segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Horas livres

Há pelo menos dez anos venho correndo atrás daquilo que consegui em 2011-2012: a perspectiva de trabalhar em um lugar só, novamente.
Sempre leio e ouço professores que se queixam da dupla jornada de trabalho (tripla, em boa parte dos casos), que os impede de realizar outras atividades, como leituras, estudos, cursos, organização das próprias coisas e outras ações para desenvolvimento individual e profissional. Eu também não estava satisfeito, e Deus me concedeu a graça de poder sair disso com um regime de dedicação exclusiva.
Mas o que eu descobri sobre o tempo livre parece mais grave que isso. Eu descobri que é preciso disciplinar até o tempo livre... para garantir que ele seja realmente livre, realmente seu!
Vi na TV há anos atrás uma entrevista do Phill Collins em que ele dizia que, sendo músico, acabava trabalhando o tempo todo: comia e bebia música, gastava horas e horas para criar uma canção ou encontrar o arranjo mais apropriado, ficava muito tempo pensando nisso, e chegava a compor durante o sono! Ou seja, ele nunca se desligava da música. Isso era bom para seus fãs, mas não era bom para ele.
Nessa nova fase da minha vida, sem dupla jornada, e com tempo mais razoável para preparação do material com o qual trabalharei, fiquei excitado com a possibilidade de empregar as horas livres para zilhões de coisas. Até que a ficha caiu: nada disso! Horas livres, são horas livres.
Um professor não pode recuperar, em alguns anos, toda a defasagem intelectual que foi criada por sua condição de trabalho. É preciso admitir que há coisas que não sabemos, e continuaremos sem saber. A curiosidade intelectual é maravilhosa e extremamente propulsora; no entanto, fazer cobranças em relação a ela soa um pouco absurdo no contexto de nosso cotidiano. Não é apenas fazer um monte de cursos e leituras. É preciso tempo e experiência para confrontá-los com a realidade. É preciso descansar a mente. É preciso curtir as coisas que são compradas com o suor do trabalho. É preciso, às vezes, ficar mofando no sofá, ouvindo música boa, ou ficar conversando assuntos menores com a vizinhança.
Se uma pessoa quiser ser professor em tempo integral, ela poderá ser um bom ou excelente professor. Isso vale. A partir do momento em que essa disposição escravizar o indivíduo, em que os compromissos profissionais extra-horário transformarem-se em horários profissionais, em que não houver tempo para que o professor por excelência exercite sua condição de ser humano por excelência, creio que própria noção de excelência está furada. Algum sacrifício é necessário fazer, mas não é justo sacrificar a parte de nós que se beneficiaria, no futuro, dessa árdua batalha.
Não, amigos, um bom professor não é aquele que está sempre com pilhas de coisas para corrigir, acelerado, nervoso e sem tempo para nada. Um professor assim pode ser bom e pode não ser. Na verdade, bom professor é aquele que sabe o que está fazendo. Quem sabe o que está fazendo sabe que não tem força, nem disposição, nem inteligência infinitas. Sabe dizer "não" quando precisa dizer, e sabe em que momento precisa estar cem por cento.
Acho engraçado que, para toda a escola em que trabalhei, vale a mesma regrinha de convivência: você não pode não sofrer. Se está numa mesa da sala dos professores sorrindo, relaxado, pensando sobre algum assunto ou demonstrando tranquilidade em relação às coisas à sua volta, ninguém leva você a sério. As pessoas veem o mau humor como parte indissociável do trabalho que realizam. Se você toma uma bronca de um superior, tem de demonstrar constrangimento por ter feito a coisa errada, ainda que você e ele saibam que aquilo é uma bobagem. Quando está em seu espaço, você tem de ter pilhas de papéis sobre a mesa. Se as pessoas não virem essas pilhas de papéis sobre a mesa, e sua cara fechada, elas vão ficar incomodadas, e pedir para que você faça alguma coisa só para não sentirem sua presença calma por perto. Relaxar parece um crime. E quando você incorpora isso, quando passa a carregar isso como marca de personalidade, você se sente culpado até quando está desobrigado de fazer o que as pessoas querem que você faça. É preciso romper com essa sensação!
Horas livres são imprescindíveis. Ou você tem um tempo para si mesmo, ou esse "si mesmo" vai deixando de existir aos poucos. Não dá para sonhar aula, comer e beber aula, respirar aula. Porque aula não é só aula, assim como professor não é só professor: o algo mais vem do fato de que o mundo continua a girar enquanto nossas questões profissionais nos consomem. Por isso, disciplinar as horas livres é dizer a si mesmo: eu me obrigo, nesse momento, a não pensar nisso e a não falar sobre isso. Eu me obrigo a me desligar da escola, dos alunos e da aula. Minha ainda curta experiência no magistério tem me demonstrado que não vale a pena dormir com os problemas numa cama quentinha de um quarto silencioso depois de uma boa refeição: a maioria deles se resolve sem sua ajuda, ou se desvanece tão logo as pessoas encontrem outros. E a vida continua.