sábado, 12 de março de 2011

Sobre a suspensão das férias coletivas em CEIs e EMEIs

Acabo de ler em e-mail enviado pelo SINPEEM que uma ação judicial determinou suspensão do direito de férias coletivas em CEIs e EMEIs. Como diz o ditado... barbas de molho.
Profissionais de educação têm férias coletivas por vários motivos. Em primeiro lugar, porque compreende-se, em vários lugares diferentes do mundo, com diversas concepções de educação, que as crianças precisam de férias. Em segundo lugar, porque compreende-se, em vários lugares diferentes do mundo, com diversas concepções de educação, que o trabalho escolar precisa ser planejado. Em terceiro lugar, porque compreende-se (etc e tal) que a escola precisa parar, em algum momento, para se organizar. E poderíamos arrolar aqui dezenas de argumentos que apontam para a arbitrariedade e o teor contrassensual dessa decisão da justiça.
Mas uma coisa me incomoda, e muito. As organizações que moveram essa ação argumentaram que defendem o direito das famílias e das crianças de terem uma escola funcionando com professores trabalhando no período das férias. Pode-se igualmente pensar num argumento contrário: e o direito das crianças de permanecer com suas famílias? E o dever das famílias de se organizarem para as férias escolares? Mas não é esse o ponto que eu queria destacar.
O problema, na minha visão é que, quando se levanta esse tipo de argumento, fica a impressão de que o trabalho do professor é o de tomar conta da criança. A especificidade educacional do magistério desaparece; o trabalho educacional, que precisa ser discutido, planejado, organizado, articulado, previsto, revisto, sofre um golpe duríssimo em sua credibilidade. Se sou um profissional de educação, e não um cuidador de crianças, faço parte de um coletivo educacional, que precisa funcionar de forma articulada, coesa, e precisa de tempo inclusive para não funcionar, para rever prioridades, para reorganizar-se. Por outro lado, se sou mero cuidador de crianças, tanto faz se cuido delas em julho, abril ou dezembro, desde que cumpra essa função de mantê-las em segurança e sadias. O problema é que isso não precisa ser feito necessariamente por um educador.
O pressuposto de que é preciso deslocar profissionais para cuidar de crianças nas férias não precisaria, de forma alguma, intervir na especificidade do trabalho educacional escolar. As organizações poderiam brigar na justiça, por exemplo, para que fossem contratados temporários para trabalhar durante o recesso, e uma decisão judicial nesse sentido manteria a estrutura de organização de CEIs e EMEIs, poupando as férias coletivas dos profissionais desses aparelhos (quero deixar claro que não concordo nem com isso, mas citei a possibilidade como exemplo de soluções alternativas). Quando organizações da sociedade civil colocam-se em posição de solucionar um problema por meio do ataque a direitos adquiridos por categorias profissionais, é sinal de que a discussão deslocou-se perigosamente da responsabilidade social do Estado para uma percepção ideológica extremamente daninha de que o trabalho educacional consiste na ação institucional destinada a preencher o tempo da criança quando ela não pode, ou não precisa, ficar em casa. Também me parece que ações como essa indicam certo descrédito dos educadores em relação à sociedade civil; fica a impressão de que o discurso que coloca o funcionário público em geral como um "privilegiado", beneficiado com "mordomias" que não existem no mundo empresarial ainda está em voga, em que pese a percepção crescente de que professores, policiais e profissionais da saúde vivem relações complicadíssimas com as condições de trabalho oferecidas.
Quando uma decisão judicial respondendo a ação movida por organizações civis interfere na autonomia gestionária e administrativa da escola (e não de UMA escola em específico, mas da escola enquanto instituição social), temos um claro sinal de que a sociedade não está entendendo o que as crianças fazem ou deveriam fazer dentro de um ambiente educacional. Parece claro, nesse caso, que essa incompreensão afeta a própria concepção de educador, de professor, de profissional de educação, não sendo, portanto, apenas um problemas dos que trabalham em EMEI e CEI, mas de todos nós que fizemos do magistério nossa forma de oferecer algo a essa sociedade. Para mim, temos claramente uma questão que envolve a valorização do professor. E - ampliando - diria que a grande dúvida que fica é: o que o senso comum, as organizações civis, o judiciário e o Estado sabem - ou pensam que sabem - de nosso trabalho? Para que serve uma escola, para que fim trabalha o professor? Como essa questão é perigosa e demanda uma coragem infrequente nas lideranças políticas, que é a de assumir causas não demagógicas e de sucesso eleitoral não evidente, creio que teremos essa contenda insana de trabalhador contra trabalhador ainda por um longo período no debate sobre nossa carreira.