segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A ação sindical e o compromisso com as escolas públicas

Minha amiga e companheira de profissão Clarissa Suzuki, que já entrevistei no espaço deste blogue, escreveu um belo artigo sobre o último Congresso do Sinpeem, que tenho o imenso prazer de reproduzir, com sua autorização, na íntegra, nas linhas seguintes:

A AÇÃO SINDICAL E O COMPROMISSO COM AS ESCOLAS PÚBLICAS
por Clarissa Suzuki*

Na sala de aula, o professor precisa ser um cidadão e ser humano rebelde. (Florestan Fernandes)

Inicio este artigo tomando emprestado o título do texto exposto pelo Prof. Dr. Gaudêncio Frigotto¹ numa palestra realizada no dia 29/10/10, último dia do 21º Congresso do Sinpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal SP. Palestra que, acredito, foi a mais condizente com as expectativas de um congresso sindical da educação. Gostaria de informá-los de que esta essencial comunicação não foi organizada no auditório central onde cabem milhares de pessoas, visto que o congresso agrega mais de 4000 delegados, mas em uma pequena sala do Anhembi. Será que tratou-se de desatenção ou uma ação intencional da direção do nosso sindicato? Para responder a esta inquietante indagação, faço algumas considerações sobre o formato deste Congresso.
O Texto Referência que guia as reivindicações e ações da nossa luta é escrito todos os anos pelo mesmo grupo que está a frente deste sindicato há 20 anos (e hoje é da base governista Kassab/DEM), sendo que as emendas apresentadas por outros associados são restringidas ao tempo escasso e tamanho reduzido, dificultando o debate dos assuntos. Outro grande empecilho contra o diálogo político é a grande quantidade de palestras de pesquisadores externos que defendem sua posição, enquanto os profissionais da educação quase não tem tempo para exporem suas idéias, na busca de compreenderem o que acontece na educação, na sociedade e na correlação de suas forças.
Nós, educadores municipais e sindicalizados, temos o dever de apontar estas falhas e exigir uma mudança de formato do nosso congresso, para que nos anos seguintes ele propicie o diálogo, a troca de experiências, o esclarecimento de dúvidas, a organização da luta, para garantirmos um espaço de politização, de problematização, de apontamento de caminhos, que é a necessária função da atuação dos sindicatos vinculados à educação.
Entretanto, não posso deixar de apontar que este congresso é bem avaliado pela grande parte dos profissionais que participam dele anualmente, pois existe a carência de um espaço de formação na rede municipal que supra realmente os questionamentos dos educadores, suas dificuldades no cotidiano da profissão e com as consequências da desestrutura resultantes do descaso dos governos com a escola. Hoje, os raros cursos que nos são oferecidos pela Secretaria Municipal da Educação têm um fundamento de culpabilização pelos resultados obtidos nas avaliações externas (como se o professor não soubesse dar aulas!), uma visão tecnicista e mercantilista do ensino e um discurso descontextualizado da realidade que enfrentamos nas unidades educacionais.
Sabemos que os intelectuais da educação ajudam na compreensão do mundo, apontam caminhos, todavia temos que começar a conceber os professores como pesquisadores, orientados pela problemática da sua própria prática, pelas reflexões sobre seu cotidiano, enfim, propor novos programas de formação que dialoguem com estas condições e realidades. Segundo o sociólogo Florestan Fernandes “A minoria prepotente está guiando a maioria desvalida”. Temos que mudar esta sábia afirmação analítica de Florestan e começar a sermos sujeitos dos nossos destinos, uma maioria valorada e que tem plena consciência das suas ações e do seu poder de mudança.
Diante dessas reflexões que contemplam a discussão que engloba os professores, o sindicato e o Estado, está claro que é função do nosso Congresso anual discutir amplamente qual o projeto de sociedade e qual processo educativo, no conteúdo, forma e método, interessa à classe trabalhadora, já que o projeto burguês é o que nós seguimos há dezenas de anos e continua suprindo os objetivos dessa classe.
Assim, gostaria de encerrar este texto citando uma frase de mais um professor, Paulo Freire, “Não há texto sem contexto”. Acho que essa frase metaforicamente sintetiza essa breve avaliação do Congresso do Sinpeem, dos Programas de Formação de Educadores da Rede Municipal de São Paulo, do Projeto Educacional que estão pensando para o nosso país. Fiquemos alertas!


* Clarissa Suzuki, arte-educadora da rede municipal, artista-plástica, pesquisadora e militante sindical.
¹ Gaudêncio Frigotto, doutor em Educação, professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O caso da bolinha de papel, ou fita crepe, ou seja lá o que for

Durante a campanha de José Serra no Rio de Janeiro, no segundo turno, sucedeu-se esse episódio curioso, de que todos evidentemente ficaram sabendo. Pelo que eu entendi, alguém atirou uma bolinha de papel na cabeça do então candidato à Presidência, e um pouco depois ele saiu com a mão no que seria a região atingida, e parece-me que, em virtude de algum machucado, ou por precaução, fez alguns exames médicos e descansou.
Não acho que seja uma atitude louvável atirar qualquer coisa que seja nas pessoas. O primeiro comentário de Dilma a respeito do incidente é o que considero mais apropriado: não podemos endossar nenhum tipo de violência contra ninguém. Não é bonito, e, mesmo que não seja fisicamente doloroso, não demonstra respeito nem educação. Na mesma balança, ficam as bexigas de água atiradas contra a presidente eleita nesta campanha, os ovos atirados contra Covas quando ele era governador, o sapato atirado contra Bush, enfim, tudo o que representa um avanço físico despropositado e desrespeitoso.
Por outro lado, entendo que, em função do clima da campanha, e levando-se em conta o que esta campanha efetivamente foi (comentarei em outro blogue), as autoridades se excederam, seja por ridiculizar o agredido, seja por minimizar a agressão e seja até por supervalorizar um acontecimento que nada teve de trágico e, pior, nenhuma importância teve do ponto de vista da discussão de ideias. Ou seja: num momento mais sério e menos insano da política brasileira, o acontecimento receberia, no máximo, uma notinha na imprensa, e nada mais. Jamais teria sete minutos de destaque no Jornal Nacional.
Mas não é disso que quero tratar aqui. Quero tratar do assunto do blogue, que é a atuação dos professores em sala de aula. É isso o que me preocupa, porque é isso que constrói um país, no fim das contas.
Gostaria de estar sumamente errado no que vou afirmar agora, mas creio que há n pesos e n medidas em relação àquilo que chamamos de agressão ou violência ou desrespeito. Ou mesmo em relação àquilo que consideramos tolerável ou intolerável, suportável ou insuportável, digno de nota ou digno de desconsideração, perigoso para o físico ou sem nenhuma periculosidade.
Qualquer professor de escola pública, como eu, que já trabalha há mais de cinco anos, deve ter presenciado guerras de bolinha de papel. Não raro, muitos desses professores (e me incluo nesse grupo) já foram alvejados, seja por essas bolinhas, seja por aviões, seja por pequenas porções de papel dobrado arremessadas com canudos ou tubos de caneta, ou mesmo com elásticos. Sem medo de errar, afirmo que muitos de meus colegas já foram atingidos por coisas muito mais perigosas: tesouras, potes de cola, pedaços de madeira e, acreditem ou não - essa eu presenciei, para meu desespero -, estiletes. Eu já fui atingido por bolas de futebol, bolinhas de papel, e coisas afins, no rosto, no braço, na perna, na barriga, em várias partes do corpo. E isso porque, modéstia à parte, sou considerado um dos profissionais mais queridos pelos alunos na escola em que trabalho e dos que menos têm problemas de disciplina ou controle da classe.
Eu não quero dizer, aqui, que tudo isso seja desculpável e não precise de advertências, broncas, atitudes da direção, encenações do professor ou coisas do tipo. Não, não é legal, é desrespeitoso e chato pra caramba. Ninguém gosta, e respeito o ex-presidenciável José Serra por não ter gostado desse tipo de manifestação. Quero apenas considerar algumas diferenças que precisam ser levantadas.
José Serra é um homem público, com história política, e admiração de boa parte da população brasileira. Nós, professores, somos trabalhadores em geral anônimos e conhecidos, na maioria das vezes, apenas por um limitado número de pessoas de uma comunidade.
José Serra candidatou-se à presidência da República por opção própria, e conseguiu concorrer ao cargo por endosso do partido, mas não vive disso. Tem outra profissão, tem seu prestígio político, enfim, consegue se virar fora da disputa eleitoral. Ele tem a prerrogativa pessoal e política de encerrar um comício ou uma passeata se o clima não lhe favorece. Nós, professores, dependemos de nosso trabalho em sala de aula para sobreviver, e não somos autorizados a abandonar as classes em que alunos nos desrespeitam. Para nós, em função de uma necessidade de subsistência, o show deve continuar, e muita coisa tem de ser tolerada.
José Serra, em sua atuação pública, lida com pessoas que desconhece, e com reações que podem ser absolutamente inusitadas. Em função disso, possui um corpo de seguranças pessoais, necessário e justificável, prontos para agir em qualquer incidente ou ameaça mais explícita. Obviamente, ele está muito mais exposto nessa situação. Nós, professores, lidamos, na maioria das vezes, com pessoas que conhecemos ou conheceremos razoavelmente, embora as reações que presenciamos sejam, igualmente, inusitadas. Não possuímos um corpo de seguranças pessoais, e estamos expostos a um número menor de pessoas. Mas - importante lembrar - estamos a serviço do Estado, atuando profissionalmente em algo que faremos mais de 200 vezes durante o ano letivo, e temos, como já anotado, o compromisso de enfrentar esses percalços de agressividade e continuar a labuta, porque é nossa opção profissional.
Em que pesem as diferenças acima registradas, há uma semelhança que gostaria de ressaltar nesta exposição, e que supera em importância tudo o que anteriormente foi escrito: do ponto de vista da dignidade humana, nós, professores, e José Serra, somos iguais. E essa assertiva, que pode parecer uma obviedade, tem uma implicação bastante pesada em relação ao episódio da bolinha de papel/fita crepe, que é a da discussão da (in)visibilidade da violência.
Pois a verdade é que, se houve violência, agressividade ou atitude condenável nesses gestos de campanha, nessas manifestações públicas contra pessoas públicas, e se essa violência justificou debate nacional e mobilizações de parte a parte, que se pode dizer do silêncio geral da sociedade, da mídia e dos partidos políticos em relação a agressões similares ou bem piores sofridas COTIDIANAMENTE por profissionais de ensino de todo o país? Quando uma das professoras de mais idade da minha escola foi simplesmente derrubada no corredor por um aluno, isso mereceria sete minutos no Jornal Nacional? Ou nesse caso são "ossos do ofício"? Quando, há três anos atrás, tomei nas costas uma imensa bola de papel cheia de cola, cuspe e más intenções enquanto escrevia na lousa, deveria ter pedido exames médicos para verificar o tamanho do vergão nas minhas costas, ou isso causaria escândalo na administração da escola e seria visto como ridículo pelos colegas? Ou deveria considerar que isso faz parte da profissão que escolhi, das circunstâncias em que vive a comunidade, dos meus próprios erros de abordagem da turma, e coisas afins?
Se eu estivesse tratando de casos isolados, poderia parecer absolutamente pretensioso colocar-me na mesma posição de alguém como José Serra. Mas a questão é que não escrevo só por mim. Tenho consciência de que quase a totalidade dos professores já se viram nessa posição. E mais: de que, mesmo humilhados e por vezes machucados, muitos de nós, professores, fomos mal tratados, ridicularizados e mal vistos por nos sentirmos ofendidos com as agressões sofridas e cobrarmos posicionamento, ou procurarmos ajuda médica ou institucional de qualquer tipo. Que seja um rolo de fita crepe ou uma bolinha de papel: que professor, hoje, tem autonomia, autoridade e amparo para sair de sua sala de aula e fazer um exame especializado para avaliar os danos sofridos? Repare que não falo de direitos; o que está em questão é a convenção social e a mentalidade administrativa que hoje impera na educação. Poder, nós podemos. Mas quais seriam as consequências? Como seríamos vistos? De que lado ficaria a imprensa? Quem se preocuparia em voltar a fita inúmeras vezes para provar que o objeto era x ou y?
É isso que considero a existência de pesos e medidas diferentes. Se há violência insuportável e intolerável quando somos alvejados por bolinhas de papel ou outros objetos, ela deve ser considerada grave tanto para o ser humano que ministra aulas em salas superlotadas nas distantes periferias quanto para o ser humano candidato a presidente que é alvejado em via pública em função de discordâncias políticas ou ideológicas. Se dói, dói para todo mundo. E deve doer mais para quem sofre dessas agressões mais vezes. E se é parte do jogo, é parte do jogo para todo mundo, e eu não posso aceitar que fiquemos resignados com o que acontece com nossos colegas e achemos, ao mesmo tempo, um absurdo quando o mesmo incidente envolve uma pessoa da política. Seria pedir demais que os partidos, a imprensa e a sociedade filmassem e exibissem quadro a quadro pelo menos uma vez, uma cena de guerras de bolinha de papel e objetos ainda mais estranhos, e a expressão dos professores que tem de lidar com isso e ainda manter a serenidade e postura profissional? Ou ficaria caro demais para o Estado realizar tomografias computadorizadas em cada professor após incidentes do gênero? Ou os alunos seriam todos petistas inflamados sem caráter, ou tucanos de baixo nível?
Amanhã não tem mais eleição, mas tem aula. Vou comprar um capacete e esquecer disso tudo. É meu ganha-pão, e eu sei o meu lugar. ;-).