deveres incômodos no fim e entrego tudo na última hora. E isso causa desgaste, porque sei que não devia ser assim e que acabo limitando meus potenciais.
Se me perguntarem, entretanto, porque não mudo esse comportamento inquieto e rebelde, uma vez que constato sua inadequação, posso responder que ele me convém muitas vezes, faz parte da minha identidade - que levou décadas para ser construída - e traz alguns pontos positivos, como a ousadia de experimentar e a sensação de renovação constante de meus paradigmas e modos de atuação. Posso dizer, por exemplo, que, até por compreender a dificuldade que tenho em relação a isso, não sou um professor autoritário, e lido bem com a insubmissão dos alunos, embora fique furioso ao ser ofendido ou imitado (algo com o que ainda não sei lidar). Posso dizer, além disso, que concebo disciplina como envolvimento, evito ficar lamentando a incapacidade de obediência dos meninos e centro meus esforços na criação de estratégias para que eles colaborem. Posso dizer, também, que, com uma ou outra exceção, meus alunos não têm medo de mim e me respeitam tanto como profissional quanto como pessoa, muitos deles tornando-se até meus amigos depois do período de convívio em aula. Creio que isso se deva em grande parte ao fato de não me considerarem uma figura artificial, e se sentirem à vontade para dizer e ouvir coisas não ensaiadas e relevantes.
Por causa de tudo isso, e por acreditar na autonomia intelectual do profissional de educação, não consigo levar a sério as broncas que tomamos quando aparecem números de Prova São Paulo ou outros instrumentos que não agradam a fulano ou beltrano; tampouco consigo atender às "orientações" - vulgo ordens - referentes a posturas que devo tomar em sala de aula, soltando ameaças veladas para os alunos ou mentindo sobre datas, intenções de reposição, fechamento de notas e faltas, etc.; também é praticamente impossível para mim alterar os combinados arduamente conquistados da relação professor -aluno em função de determinações de gabinete; principalmente, não consigo colocar em prática na sala de aula algo que não repute como útil ou positivo para a educação, e tendo a só mudar a minha prática quando estou intimamente convencido de que há um meio melhor de fazer o que estou fazendo. Em função de todas essas inaptidões, creio que não tenho espaço num mundo de aplicadores de aula, e não conseguirei "render" dentro da noção de produtividade educacional que começa a tomar corpo e alma nas propostas de secretarias e ministérios pelo Brasil e mundo afora.
Entretanto, para desespero geral dos que não gostam de mim, eu passo em concursos. E são eles que me garantem esse vínculo com o Estado - que entendo como um vínculo com as necessidades da população. E enquanto eu conseguir garantir legalmente esse vínculo e ser respeitado por essa população que é beneficiária do meu trabalho, as pessoas terão de lidar com minha rebeldia.
Ou podem me convencer a mudar. Mas para isso será preciso primeiro demonstrar com argumentos bem construídos que há um caminho melhor, que pode ser trilhado com segurança e defendido com convicção. Pela força, pela imposição, pelas promessas de prêmio à obediência e ao silêncio, por essas estratégias de gerenciamento que o tecnicismo e o neoliberalismo educacional adotaram para controlar os profissionais de educação, não será possível dobrar pessoas com as minhas características.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Entrevista com a professora Clarissa Suzuki
Por mais que queira criar aqui um espaço de discussão sobre as questões ligadas à educação, o fato de escrever sozinho torna este espaço expressão de pontos de vista individuais e particulares, ainda que reflitam demandas da profissão. Na tentativa de minimizar esse defeito, inerente às características do blog enquanto veículo midiático, inicio, hoje, a publicação de uma série de microentrevistas com profissionais da educação que considero terem muito a acrescentar para nossos debates.
A primeira delas traz a notável professora de Artes Clarissa Suzuki, com quem tive a felicidade de trabalhar há dois anos atrás. Dedicada, competente, entusiasmada e visionária, ela foi responsável por trabalhos diferenciados com os alunos que atéhoje são lembrados na escola. Militante, ela participa de um coletivo de lutas que atua dentro do SINPEEM, cujo endereço é este aqui.
Segue a entrevista:
1) Você milita pela educação já há algum tempo, participando ativamente de reuniões e manifestações do SINPEEM. Você está satisfeita com a atuação do sindicato em relação à defesa da categoria?
Não estou satisfeita com a atuação do grupo que o dirige nosso sindicato, porque o SINPEEM SOMOS NÓS, mas infelizmente ficamos a mercê das decisões pautadas nos interesses político-partidários de alguns dirigentes, no seu mandato burocrático e não na luta em defesa dos interesses da categoria. Exponho minha indignação não somente como militante sindical, mas principalmente como parte orgânica desta classe que há anos não tem aumento real de salário e não vê melhora em suas condições de trabalho e ampliação de direitos. Nós, da base, temos que buscar o debate democrático, a construção da unidade para a mobilização na luta por nossos direitos, já que esta direção não o faz, faremos nós mesmos.
2) Trabalhei com você e sei de seu profissionalismo e sua competência. Quais são os desafios, hoje, para conseguir efetivar um bom resultado em sala de aula?
Acredito que todo intelectual deva ser orgânico como nós apontou Gramsci e todo professor deva ser o exemplo da teoria que ele ensina, como nós ensinou o mestre Paulo Freire. Sendo assim, concebo que todo educador tem que ser um estudioso, um intelectual, mas, principalmente, deve ser um ativista, um conhecedor e defensor dos seus direitos e deveres, um profissional que tenha a consciência da sua função e importância social, para assim, assumir o seu legitimo papel de educador. E esse é um dos grandes desafios, o educador estar preparado para dialogar com diversas gerações e culturas, preparado para resolver seus problemas profissionais e funcionais, reconhecer os problemas estruturais que dificultam o desenvolvimento do seu trabalho e agir para que, nas esferas administrativas/políticas eles se resolvam. Porém, o bom resultado do nosso trabalho não se resume a esta consciência da nossa condição enquanto educadores, temos que encarar todos os dias a falta de condições materiais para o desenvolvimento social da população, nos depararmos todos os dias com a violência, a fome, o desemprego, a alienação midiática nos rostos das nossas crianças. Todas as novas teorias pedagógicas são eficientes no papel, mas todo este histórico que citei acima é considerado? Quando poderemos saber se nosso trabalho alcançou “seu máximo” nas condições de trabalho que temos? Quando saberemos se nossos alunos se desenvolveram plenamente considerando as mínimas condições materiais que possuem? No sistema capitalista, todo o resultado que alcançarmos na educação, nunca será parâmetro para julgar como bom resultado obtido em sala de aula, pois temos tantos empecilhos, tantos problemas, que dificilmente alguém teria um desenvolvimento pleno a partir das condições históricas que estão postas.
3) Quais são suas principais referências teóricas para embasar sua prática em sala de aula?
Marx, com o materialismo-dialético-histórico, Gramsci, Paulo Freire, Demerval Saviani, Vigotsky... Esses são os que mais leio atualmente e me identifico, mas tenho plena consciência que tudo que já li até hoje, ouvi e vivi, são referências assimiladas na minha prática.
4) Alguma vez você pensa ou pensou em largar a profissão? Por quê?
Nunca. Aliás, eu saí da esfera da produção artística para me dedicar mais à escola e à militância. Sou uma arte-educadora apaixonada pelo que faço, sonhadora e crente na transformação do homem e da sociedade. Os sorrisos, os gritos, as vidas que partilho todos os dias é o que me faz acordar muito cedo, ganhar pouco, estudar cada dia mais e ter muita vontade de fazer a diferença e não para suprir uma vaidade egocêntrica, mas por perceber que faço parte “destas histórias”, por me sentir parte orgânica de tudo que vivo.
A primeira delas traz a notável professora de Artes Clarissa Suzuki, com quem tive a felicidade de trabalhar há dois anos atrás. Dedicada, competente, entusiasmada e visionária, ela foi responsável por trabalhos diferenciados com os alunos que atéhoje são lembrados na escola. Militante, ela participa de um coletivo de lutas que atua dentro do SINPEEM, cujo endereço é este aqui.
Segue a entrevista:
1) Você milita pela educação já há algum tempo, participando ativamente de reuniões e manifestações do SINPEEM. Você está satisfeita com a atuação do sindicato em relação à defesa da categoria?
Não estou satisfeita com a atuação do grupo que o dirige nosso sindicato, porque o SINPEEM SOMOS NÓS, mas infelizmente ficamos a mercê das decisões pautadas nos interesses político-partidários de alguns dirigentes, no seu mandato burocrático e não na luta em defesa dos interesses da categoria. Exponho minha indignação não somente como militante sindical, mas principalmente como parte orgânica desta classe que há anos não tem aumento real de salário e não vê melhora em suas condições de trabalho e ampliação de direitos. Nós, da base, temos que buscar o debate democrático, a construção da unidade para a mobilização na luta por nossos direitos, já que esta direção não o faz, faremos nós mesmos.
2) Trabalhei com você e sei de seu profissionalismo e sua competência. Quais são os desafios, hoje, para conseguir efetivar um bom resultado em sala de aula?
Acredito que todo intelectual deva ser orgânico como nós apontou Gramsci e todo professor deva ser o exemplo da teoria que ele ensina, como nós ensinou o mestre Paulo Freire. Sendo assim, concebo que todo educador tem que ser um estudioso, um intelectual, mas, principalmente, deve ser um ativista, um conhecedor e defensor dos seus direitos e deveres, um profissional que tenha a consciência da sua função e importância social, para assim, assumir o seu legitimo papel de educador. E esse é um dos grandes desafios, o educador estar preparado para dialogar com diversas gerações e culturas, preparado para resolver seus problemas profissionais e funcionais, reconhecer os problemas estruturais que dificultam o desenvolvimento do seu trabalho e agir para que, nas esferas administrativas/políticas eles se resolvam. Porém, o bom resultado do nosso trabalho não se resume a esta consciência da nossa condição enquanto educadores, temos que encarar todos os dias a falta de condições materiais para o desenvolvimento social da população, nos depararmos todos os dias com a violência, a fome, o desemprego, a alienação midiática nos rostos das nossas crianças. Todas as novas teorias pedagógicas são eficientes no papel, mas todo este histórico que citei acima é considerado? Quando poderemos saber se nosso trabalho alcançou “seu máximo” nas condições de trabalho que temos? Quando saberemos se nossos alunos se desenvolveram plenamente considerando as mínimas condições materiais que possuem? No sistema capitalista, todo o resultado que alcançarmos na educação, nunca será parâmetro para julgar como bom resultado obtido em sala de aula, pois temos tantos empecilhos, tantos problemas, que dificilmente alguém teria um desenvolvimento pleno a partir das condições históricas que estão postas.
3) Quais são suas principais referências teóricas para embasar sua prática em sala de aula?
Marx, com o materialismo-dialético-histórico, Gramsci, Paulo Freire, Demerval Saviani, Vigotsky... Esses são os que mais leio atualmente e me identifico, mas tenho plena consciência que tudo que já li até hoje, ouvi e vivi, são referências assimiladas na minha prática.
4) Alguma vez você pensa ou pensou em largar a profissão? Por quê?
Nunca. Aliás, eu saí da esfera da produção artística para me dedicar mais à escola e à militância. Sou uma arte-educadora apaixonada pelo que faço, sonhadora e crente na transformação do homem e da sociedade. Os sorrisos, os gritos, as vidas que partilho todos os dias é o que me faz acordar muito cedo, ganhar pouco, estudar cada dia mais e ter muita vontade de fazer a diferença e não para suprir uma vaidade egocêntrica, mas por perceber que faço parte “destas histórias”, por me sentir parte orgânica de tudo que vivo.
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Matéria fundamental da Revista Educação
Olha, esta matéria é simplesmente excelente. Vale a pena ser lida até o fim. Houve um trabalho jornalístico sério, sem aqueles comentários infames característicos de matérias do gênero.
Em vez de discutir números descontextualizados, vamos discutir isso que a reportagem traz: o modo de vida das pessoas que trabalham com educação, e o que elas pensam sobre sua atuação social.
Note que os professores simplesmente não querem essa profissão para seus filhos, que dois deles lidam ou lidaram com situações de risco, que a voz do profissional vai sendo destruída no decorrer dos anos em função dos problemas com disciplina.
Note, ainda, que há um quadro, no final da reportagem, atestando a disposição do Estado de boicotar matérias desse tipo.
Imperdível.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Eu não acredito em reposição de aulas
Quando você assiste a uma partida de futebol ou um capítulo de novela na televisão, o grau de ansiedade em relação àquilo que você vê é importante, não é? Se você já sabe ou supõe o resultado ou o desenlace da trama, as emoções são diferentes, não são? Você vê a mesma coisa, mas a situação emocional em que voce se encontra interfere na sua assimilação daquilo que viu, não é verdade?
Pois bem, penso que as aulas que temos de "repor", segundo exigência constitucional levada ao pé da letra e a ferro e fogo por Prefeitura e Estado de São Paulo, não são a mesma coisa que as aulas que teríamos durante o período de extensão do recesso. Alunos e professores não esperam dessas aulas o mesmo que esperavam das que teriam no calendário regular. Não é razoável supor que a aula que estava programada para a segunda-feira, dia 3 de agosto, pudesse se repetir da mesma forma no primeiro dia de reposição (no nosso caso, dia 22 último). E não só porque o conteúdo é necessariamente diferente, visto já termos dado início aos trabalhos no decorrer da semana. A questão é que a situação não é a mesma.
Neste segundo semestre, oito das semanas letivas terão aulas aos sábados. Isso muda muita coisa além da sequência didática. Os professores e os alunos terão, nessas semanas, um dia a menos de descanso (não só o descanso físico e psicológico individual, mas um muito necessário e muito pouco lembrado descanso da relação dialógica e de poder que mantêm). Professores e alunos, assim, terão modificações em seus ritmos de trabalho/estudo, e terão de deixar de lado atividades reservadas para os fins de semana, como cursos, passeios, ou visitas a parentes. As aulas aos sábados, portanto, necessitarão de um fator extra de motivação, que compense a expectativa frustrada de lazer ou repouso.
Além disso, só o fato de haver um dia a mais no calendário, e de ser um dia não previsto, já enseja um olhar diferenciado. O momento psicológico da aula - que, diga-se de passagem, faz toda a diferença - é completamente outro, e não comporta a reprodução de uma rotina didática mínima necessária, estabelecida nos encontros já previstos desde o início do ano. Alguns podem argumentar que é só um deslocamento de datas, mas eu não acredito nisso. Já dei aula em véspera de jogo do Brasil na Copa, em dias de tragédia na comunidade, em situações várias que, de alguma forma, entraram na sala de aula e transformaram aquilo que eu havia programado. Nós lidamos com pessoas, com grupos de pessoas, e, por consequência, com disposições flutuantes, que dependem de fatores dos quais não temos controle.
Penso ainda, para completar o raciocínio, que, na verdade, reposição de aulas é um título burocrático para uma garantia legal dos alunos. Não acho que, na prática, exista reposição. Eu não reponho aulas: eu dou aulas em datas diferentes para completar o mínimo legal estabelecido. Mas isso implica que eu dê aulas de formas diferentes, com estruturas diferentes, com finalidades diferentes. A educação não é matemática, porque a relação entre os seres humanos não é uma contabilidade de ações. Administrar duas semanas de recesso não é uma simples questão de tirar uma aula aqui e colocar uma ali, e tudo ficar numa boa.
Quarenta e cinco minutos de aula não são quarenta e cinco minutos de aprendizagem, assim como duzentos dias letivos não são necessariamente duzentos dias de trabalho produtivo. Podem ser menos, podem ser mais, pode-se render menos, pode-se render mais que o esperado. Se as determinações quantificáveis da educação fossem, por si só, garantia de aprendizagem, a educação teria melhorado com os aumentos de carga horária e de dias letivos dos últimos anos, e isso não aconteceu. Se a quantidade de tempo em sala ou a quantidade de dias na escola fossem garantia de sucesso educacional, por que os teóricos fariam referência ao ritmo de cada aluno, à necessidade de situações propícias e ao tempo de maturação de cada etapa de desenvolvimento intelectual?
Pensando em tudo isso, creio que as aulas ditas reposições deveriam se caracterizar por serem momentos especiais e diferenciados, com a possibilidade de desenvolver atividades não rotineiras e experimentar novas possibilidades na relação professor-aluno, e na exploração dos espaços escolares de lazer e aproximação da comunidade.
Pois bem, penso que as aulas que temos de "repor", segundo exigência constitucional levada ao pé da letra e a ferro e fogo por Prefeitura e Estado de São Paulo, não são a mesma coisa que as aulas que teríamos durante o período de extensão do recesso. Alunos e professores não esperam dessas aulas o mesmo que esperavam das que teriam no calendário regular. Não é razoável supor que a aula que estava programada para a segunda-feira, dia 3 de agosto, pudesse se repetir da mesma forma no primeiro dia de reposição (no nosso caso, dia 22 último). E não só porque o conteúdo é necessariamente diferente, visto já termos dado início aos trabalhos no decorrer da semana. A questão é que a situação não é a mesma.
Neste segundo semestre, oito das semanas letivas terão aulas aos sábados. Isso muda muita coisa além da sequência didática. Os professores e os alunos terão, nessas semanas, um dia a menos de descanso (não só o descanso físico e psicológico individual, mas um muito necessário e muito pouco lembrado descanso da relação dialógica e de poder que mantêm). Professores e alunos, assim, terão modificações em seus ritmos de trabalho/estudo, e terão de deixar de lado atividades reservadas para os fins de semana, como cursos, passeios, ou visitas a parentes. As aulas aos sábados, portanto, necessitarão de um fator extra de motivação, que compense a expectativa frustrada de lazer ou repouso.
Além disso, só o fato de haver um dia a mais no calendário, e de ser um dia não previsto, já enseja um olhar diferenciado. O momento psicológico da aula - que, diga-se de passagem, faz toda a diferença - é completamente outro, e não comporta a reprodução de uma rotina didática mínima necessária, estabelecida nos encontros já previstos desde o início do ano. Alguns podem argumentar que é só um deslocamento de datas, mas eu não acredito nisso. Já dei aula em véspera de jogo do Brasil na Copa, em dias de tragédia na comunidade, em situações várias que, de alguma forma, entraram na sala de aula e transformaram aquilo que eu havia programado. Nós lidamos com pessoas, com grupos de pessoas, e, por consequência, com disposições flutuantes, que dependem de fatores dos quais não temos controle.
Penso ainda, para completar o raciocínio, que, na verdade, reposição de aulas é um título burocrático para uma garantia legal dos alunos. Não acho que, na prática, exista reposição. Eu não reponho aulas: eu dou aulas em datas diferentes para completar o mínimo legal estabelecido. Mas isso implica que eu dê aulas de formas diferentes, com estruturas diferentes, com finalidades diferentes. A educação não é matemática, porque a relação entre os seres humanos não é uma contabilidade de ações. Administrar duas semanas de recesso não é uma simples questão de tirar uma aula aqui e colocar uma ali, e tudo ficar numa boa.
Quarenta e cinco minutos de aula não são quarenta e cinco minutos de aprendizagem, assim como duzentos dias letivos não são necessariamente duzentos dias de trabalho produtivo. Podem ser menos, podem ser mais, pode-se render menos, pode-se render mais que o esperado. Se as determinações quantificáveis da educação fossem, por si só, garantia de aprendizagem, a educação teria melhorado com os aumentos de carga horária e de dias letivos dos últimos anos, e isso não aconteceu. Se a quantidade de tempo em sala ou a quantidade de dias na escola fossem garantia de sucesso educacional, por que os teóricos fariam referência ao ritmo de cada aluno, à necessidade de situações propícias e ao tempo de maturação de cada etapa de desenvolvimento intelectual?
Pensando em tudo isso, creio que as aulas ditas reposições deveriam se caracterizar por serem momentos especiais e diferenciados, com a possibilidade de desenvolver atividades não rotineiras e experimentar novas possibilidades na relação professor-aluno, e na exploração dos espaços escolares de lazer e aproximação da comunidade.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
Dois blogs
Coloquei aí do lado um blogroll, no qual destaquei dois esforços que merecem visita.
Um deles é um apanhado de notícias sobre educação, algo que eu queria fazer, e que, graças a Deus, já fizeram por mim. É o Observatório da Educação.
Outro é a página de um colega dos tempos de Filosofia, o Edu, que já era brilhante naquele tempo, e que traz muitas reflexões bacanas e importantes para quem trabalha com educação. São as Crônicas de Escola.
Valem a visita constante.
Um deles é um apanhado de notícias sobre educação, algo que eu queria fazer, e que, graças a Deus, já fizeram por mim. É o Observatório da Educação.
Outro é a página de um colega dos tempos de Filosofia, o Edu, que já era brilhante naquele tempo, e que traz muitas reflexões bacanas e importantes para quem trabalha com educação. São as Crônicas de Escola.
Valem a visita constante.
sábado, 20 de junho de 2009
Perspectivas
Publicaram meu salário na página da Prefeitura de São Paulo. Quem teve a curiosidade de acessar - confesso que nem eu mesmo tive - deve ter pensado que ganho mais do que realmente ganho, porque o que foi publicado foi o bruto, e não o líquido.
Eu concordo com necessidade de divulgar com transparência as contas públicas, mas achei meio desastrada essa iniciativa de publicar salários de cada pessoa individualmente. Isso realmente acaba expondo o funcionário, e é desnecessário: se você publica dados, por exemplo, sobre a folha de pagamento de determinada instituição, você continua sendo transparente, sem expor ninguém em particular.
Acho de mau gosto colocar meus rendimentos aqui, porque ninguém tem nada a ver com isso. Os que ganham mais que eu entenderiam como lamento, os que ganham menos entenderiam como esnobação. Tenho consciência de que ganho mais que a média da população brasileira, e, ao mesmo tempo, posso afirmar que ganho pouco em relação à importância estratégica de minha profissão para o desenvolvimento do país.
Quanto ao assunto salários, bato sempre na mesma tecla a esse respeito: números não são tudo, nem dizem tudo. Quero exemplificar com uma outra lista da qual fiz parte, essa há umas três semanas atrás. Trata-se da lista de aprovados no concurso do Instituto Federal de Educação, instituição na qual estudei quando ainda era Escola Técnica Federal. Passei em quinto lugar, o que me encheu de orgulho e satisfação, visto serem muito bons os candidatos.
Na verdade, eu não sabia minha colocação até o rapaz do RH do Instituto me telefonar perguntando se eu teria disponibilidade para início imediato. Foi tentador, mas tive de declinar da oferta. Os horários da faculdade e da Prefeitura chocavam-se com o horário oferecido, e eu seria obrigado a abandonar dois cargos, o que ainda não posso fazer. Ainda assim, a perspectiva de trabalhar numa instituição tão próxima de minha história de vida me deixou em dúvida, e eu até titubeei antes de recusar. Entretanto, pesou, mais que salário (menor que o da Prefeitura e da faculdade), mais que horários (incompatíveis), mais que tudo, um detalhe crucial: o caráter provisório da contratação. O contrato previa que eu só poderia trabalhar dois anos, findos os quais teria de ficar no mínimo outros dois sem trabalhar lá. Isso, para mim, foi o que fez pender a balança.
E, pelo jeito, foi o que pesou para todo mundo. Quando fui conferir, copiar e colar a lista de aprovados que saiu no Diário Oficial da União, vi que havia quatro pessoas na minha frente. Obviamente, mais qualificadas que eu nos critérios estabelecidos. Fiquei sondando por que razão nenhuma das quatro teria preenchido a vaga para a qual concorríamos. Salário? Incompatibilidade de horários? Plano de carreira? Outras razões?
O Instituto Federal de Educação de São Paulo é uma das instituições mais respeitadas e admiradas que conheço. Não são poucas as pessoas que fariam de tudo para trabalhar lá, ou fariam opção por ele mesmo tendo propostas economicamente mais atraentes. Não sei qual seria a razão do não preenchimento da vaga, mas imagino que este possa ser um exemplo de como fatores extrassalariais, no caso a perspectiva profissional a longo prazo, afastam os melhores profissionais dos postos que eles tanto precisariam ocupar. Como querer que um profissional, mestre, ou doutor, ou com gabarito de ter lecionado em vários lugares, e talvez com perspectiva de trabalhar em vários outros, aceite um tipo de contrato escrito de forma a evitar a caracterização de vínculo entre ele e a instituição em que trabalhará por, no mínimo, dois anos? É evidente que, neste caso, a seleção não conseguirá o melhor quadro.
Ouvi dizer que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está pensando em empregar professores com contratos desse tipo. Vai acontecer a mesma coisa, e depois vão ficar falando mal da gente. Se as perspectivas de trabalho não forem atraentes, as pessoas procurarão outras vagas, até fora da educação. Isso é óbvio, é a lei do mercado, que tanto é invocada para justificar cortes orçamentários e pauperizar a educação, mas que tantas vezes é esquecida também, quando convém.
Não considero ideal, mas até entendo a necessidade de contratos assim para preencher vagas ociosas com certa urgência em certas instituições. Mas adotar isso como modelo de contratação é muito perigoso. Eu defendo que a educação traga para seus quadros os melhores e mais gabaritados profissionais. Nesse sentido, é preciso rever valores, sim, e construir um sistema que permita ao professor programar-se para um trabalho de permanência na instituição e obtenção de resultados e excelência a longo prazo.
Podem publicar meu salário sem autorização, podem compará-lo com o que quiserem, podem dizer que ganho bem e choro de barriga cheia, que professor é privilegiado, etc. Quem entende um pouco de educação sabe quais são as consequências desse tipo de discurso desqualificador, e não leva isso a sério. Por outro lado, se houver maior confiança, maior investimento, maior aposta no professor, com certeza haverá melhores resultados. Na educação, só é possível fazer mais com mais. Experiência própria.
Eu concordo com necessidade de divulgar com transparência as contas públicas, mas achei meio desastrada essa iniciativa de publicar salários de cada pessoa individualmente. Isso realmente acaba expondo o funcionário, e é desnecessário: se você publica dados, por exemplo, sobre a folha de pagamento de determinada instituição, você continua sendo transparente, sem expor ninguém em particular.
Acho de mau gosto colocar meus rendimentos aqui, porque ninguém tem nada a ver com isso. Os que ganham mais que eu entenderiam como lamento, os que ganham menos entenderiam como esnobação. Tenho consciência de que ganho mais que a média da população brasileira, e, ao mesmo tempo, posso afirmar que ganho pouco em relação à importância estratégica de minha profissão para o desenvolvimento do país.
Quanto ao assunto salários, bato sempre na mesma tecla a esse respeito: números não são tudo, nem dizem tudo. Quero exemplificar com uma outra lista da qual fiz parte, essa há umas três semanas atrás. Trata-se da lista de aprovados no concurso do Instituto Federal de Educação, instituição na qual estudei quando ainda era Escola Técnica Federal. Passei em quinto lugar, o que me encheu de orgulho e satisfação, visto serem muito bons os candidatos.
Na verdade, eu não sabia minha colocação até o rapaz do RH do Instituto me telefonar perguntando se eu teria disponibilidade para início imediato. Foi tentador, mas tive de declinar da oferta. Os horários da faculdade e da Prefeitura chocavam-se com o horário oferecido, e eu seria obrigado a abandonar dois cargos, o que ainda não posso fazer. Ainda assim, a perspectiva de trabalhar numa instituição tão próxima de minha história de vida me deixou em dúvida, e eu até titubeei antes de recusar. Entretanto, pesou, mais que salário (menor que o da Prefeitura e da faculdade), mais que horários (incompatíveis), mais que tudo, um detalhe crucial: o caráter provisório da contratação. O contrato previa que eu só poderia trabalhar dois anos, findos os quais teria de ficar no mínimo outros dois sem trabalhar lá. Isso, para mim, foi o que fez pender a balança.
E, pelo jeito, foi o que pesou para todo mundo. Quando fui conferir, copiar e colar a lista de aprovados que saiu no Diário Oficial da União, vi que havia quatro pessoas na minha frente. Obviamente, mais qualificadas que eu nos critérios estabelecidos. Fiquei sondando por que razão nenhuma das quatro teria preenchido a vaga para a qual concorríamos. Salário? Incompatibilidade de horários? Plano de carreira? Outras razões?
O Instituto Federal de Educação de São Paulo é uma das instituições mais respeitadas e admiradas que conheço. Não são poucas as pessoas que fariam de tudo para trabalhar lá, ou fariam opção por ele mesmo tendo propostas economicamente mais atraentes. Não sei qual seria a razão do não preenchimento da vaga, mas imagino que este possa ser um exemplo de como fatores extrassalariais, no caso a perspectiva profissional a longo prazo, afastam os melhores profissionais dos postos que eles tanto precisariam ocupar. Como querer que um profissional, mestre, ou doutor, ou com gabarito de ter lecionado em vários lugares, e talvez com perspectiva de trabalhar em vários outros, aceite um tipo de contrato escrito de forma a evitar a caracterização de vínculo entre ele e a instituição em que trabalhará por, no mínimo, dois anos? É evidente que, neste caso, a seleção não conseguirá o melhor quadro.
Ouvi dizer que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está pensando em empregar professores com contratos desse tipo. Vai acontecer a mesma coisa, e depois vão ficar falando mal da gente. Se as perspectivas de trabalho não forem atraentes, as pessoas procurarão outras vagas, até fora da educação. Isso é óbvio, é a lei do mercado, que tanto é invocada para justificar cortes orçamentários e pauperizar a educação, mas que tantas vezes é esquecida também, quando convém.
Não considero ideal, mas até entendo a necessidade de contratos assim para preencher vagas ociosas com certa urgência em certas instituições. Mas adotar isso como modelo de contratação é muito perigoso. Eu defendo que a educação traga para seus quadros os melhores e mais gabaritados profissionais. Nesse sentido, é preciso rever valores, sim, e construir um sistema que permita ao professor programar-se para um trabalho de permanência na instituição e obtenção de resultados e excelência a longo prazo.
Podem publicar meu salário sem autorização, podem compará-lo com o que quiserem, podem dizer que ganho bem e choro de barriga cheia, que professor é privilegiado, etc. Quem entende um pouco de educação sabe quais são as consequências desse tipo de discurso desqualificador, e não leva isso a sério. Por outro lado, se houver maior confiança, maior investimento, maior aposta no professor, com certeza haverá melhores resultados. Na educação, só é possível fazer mais com mais. Experiência própria.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Valores
Pediram-me uns alunos do curso de Pedagogia que eu corrigisse seu TCC. Atolado de atribuições, adiei a leitura e correção do trabalho até uma data confortável, na qual pudesse aplicar-me com a integridade devida à leitura. Calculei que, finalizando meus apontamentos numa antecedência de até dez dias da entrega, daria tempo para que verificassem as alterações necessárias.
Faltavam justamente dez dias para a entrega quando encontrei um dos alunos. Cobrou-me do trabalho. Respondi que já o estava encaminhando, com as devidas observações, e que no dia seguinte estaria pronto. Surpreendi-me com a afirmação de que não seria mais preciso.
- Por quê? Vocês não têm de entregar daqui a dez dias?
- Ah, sim. Mas tem feriado esta semana.
- E vocês não vão mexer no trabalho no feriado?
- Não, né!
E não sei descrever esse último "não, né!". Parafraseando, seria algo como "é óbvio que não, são quatro dias de feriado e vamos viajar e ninguém vai ser tonto de ler nem escrever nada do TCC", dito com um sorriso que mofava de minha "inocência", mas sincero, e algo cínico, se é que isso é possível.
Findo o diálogo, passou um filme na minha cabeça. Meus dias de estudante. Minhas leituras feitas nos fins de semana. Quantas reuniões de grupo. Trabalhos exaustivamente corrigidos até quase minutos antes da entrega. Meus dias de mestrando. As últimas semanas antes do depósito da dissertação. Minha leitura minuciosa e desesperada de cada parágrafo três vezes antes da impressão definitiva. Os dois dias sem dormir antes da defesa. Tudo.
Fiquei me perguntando se eu levo as coisas a sério demais, ou se aqueles alunos levavam as coisas a sério de menos. Conversei com algumas pessoas, expliquei a cena, expus meu pasmo. A coisa mais sensata que ouvi a respeito foi: a importância que você dá para certas coisas é diferente, seus valores são diferentes, você não pode querer que as outras pessoas tenham os mesmos valores que você.
Isso é sensato como conselho, mas ainda não me conformo. Na era da Internet, do MSN, do celular, das mensagens de texto, e de tudo o mais, cinco pessoas (já acho isso um absurdo, TCC grupal), a dez dias da entrega do trabalho mais importante de seu curso de graduação (trabalho com graves problemas de redação, diga-se de passagem) simplesmente não vão se falar, não vão se reunir, não vão fazer um mínimo esforço adicional para melhorar seu texto. O que haverá de tão mais importante que a entrega desse TCC para esses alunos? Gostaria de saber. Porque se é tão mais importante assim, eu bobeei em minha vida de estudante inteira e provavelmente continuo bobeando em minha vida de professor. Preciso entender essa escala de valores, antes que passe por situação similar e fique com a cara de besta que fiquei.
Faltavam justamente dez dias para a entrega quando encontrei um dos alunos. Cobrou-me do trabalho. Respondi que já o estava encaminhando, com as devidas observações, e que no dia seguinte estaria pronto. Surpreendi-me com a afirmação de que não seria mais preciso.
- Por quê? Vocês não têm de entregar daqui a dez dias?
- Ah, sim. Mas tem feriado esta semana.
- E vocês não vão mexer no trabalho no feriado?
- Não, né!
E não sei descrever esse último "não, né!". Parafraseando, seria algo como "é óbvio que não, são quatro dias de feriado e vamos viajar e ninguém vai ser tonto de ler nem escrever nada do TCC", dito com um sorriso que mofava de minha "inocência", mas sincero, e algo cínico, se é que isso é possível.
Findo o diálogo, passou um filme na minha cabeça. Meus dias de estudante. Minhas leituras feitas nos fins de semana. Quantas reuniões de grupo. Trabalhos exaustivamente corrigidos até quase minutos antes da entrega. Meus dias de mestrando. As últimas semanas antes do depósito da dissertação. Minha leitura minuciosa e desesperada de cada parágrafo três vezes antes da impressão definitiva. Os dois dias sem dormir antes da defesa. Tudo.
Fiquei me perguntando se eu levo as coisas a sério demais, ou se aqueles alunos levavam as coisas a sério de menos. Conversei com algumas pessoas, expliquei a cena, expus meu pasmo. A coisa mais sensata que ouvi a respeito foi: a importância que você dá para certas coisas é diferente, seus valores são diferentes, você não pode querer que as outras pessoas tenham os mesmos valores que você.
Isso é sensato como conselho, mas ainda não me conformo. Na era da Internet, do MSN, do celular, das mensagens de texto, e de tudo o mais, cinco pessoas (já acho isso um absurdo, TCC grupal), a dez dias da entrega do trabalho mais importante de seu curso de graduação (trabalho com graves problemas de redação, diga-se de passagem) simplesmente não vão se falar, não vão se reunir, não vão fazer um mínimo esforço adicional para melhorar seu texto. O que haverá de tão mais importante que a entrega desse TCC para esses alunos? Gostaria de saber. Porque se é tão mais importante assim, eu bobeei em minha vida de estudante inteira e provavelmente continuo bobeando em minha vida de professor. Preciso entender essa escala de valores, antes que passe por situação similar e fique com a cara de besta que fiquei.
sexta-feira, 10 de abril de 2009
O tempo
Hoje, numa reunião entre amigos, ouvi uma professora dizer que dava 65 aulas por semana. Fiquei chocado com essa carga de trabalho, mas parei um pouco para pensar e vi que, entre horas-aula e horas-atividade na escola, eu trabalho o equivalente a 56 aulas, das quais 45 são em sala de aula, 8 em reuniões de trabalho e 3 em sala dos professores, para planejamento. E vi também que eu não me admirara, até a fala dessa professora, da minha própria carga de trabalho. Provavelmente por pura falta de tempo para pensar a respeito.
Nos últimos meses constatei que a única forma de garantir um padrão de vida razoavelmente decente para um professor é desdobrar-se para atuar em mais de uma escola, ou cargo, ou trabalho. Eu já devia saber disso, mas como, nos anos anteriores, sempre dividi o tempo do estudo (faculdade e depois mestrado) com o tempo do magistério, julgava que a sobrecarga acabaria tão logo eu pudesse dedicar-me só aos meus empregos. Mas a experiência que venho tendo neste início de 2009 mostrou com muita clareza que essa sobrecarga é condição quase obrigatória da profissão.
Praticamente não conheço professores que tenham apenas um cargo, ou que não tenham outro emprego. A explicação é simples e clara como água: professores têm baixa remuneração. Os Ioschpes da vida terão sempre quadros e estatísticas mostrando que estamos entre os mais bem remunerados da sociedade, que ganhamos mais que vários setores profissionais, que aumentar nosso salário não melhora o ensino, etc. Mas a verdade é que cheguei até a enfrentar uma crise de identidade profissional este ano, porque não reconhecia em mim o mesmo professor de outrora. Com menos tempo para preparar aulas, ler e me atualizar, e minado pelo cansaço de uma jornada que envolve, além das horas de trabalho, pelo menos mais duas horas e meia de transporte público, comecei a me sentir inseguro em relação àquilo que falava em sala de aula. Numa das aulas que ministrei, num dia de intenso calor, fiz uma análise sintática de uma frase erroneamente, e tive de mandar um e-mail para a sala depois, desculpando-me pela falha. Mais tarde, vim a descobrir que a análise não estava errada, mas a nomenclatura havia-me fugido da mente em função do desgaste, e isso me confundira. Noutros momentos, entrei em sala de aula tão extenuado que trocava palavras, tinha lapsos de memória e fazia um esforço descomunal para não perder o fio da meada nas explanações.
Isso não são "ossos do ofício"; isso é falta de valorização. O trabalho do professor exige planejamento e replanejamento constantes. Não é possível lecionar sem preparar muito bem as aulas. Mas nós, professores, não podemos abrir mão de nossos cargos e nossos complementos de renda, simplesmente porque, se o fizéssemos, não teríamos dinheiro para investir em nós mesmos. Alguns acham que o ofício é necessariamente franciscano e sacerdotal; creio, entretanto, que a maioria de nós tem perfeita consciência de que, tanto quanto qualquer outro cidadão (até mais, em alguns aspectos), o professor precisa de conforto material, espaço para desenvolvimento intelectual, atualização, lazer. Um apartamento (não precisa ser de alto padrão), um carro (não precisa ser o do ano), uma poupança (não precisa ser de milhões), acesso ao que se produz de mais relevante na sua área do conhecimento, tudo isso é justo que um professor possa um dia ter, dada sua importância vital para o desenvolvimento da sociedade. No entanto, o valor que recebemos por nosso trabalho está aquém dessas necessidades, o que nos obriga a sacrificar um pouco do tempo de "reabastecimento" para podermos nos estruturar economicamente. Isso, queiramos ou não, acaba se refletindo na qualidade de nossas vidas, e também na qualidade de nossas aulas.
Há cerca de dez dias, comentei esse sentimento com meus alunos, que foram muito compreensivos e compassivos. Acredito estar desempenhando decentemente meu papel, até porque eles nunca reclamaram de minha atuação. Incomoda-me, entretanto, a facilidade com que esses mesmos alunos reconhecem meus sinais de cansaço e minha menor disponibilidade. Eu sei e eles sabem que eu poderia fazer melhor, não no sentido de ter maior dedicação, mas no de possuir melhor condicionamento físico e mental, para que a essa dedicação pudesse produzir melhores resultados.
Creio que um grande passo para solucionar esse problema quase crônico da profissão seria garantir, nas jornadas dos professores, quantidade razoável de horas-aula remuneradas voltadas para a preparação do material e para a pesquisa. A jornada de 40 horas em dedicação exclusiva, preconizada pelo MEC como ideal para o trabalho do docente universitário, parece-me um importante passo nesse sentido. Ela prevê espaços para pesquisa, elaboração de atividades e atendimento de alunos, permitindo aos professores "respirarem" um pouco entre as atuações em sala de aula; aponta, assim, para um reconhecimento de que o professor é, antes de tudo, um intelectual, um produtor de conhecimento e um crítico da literatura especializada de sua área. Infelizmente, essa jornada ainda é um privilégio de poucos, entre os quais não me incluo. Espero que o empenho adicional desta fase de minha carreira possa me render, futuramente, o direito a esse "privilégio"; no fundo, quero ser mais otimista: espero que eu não tenha, no futuro, de chamar esse direito de privilégio.
Nos últimos meses constatei que a única forma de garantir um padrão de vida razoavelmente decente para um professor é desdobrar-se para atuar em mais de uma escola, ou cargo, ou trabalho. Eu já devia saber disso, mas como, nos anos anteriores, sempre dividi o tempo do estudo (faculdade e depois mestrado) com o tempo do magistério, julgava que a sobrecarga acabaria tão logo eu pudesse dedicar-me só aos meus empregos. Mas a experiência que venho tendo neste início de 2009 mostrou com muita clareza que essa sobrecarga é condição quase obrigatória da profissão.
Praticamente não conheço professores que tenham apenas um cargo, ou que não tenham outro emprego. A explicação é simples e clara como água: professores têm baixa remuneração. Os Ioschpes da vida terão sempre quadros e estatísticas mostrando que estamos entre os mais bem remunerados da sociedade, que ganhamos mais que vários setores profissionais, que aumentar nosso salário não melhora o ensino, etc. Mas a verdade é que cheguei até a enfrentar uma crise de identidade profissional este ano, porque não reconhecia em mim o mesmo professor de outrora. Com menos tempo para preparar aulas, ler e me atualizar, e minado pelo cansaço de uma jornada que envolve, além das horas de trabalho, pelo menos mais duas horas e meia de transporte público, comecei a me sentir inseguro em relação àquilo que falava em sala de aula. Numa das aulas que ministrei, num dia de intenso calor, fiz uma análise sintática de uma frase erroneamente, e tive de mandar um e-mail para a sala depois, desculpando-me pela falha. Mais tarde, vim a descobrir que a análise não estava errada, mas a nomenclatura havia-me fugido da mente em função do desgaste, e isso me confundira. Noutros momentos, entrei em sala de aula tão extenuado que trocava palavras, tinha lapsos de memória e fazia um esforço descomunal para não perder o fio da meada nas explanações.
Isso não são "ossos do ofício"; isso é falta de valorização. O trabalho do professor exige planejamento e replanejamento constantes. Não é possível lecionar sem preparar muito bem as aulas. Mas nós, professores, não podemos abrir mão de nossos cargos e nossos complementos de renda, simplesmente porque, se o fizéssemos, não teríamos dinheiro para investir em nós mesmos. Alguns acham que o ofício é necessariamente franciscano e sacerdotal; creio, entretanto, que a maioria de nós tem perfeita consciência de que, tanto quanto qualquer outro cidadão (até mais, em alguns aspectos), o professor precisa de conforto material, espaço para desenvolvimento intelectual, atualização, lazer. Um apartamento (não precisa ser de alto padrão), um carro (não precisa ser o do ano), uma poupança (não precisa ser de milhões), acesso ao que se produz de mais relevante na sua área do conhecimento, tudo isso é justo que um professor possa um dia ter, dada sua importância vital para o desenvolvimento da sociedade. No entanto, o valor que recebemos por nosso trabalho está aquém dessas necessidades, o que nos obriga a sacrificar um pouco do tempo de "reabastecimento" para podermos nos estruturar economicamente. Isso, queiramos ou não, acaba se refletindo na qualidade de nossas vidas, e também na qualidade de nossas aulas.
Há cerca de dez dias, comentei esse sentimento com meus alunos, que foram muito compreensivos e compassivos. Acredito estar desempenhando decentemente meu papel, até porque eles nunca reclamaram de minha atuação. Incomoda-me, entretanto, a facilidade com que esses mesmos alunos reconhecem meus sinais de cansaço e minha menor disponibilidade. Eu sei e eles sabem que eu poderia fazer melhor, não no sentido de ter maior dedicação, mas no de possuir melhor condicionamento físico e mental, para que a essa dedicação pudesse produzir melhores resultados.
Creio que um grande passo para solucionar esse problema quase crônico da profissão seria garantir, nas jornadas dos professores, quantidade razoável de horas-aula remuneradas voltadas para a preparação do material e para a pesquisa. A jornada de 40 horas em dedicação exclusiva, preconizada pelo MEC como ideal para o trabalho do docente universitário, parece-me um importante passo nesse sentido. Ela prevê espaços para pesquisa, elaboração de atividades e atendimento de alunos, permitindo aos professores "respirarem" um pouco entre as atuações em sala de aula; aponta, assim, para um reconhecimento de que o professor é, antes de tudo, um intelectual, um produtor de conhecimento e um crítico da literatura especializada de sua área. Infelizmente, essa jornada ainda é um privilégio de poucos, entre os quais não me incluo. Espero que o empenho adicional desta fase de minha carreira possa me render, futuramente, o direito a esse "privilégio"; no fundo, quero ser mais otimista: espero que eu não tenha, no futuro, de chamar esse direito de privilégio.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Paradoxo
Ontem, na reunião de planejamento, surgiu uma situação curiosa. Os alunos voltariam às aulas no dia seguinte, mas estávamos proibidos de pedir que comprassem material. Isso porque a Prefeitura fornecerá um kit-demagogia a partir do dia 13 de março. Fomos orientados (orientações são os novos nomes dados às ordens na administração escolar) a não pedir que comprassem cadernos para as disciplinas durante esse período de um mês entre a volta às aulas e o recebimento do material. No lugar disso, incentivaríamos (incentivo é um novo nome dado à súplica nas relações com os alunos) que trouxessem cadernos antigos com folhas ainda em branco para anotarem as matérias dadas.
O intervalo de um mês acima citado abriga um paradoxo, pois os alunos receberão regras da escola logo no primeiro dia dizendo que têm de trazer o material necessário para frequentar as aulas. Entretanto, estamos proibidos de pedir que comprem esse material. Pergunto-me: se o aluno me disser que não há caderno para reaproveitar, eu digo o quê?
Acho que a ordem (desculpe, orientação) correta seria dizer aos professores para não passar nada de anotável até 13 de março, evitando assim o uso do caderno ou de recurso substitutivo pelo aluno. Afinal, a prática pedagógica deve estar atenta à utilização dos recursos disponíveis. Mas outra solução interessante seria o aproveitamento, como espaço de anotação, de margens de panfletos, jornais, revistas, folhetos e informativos distribuídos tanto pela Prefeitura quanto por particulares. Nesse caso, haveria não apenas aprendizagem sobre reutilização de lixo urbano, como também recolhimento de material de leitura gratuito para treinamento dos alunos na escola.
São propostas, enfim. Tão estúpidas quanto a situação em que nos colocaram.
O intervalo de um mês acima citado abriga um paradoxo, pois os alunos receberão regras da escola logo no primeiro dia dizendo que têm de trazer o material necessário para frequentar as aulas. Entretanto, estamos proibidos de pedir que comprem esse material. Pergunto-me: se o aluno me disser que não há caderno para reaproveitar, eu digo o quê?
Acho que a ordem (desculpe, orientação) correta seria dizer aos professores para não passar nada de anotável até 13 de março, evitando assim o uso do caderno ou de recurso substitutivo pelo aluno. Afinal, a prática pedagógica deve estar atenta à utilização dos recursos disponíveis. Mas outra solução interessante seria o aproveitamento, como espaço de anotação, de margens de panfletos, jornais, revistas, folhetos e informativos distribuídos tanto pela Prefeitura quanto por particulares. Nesse caso, haveria não apenas aprendizagem sobre reutilização de lixo urbano, como também recolhimento de material de leitura gratuito para treinamento dos alunos na escola.
São propostas, enfim. Tão estúpidas quanto a situação em que nos colocaram.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
A carta aberta de Luciano Malheiro
Tempos atrás, houve uma greve de professores estaduais em São Paulo. Um colega de faculdade e de colégio escreveu uma carta aberta justificando o posicionamento dos professores. A carta descreve primorosamente a realidade da educação pública no Estado, e merece ser lida e relida, pela qualidade da escrita e pela agudeza da observação. O autor é Luciano Malheiro.
O link remete ao grupo de discussão que armazena a carta.
O link remete ao grupo de discussão que armazena a carta.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Merenda
Creio ser este um tema espinhoso, com bons argumentos pró e contra. Vou deixar aqui uma posição pautada na experiência pessoal de aluno e educador.
Dias atrás, conversando com minha mãe, falei sobre o que se costumava comer em sala dos professores, uma preocupação para mim, já que pretendo manter minha dieta na volta às aulas. Qualquer profissional de nutrição fará muitas restrições sobre o consumo constante e exagerado de café e biscoitos, e o fato de ficarmos quase 6 horas sem uma refeição.
Mamãe, professora aposentada da Prefeitura de São Paulo, disse que, durante alguns anos, os professores foram solicitados para merendar com os alunos. Nessa época, a preocupação nutricional com os cardápios levava à inclusão de itens não muito apreciados pelo paladar das crianças. Optou-se, então, por servir a merenda também ao professor. Ao comer nas mesmas mesas dos alunos, o professor estaria servindo como modelo de comportamento, incentivando os alunos ao consumo dos alimentos oferecidos, e funcionando também como referência de postura em relação ao modo de se portar nas refeições (parece maluco, mas pela observação muitas crianças aprendiam coisas como o modo de segurar um garfo ou a necessidade de colocar o copo sujo na bandeja). Evidentemente, o professor também era beneficiado com uma refeição mais equilibrada e saudável.
Quando iniciei minha carreira na Prefeitura, ainda era possível merendar com as crianças, coisa que eu fazia com muito prazer, tanto por ser um cara "bom de prato" quanto por não ter alternativas consistentes nos arredores da escola. O tempo passou e as cozinhas foram sendo terceirizadas. Uma das consequências da terceirização é que passou a ser importante, do ponto de vista do gasto e do desperdício, quantificar exatamente a perda, o excesso e a falta, pois desses números viria o pagamento do Município. Dessa conta, foram tirados os professores, que implicariam gasto adicional para as empresas em termos de previsão de recursos e oferta de alimentos. Lembro-me de coordenadores que diziam, com a boca cheia característica do MISH, que a prefeita Marta (na época era ela que estava no poder) mandara o recado de que "a merenda é para os alunos", e que, portanto, não podíamos consumi-la.
Entendo por que isso aconteceu. Creio ter havido muito desperdício, muito desvio, muita conta que não batia. Cortar a participação dos professores na merenda era uma forma de evitar, por exemplo, que alguém deixasse de dar toda a merenda e repetição para os alunos para que outro alguém - professor ou funcionário - pudesse levar os alimentos para casa. A intenção não me parece ter sido ruim.
Entretanto, outros problemas surgiram. A "conta exata" que era importante para a Prefeitura ficou prejudicada quando algumas empresas tentaram "fazer render" o lanche dos alunos, com atitudes como dar meio pãozinho no lugar de um. O desperdício continuou acontecendo, e qualquer um que esteja na escola ao entardecer lamentará a quantidade de alimentos que são simplesmente jogados no lixo, já que não podem ser consumidos por ninguém tirante os alunos. Não sei a respeito do desvio, mas não creio que ele tenha deixado de existir, visto que constantemente chegam a nossos ouvidos casos estapafúrdios ou engraçados.
Em vista disso tudo, adotei uma posição a respeito: acho que não teria nenhum problema o professor voltar a merendar com os alunos. Estabelece-se que ele só pode ter acesso à merenda no intervalo, e pronto! Teríamos menos desperdício, uma alimentação mais adequada para os professores e, mais importante de tudo, recuperaríamos uma concepção educacional do intervalo de aulas e do consumo da merenda. Aos que argumentam que isso implicaria mais gastos das empresas que controlam os refeitórios, menor possibilidade de repetição dos alunos ou gastos da Prefeitura adicionais com alimentação de professores que já ganham acréscimos de salário com esse fim, peço apenas para observarem o que ocorre em escolas como a minha: se não é pão com salsicha, SEMPRE há desperdício.
Jogar comida fora é jogar dinheiro fora. Se o Estado não paga o que é desperdiçado, também é certo que não faz diferença para a empresa se alguém consome ou não o que os alunos não consomem. Colocar o professor para participar do recreio é uma forma de reduzir essa perda, tanto pelo exemplo como pelo consumo. A empresa ganha um pouco mais nas contas, e o Estado um pouco mais na qualidade de vida escolar. Acho que vale a pena.
Dias atrás, conversando com minha mãe, falei sobre o que se costumava comer em sala dos professores, uma preocupação para mim, já que pretendo manter minha dieta na volta às aulas. Qualquer profissional de nutrição fará muitas restrições sobre o consumo constante e exagerado de café e biscoitos, e o fato de ficarmos quase 6 horas sem uma refeição.
Mamãe, professora aposentada da Prefeitura de São Paulo, disse que, durante alguns anos, os professores foram solicitados para merendar com os alunos. Nessa época, a preocupação nutricional com os cardápios levava à inclusão de itens não muito apreciados pelo paladar das crianças. Optou-se, então, por servir a merenda também ao professor. Ao comer nas mesmas mesas dos alunos, o professor estaria servindo como modelo de comportamento, incentivando os alunos ao consumo dos alimentos oferecidos, e funcionando também como referência de postura em relação ao modo de se portar nas refeições (parece maluco, mas pela observação muitas crianças aprendiam coisas como o modo de segurar um garfo ou a necessidade de colocar o copo sujo na bandeja). Evidentemente, o professor também era beneficiado com uma refeição mais equilibrada e saudável.
Quando iniciei minha carreira na Prefeitura, ainda era possível merendar com as crianças, coisa que eu fazia com muito prazer, tanto por ser um cara "bom de prato" quanto por não ter alternativas consistentes nos arredores da escola. O tempo passou e as cozinhas foram sendo terceirizadas. Uma das consequências da terceirização é que passou a ser importante, do ponto de vista do gasto e do desperdício, quantificar exatamente a perda, o excesso e a falta, pois desses números viria o pagamento do Município. Dessa conta, foram tirados os professores, que implicariam gasto adicional para as empresas em termos de previsão de recursos e oferta de alimentos. Lembro-me de coordenadores que diziam, com a boca cheia característica do MISH, que a prefeita Marta (na época era ela que estava no poder) mandara o recado de que "a merenda é para os alunos", e que, portanto, não podíamos consumi-la.
Entendo por que isso aconteceu. Creio ter havido muito desperdício, muito desvio, muita conta que não batia. Cortar a participação dos professores na merenda era uma forma de evitar, por exemplo, que alguém deixasse de dar toda a merenda e repetição para os alunos para que outro alguém - professor ou funcionário - pudesse levar os alimentos para casa. A intenção não me parece ter sido ruim.
Entretanto, outros problemas surgiram. A "conta exata" que era importante para a Prefeitura ficou prejudicada quando algumas empresas tentaram "fazer render" o lanche dos alunos, com atitudes como dar meio pãozinho no lugar de um. O desperdício continuou acontecendo, e qualquer um que esteja na escola ao entardecer lamentará a quantidade de alimentos que são simplesmente jogados no lixo, já que não podem ser consumidos por ninguém tirante os alunos. Não sei a respeito do desvio, mas não creio que ele tenha deixado de existir, visto que constantemente chegam a nossos ouvidos casos estapafúrdios ou engraçados.
Em vista disso tudo, adotei uma posição a respeito: acho que não teria nenhum problema o professor voltar a merendar com os alunos. Estabelece-se que ele só pode ter acesso à merenda no intervalo, e pronto! Teríamos menos desperdício, uma alimentação mais adequada para os professores e, mais importante de tudo, recuperaríamos uma concepção educacional do intervalo de aulas e do consumo da merenda. Aos que argumentam que isso implicaria mais gastos das empresas que controlam os refeitórios, menor possibilidade de repetição dos alunos ou gastos da Prefeitura adicionais com alimentação de professores que já ganham acréscimos de salário com esse fim, peço apenas para observarem o que ocorre em escolas como a minha: se não é pão com salsicha, SEMPRE há desperdício.
Jogar comida fora é jogar dinheiro fora. Se o Estado não paga o que é desperdiçado, também é certo que não faz diferença para a empresa se alguém consome ou não o que os alunos não consomem. Colocar o professor para participar do recreio é uma forma de reduzir essa perda, tanto pelo exemplo como pelo consumo. A empresa ganha um pouco mais nas contas, e o Estado um pouco mais na qualidade de vida escolar. Acho que vale a pena.
Assinar:
Postagens (Atom)