segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Professor de funk

Podem me xingar, podem me ofender, podem ficar decepcionados comigo. O que vou escrever é certamente polêmico, mas está entalado aqui na garganta faz tempo.
Vou começar com um episódio que vivi quando iniciei minha carreira de professor na Prefeitura de São Paulo. Eu trabalhava numa escola periférica, próxima dos limites do município. Vivíamos os preparativos para uma festa dos alunos, e eu estava na sala dos professores conversando com os colegas. De repente, a música parou por uns instantes e comecei a ouvir uma batida um tanto quanto rústica, com uma voz estranha e desafinada a cantar "um tapinha não dói". Juro por Deus que pensei que as crianças tinham desligado o CD e tomado o microfone para fazer provocações umas com as outras. Fiquei espantado quando saí da sala dos professores em direção ao pátio da escola. Não, não era nenhuma brincadeira boba das crianças; era uma faixa de um CD de sucesso, que eu simplesmente desconhecia. Fiquei ainda mais impressionado com o fato de que, durante a execução da canção, havia quase uma unanimidade de corpos dançando uma coreografia com uma sensualidade que eu jamais supus ser possível, dentro ou fora da escola. Praticamente todas as meninas rebolavam ao som daquela batida simples, cantavam a letra e davam palmadas em seus próprios bumbuns quando chegava a parte do refrão. Não conhecia nada daquilo, e fiquei realmente impressionado.
Nem me passou pela cabeça ter algum tipo de chilique moralista, desligar o som, mandar todo mundo parar ou passar um sermão na molecada. Achei engraçado, um tanto quanto de mau gosto, e só. Era claro, naquele momento, que aquela era uma manifestação cultural aceita, referendada e até esperada pelos alunos. Festa, para eles, era isso, tinha essas referências. E a partir do momento em que eles se viram na condição de gerenciadores da própria festa, utilizaram as referências que tinham de diversão. O gosto pessoal não estava em questão, nem a sensualidade exacerbada das danças. Tanto que, quando comentei com um dos colegas meu estranhamento, ele me respondeu: - Você nunca viu um baile funk, Vinicius? A música que toca é essa, eles dançam assim. Diante de minha insistência no pasmo, acrescentou: - Deixa eles, estão se divertindo como fariam em qualquer outro lugar. Não tem nada de mais.
Estávamos em meados de 2002, acredito, e as coisas que ouvi e vi depois, ao longo dos anos, mostraram que a dança de rebolação e tapinha no bumbum chegava a ser realmente inocente. Mas não é essa a questão.
A questão é o moralismo, e como esse moralismo é hipócrita. E até diria, com risco de perder meus leitores mais puritanos: a questão é como esse moralismo hipócrita casa perfeitamente com uma sociedade sexualmente mal resolvida.
Um professor resolveu fazer uma brincadeira com a classe, ao dançar passos de funk-pancadão brasileiro durante uma de suas aulas. Não é caso de demissão; não é uma atitude preocupante; não é notícia para jornal de TV. E é curioso notar que a classe não entendeu a brincadeira como sendo mau gosto, e até se divertiu com a apresentação do professor. Mas, obviamente, uma coisa não justifica a outra; houve uma quebra contratual, um deslocamento brusco de papéis que pode ser considerado indevido (para mim, isso é o máximo que se pode imputar ao professor). Não se pode julgar todo o trabalho de um profissional por um deslize, mas também não se pode mascarar o fato de que esse deslize aconteceu. Isso é um ponto, já devidamente explorado pela mídia sedenta por bodes expiatórios de momento.
Outro ponto, que não vi ninguém trazendo para o debate, é: em que circunstâncias a dança feita pelo professor é de mau gosto e em que circunstâncias ela é aceitável? E aí temos um nó. Porque os professores educam, mas os pais também educam, assim como os grupos sociais e os meios de comunicação. A educação é direito do cidadão e dever de toda a sociedade, não é mesmo? Pois bem, se assumimos que essas crianças passam a maior parte de seu tempo diante do educador-mor de nossa civilização, que é o aparelho de televisão, temos de admitir que boa parte do que elas aprendem sobre o conveniente e o inconveniente, o socialmente aceito e o socialmente não-aceito, o sensual e o não-sensual está associado a padrões mais ou menos definidos que dele recebem, não é mesmo? Se não fosse assim, a dancinha das meninas com o "tapinha não dói" não seria a unanimidade que eu havia presenciado; esses padrões não apenas se impõem, mas funcionam como códigos de aceitação dos grupos sociais, senhas para popularidade.
Ora, se há comportamentos considerados inadequados a ponto de levar à execração pública um professor que os simulou parodicamente em uma sala de aula, por que esses mesmos comportamentos são a base e o principal ponto de apoio da mídia em seus programas "para família"? O que fazem boa parte das dançarinas de palco, desde o Chacrinha até o Pânico, que não seja, em menor ou maior grau, mostrar as curvas de seu corpo em movimentos coreografados? O que era a banheira do Gugu? O que vende o Big Brother não é a possibilidade de ver os participantes fazendo sexo (não é isso que faz com que a Globo crie um canal pago para aquilo que não aparece em cena, ou seja, para o obsceno)? E a sociedade valoriza ou desvaloriza as dançarinas de palco, os participantes de quadros pornoteatrais, os biguibróderes?
Quero deixar claro aqui que não sou contra nada disso. Não é o tipo de coisa que faz minha cabeça, mas creio que essa sexualização explorada pela mídia responde a determinados apelos de consumo, e penso que a sociedade de alguma forma precisa disso tudo, como precisa da novela, do futebol, da violência dramatizada. Ademais, vejo beleza no erótico, e considero plenamente aceitável que as pessoas procurem formas de extravasar essa energia tão primária e fundamental.
Minha questão é mais simples. É assim: não é contraditório que uma emissora de televisão que apresenta um professor dançarino de funk como um monstro possa, algumas horas mais tarde, legitimar como atração para seus telespectadores a apresentação de uma pessoa justamente dançando funk, e não num contexto de paródia, mas de foco na sensualidade? Não é contraditório que os pais condenem e promovam ações contra a educação sexual nas escolas quando, no aconchego sagrado e ilibado de sua sala de estar, assistem com os filhos a encenações como a banheira do Gugu? Não é contraditório que as pessoas condenem qualquer atitude com possível conotação erótica na escola quando sequer conversam com seus filhos sobre a vida íntima deles?
Tudo isso me remete à cena da festa funk em 2002. Os anos se passaram, aquelas crianças cresceram, os tabus permaneceram, a sociedade amadureceu pouco para algumas reflexões, o fundamentalismo ganhou força. E continuamos ancorados na mesma hipocrisia. Antes de escolher um bode expiatório e destruir sua vida em nome da moral e dos bons costumes, as pessoas deveriam fazer um exame de consciência e tentar entender até que ponto elas mesmas vivem dentro desses padrões que impõem aos outros.

sábado, 20 de agosto de 2011

A curta experiência no Olavo Pezzotti

No início deste ano, em decorrência dos resultados do concurso de remoção de 2010, fui ministrar aulas de História na EMEF Olavo Pezzotti, na Vila Madalena. Entre as inúmeras vantagens da mudança poderia incluir a proximidade da escola (quinze minutos de casa, de ônibus), a estrutura privilegiada do bairro do entorno (Vila Madalena tem muitos bancos, restaurantes, bares, tudo o que se procurar lá tem) e a possibilidade de lidar com diversos e diferenciados projetos (a localização da escola, perto da USP e de uma série de sedes de ONGs, propicia constante contato com interessados em desenvolver trabalhos alternativos com os alunos).
Mas eu já sabia que o namoro seria curto. Embora não soubesse exatamente quando, tinha muita esperança de ser nomeado no concurso para a área federal.
Ainda assim, entre fevereiro e abril, procurei dar o melhor de mim. Como estava em módulo, programei um trabalho com canções populares, em que a letra era, a princípio, discutida e cantada por todos em sala, numa mistura de atividade lúdica e interpretação de texto. No início, foram poucas as vezes em que entrei sozinho; fazia mais o trabalho de acompanhar o excelente professor Luiz, de História, uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Com altos e baixos e idas e vindas mais do que esperadas para alguém que é novo de casa, aos poucos criei uma sistemática com as canções e fui sendo aceito pelas turmas.
No início de maio, entretanto, alguns fatores começaram a me tornar um tanto quanto apagado em meu trabalho. É difícil determiná-los com precisão, uma vez que eram formados de percepções ainda confusas e mal constituídas. Limito-me, então, àqueles que pude discernir com um pouco mais de nitidez, a ponto de reconhecer sua face e seu peso.
O fator de maior influência nessa queda de rendimento foi, sem sombra de dúvida, a seleção para o doutorado da USP. Vindo de uma área diferente daquela cuja vaga pleiteava (ou seja, saindo da Literatura Brasileira e tentando a sorte na Linguística), tive de me virar para ser aprovado em duas proficiências (francês e espanhol), uma prova específica de conhecimentos de Linguística (para a qual estudei mais de um mês ininterruptamente), uma avaliação de projeto e uma arguição sobre o mesmo com o orientador pretendido e mais dois experts no assunto. Graças a Deus, deu tudo certo e consegui a vaga.
Essa batalha pela pós teria custado algumas aulas não-dadas, nos dias das provas a realizar, e algumas outras faltas, abonadas ou justificadas, e nada mais. Em nossa carreira, isso não é incomum. Há momentos em que temos problemas pessoais e questões que não são previstas pelas licenças, e muitas vezes acabamos por faltar mais vezes que o normal naquele período, para, posteriormente, recuperar o padrão de assiduidade. Mas, para mim, havia um segundo fator agravante: estar em módulo. Para quem não é da Prefeitura e não conhece esse termo, explico: o professor de módulo é aquele que não tem aulas atribuídas. Cabe a ele fazer substituições nas faltas de outros professores. Em tese, ele usa o diário do professor que substitui, e aplica atividades que são agregadas à nota da disciplina. Apenas em tese, ressalto, porque isso dificilmente acontece. Raramente um professor em módulo substitui aulas apenas na sua área; geralmente, ele entra em aulas de quatro ou cinco disciplinas diferentes na mesma semana, e não é possível estar a par de todos os conteúdos ministrados por outros professores, nem mesmo localizar e utilizar seus diários de registro. Como o professor de módulo nunca sabe quando nem em que classe vai entrar, dificilmente tem atividades devidamente preparadas, e sempre corre o risco de ter de improvisar a aula. Para minimizar esse problema, o Olavo determinou que os professores de módulo não dessem aulas das disciplinas assumidas na substituição, mas de conteúdos transversais. Por isso elaborei o trabalho com canções.
Posso afirmar, entretanto, que o improviso nas aulas não é o maior dos problemas. O grande nó para quem está em módulo é não ser visto da mesma forma que o professor com aulas atribuídas. O professor em módulo está sempre vulnerável. Fica esperando dez a quinze minutos no início do período até que seja solicitado para alguma substituição. Não há um critério claro para definir quem substitui quem, a não ser a necessidade imediata e premente, constatada pelo assistente de período; isso acarreta problemas para dividir as aulas entre os diversos professores, gerando a sensação de injustiça e falta de equidade quando alguns ministram uma quantidade de aulas muito maior que outros. Além disso, há um grande incômodo em relação à permanência do professor de módulo na escola quando não está ministrando aulas; são comuns as caras feias, as broncas desnecessárias, a insinuação de que se "ganha sem fazer nada" e outras do gênero. Para compensar esse mal-estar, muitos dos professores nessa condição empenham-se em realizar tarefas burocráticas das mais variadas, e mesmo serviços como entrega de livros e uniformes e intervenções com alunos e turmas indisciplinadas. Como não bastasse tudo isso, o aluno, que é muito mais esperto do que julga nossa vã pedagogia, percebe claramente o estatuto de segunda classe do professor de módulo: não faz as atividades, porque não serão aproveitadas mesmo, não respeita o professor, porque saca que ele está um degrau abaixo na hierarquia, e não cria grandes vínculos com ele, porque pode vê-lo cinco vezes na semana, ou nenhuma, a depender dos ventos e dos acasos. Exemplificando: o Olavo criou, no decorrer dos anos, o saudável hábito de fazer reuniões com todos os professores que ministram aulas numa determinada turma, a coordenação e todos os alunos dessa mesma turma. Quando isso acontece, evidentemente, algumas salas ficam sem professores, durante o período em que acontece a reunião. Os professores em módulo são chamados a substituí-los e, em razão disso, não aparecem em nenhuma reunião de nenhuma turma. O aluno sabe disso, vê isso, e fica muito claro para ele que o professor de módulo, embora também ministre aulas para ele, não participa dessa instância de debate e decisão; portanto, é alguém com menor poder de fogo.
Resumindo: o professor em módulo, mesmo numa escola como o Olavo Pezzotti, que conta com a melhor direção e a melhor coordenação com que já havia trabalhado em toda minha carreira na Prefeitura, é um vulnerável, um deslocado, um ente sobre o qual recaem desconfianças. Como diz o Mauro, um amigo meu, é preciso ter muita estrutura para isso. Eu não tinha, ainda mais com a cabeça no doutorado. O resultado é que minha disposição e boa vontade caíram muito, e me senti acuado e frequentemente exausto, mesmo dando aula pela manhã. Na época, senti certa culpa, mas logo percebi que não era só comigo: dos oito ou nove professores de módulo de que o Olavo dispunha no início do ano, rapidamente víamo-nos reduzidos a cinco ou seis, entre sumiços, exonerações, licenças e outras situações.
Outro fator que reduziu em muito minha disponibilidade foi a crescente e cada vez mais certeira convicção de que eu não tinha habilidades de magistério condizentes com o ensino de crianças e adolescentes. O que eu conseguia fazer - e olha que até conseguia bastante - era resultado de um esforço muito grande e causador de estafa, sofrimento e ansiedade. Posturas autoritárias não são naturais para mim, o que implica um empenho físico descomunal para sustentar a teatralidade do momento da aula. Sempre observei que outras pessoas lidavam de forma muito mais natural com as crianças, que se impunham sem grandes dificuldades e sem grandes remorsos em agirem com mais energia. Consigo, sim, e meus alunos disso são testemunhas, conduzir com competência uma aula para adolescentes e crianças. Mas poucos sabem o custo disso para minha saúde, para minha cabeça. A verdade é que o corpo estava cobrando de mim o peso das loucuras, dos excessos e do empenho desmedido dos mais de 13 anos de magistério para essa faixa etária.
Por fim, o golpe de misericórdia em tudo o que ainda restava de vontade de excelência profissional em mim: em junho, descobri que seria nomeado e assumiria em breve a área federal, meu sonho profissional desde sempre. Isso quase acontecera um mês e meio antes, quando, aprovado num outro concurso, mas não como efetivo, para o mesmo cargo, tive de declinar da vaga, por incompatibilidade de jornadas. A tristeza que então senti foi sobejamente compensada por essa alegria de junho. Era a pá de cal, em boa hora.
O fim de junho foi uma contagem regressiva, em que procurei não criar expectativas com projetos posteriores ou possíveis ações a longo prazo. Em julho, a curta experiência de Olavo Pezzotti chegou ao fim, e com ela a minha carreira de professor de Ensino Fundamental na Prefeitura de São Paulo.
O saldo? Positivíssimo.
No Olavo, conheci pessoas diferenciadas, brilhantes, com interesses variados e nobres. Tive contato com gente que sabia muito mais que eu, que tinha mais experiência, mais tarimba. Fiz amigos de que não esquecerei, e até deixei - quero crer - uma boa impressão nos alunos, apesar do curto tempo de convivência.
Se considero todos os 11 anos de Prefeitura, o saldo é ainda melhor. Foi na Prefeitura, como professor, que conheci as pessoas mais importantes e apaixonantes com que já tive a oportunidade de dividir meu tempo. Muitos alunos ainda lembram de aulas que ministrei e do convívio que tivemos. Muitos professores ainda são grandes amigos, ainda que já não trabalhem comigo.
Também não tenho do que reclamar em relação a dinheiro. Se creio que deveria ganhar mais pelo que fiz - e creio piamente nisso -, por outro lado foram os anos de Prefeitura que possibilitaram minha independência financeira, meu casamento, minha sobrevivência de descasado e todos os investimentos (cursos, graduações, especializações) que consegui fazer nesse período.
Acima de tudo, posso dizer que foi enfrentando as dificuldades quase insolúveis da relação aluno/professor na Prefeitura que aprendi a dar aulas, a ser realmente professor. A despeito dos meus erros, dos erros dos outros, e da complexidade do trabalho que nunca consegui realizar plenamente, uma parte do ser humano que gosto de ser foi educada por essas carinhas curiosas, espertas, ingênuas, ansiosas, que vi dia após dia, por todos esses anos.
Agora, o caminho é outro. Mas o destino é o mesmo. É continuar aprendendo, melhorando e aprimorando a arte de doar a um imprevisível grupo de pessoas uma parte de si, por algumas horas do dia, com toda a força da alma e toda a fé nas transformações que o saber pode proporcionar.
Obrigado, Olavo. Obrigado, Prefeitura de São Paulo.