domingo, 17 de março de 2013

Um mau aluno pode tornar-se um bom professor?


Em 1989 disputei um concorrido vestibulinho e consegui ingressar na Escola Técnica Federal de São Paulo, que depois se tornaria CEFET e depois Instituto Federal. Contente pela aprovação que me qualificava para participar de um seleto grupo de privilegiados, mas sem fazer a menor ideia do que me esperava, escolhi cursar Telecomunicações e ver no que isso ia dar lá na frente.
Até então eu fora um aluno de bom para excelente. Sempre conseguia boas notas, sempre estava entre os mais destacados da turma, sempre era visto como referência, porque já possuía considerável rotina de leitura e já cultivava interesses bem pouco comuns para garotos da minha idade. Entretanto, eu era um garoto da minha idade: os hormônios em ebulição, as espinhas, o desjeito e a enorme timidez eram terrivelmente evidentes.
Acontece que, no primeiro grau, as disciplinas era mais dosadas, mais fáceis, ministradas num ritmo que eu podia acompanhar sem grande desespero. Além disso, tive a sorte de estudar em uma escola em que minha mãe lecionava, e essa proximidade da figura materna fazia com que fosse mais comportado, menos audacioso, mais na minha.
Mudar de escola municipal para a badalada Federal encheu de orgulho a todos na minha família, mas a verdade é que não estava preparado para a mudança de ritmo que isso implicou. Reconhecendo pessoas brilhantes em minha turma e logo de cara interessado em partilhar ideias com elas, fui aos poucos perdendo a timidez e adentrando nos grupos, conversando, dividindo o gosto pela poesia, pela música, pelos livros, pelas reflexões, pela camaradagem e pela condescendência com a própria condição de adolescente. Mas eu não sabia dosar isso com a disciplina necessária para aprender as matérias do curso. Na verdade, eu tinha dificuldades enormes, mas tinha vergonha de demonstrar isso, dado que meus colegas, ou pelo altíssimo QI, ou pela facilidade de assimilação e memorização, ou pela disciplina de estudo desenvolvida, levavam o curso com muita tranquilidade. A maioria deles poderia sair para uma balada e fazer uma prova no dia seguinte com facilidade. Outros não poderiam, mas também não saíam. Eu não poderia, e saía, e me dava mal. E às vezes me dava mal até mesmo sem sair.
Deve-se considerar ainda um outro fator importante para meu fracasso como estudante da Federal: eu não tinha interesse praticamente nenhum em ser Técnico em Telecomunicações. Eu queria passar de ano e não perder a turma. A Federal era, para mim, os amigos que eu tinha conquistado. Ademais, desde cedo, meus interesses associavam-se muito mais às artes e às linguagens, e sentia-me completamente sufocado num mundo onde imperava o raciocínio lógico-dedutivo da física e da matemática. Isso não é desculpa, bem sei. Poderia ter estudado do mesmo jeito, poderia ter me esforçado muito mais. Mas eu não era ainda bem resolvido comigo mesmo, e o fracasso escolar feria meu complexo de superioridade/inferioridade de uma forma tão aguda que eu preferia recusar tudo aquilo a enfrentar as dores de reconhecer em mim um aluno com dificuldades de assimilação que outros não tinham.
O resultado dessa postura desregrada, negativa e insolente não tardou. Passei raspando em cinco disciplinas do primeiro ano (fechava-se com 23 pontos, e eu acho que fechei-as exatamente com isso). Passei raspando também o segundo ano, como um milagre na prova de Laboratório de Eletrônica e uma considerável ajuda do amigo Christian no acabamento de meu projeto de curso. No terceiro ano, não teve jeito: completamente sem base, reprovei em sete disciplinas. Meus pais culparam a banda de rock que eu havia formado. Na verdade, foi até bom que pensassem assim. O problema era eu mesmo: minha postura, minha preguiça, minha inapetência, minha incompetência.
Durante esses três anos, no entanto, eu crescera como indivíduo. Estava mais solto, mais falante, mais brincalhão, mais exposto. Ainda não sabia o que queria, mas sabia que podia ser algo de bom, de valoroso. Acompanhava sempre que podia as peripécias de meus companheiros de turma, Yvan, André, José Maurício, Alexandre Uezu, Marcelo, Fugita, Mauro, Carlão, e outros que não tenho como citar. Eu desenvolvera ainda mais meus interesses por poesia e filosofia. Eu até vencera dois concursos de literatura dentro da Federal. E eu tornara-me conhecido por outras coisas: por tocar violão, por ter uma aparência terrivelmente desleixada, por conversar com várias pessoas de vários cursos.
Em função de tudo isso, meu segundo terceiro ano (ou seja, a segunda vez em que cursei o terceiro ano) no colégio foi muito intenso. Sempre tocando, sempre acompanhando as pessoas onde iam, sempre descobrindo coisas, tornara-me alguém popular. Mas continuava um péssimo aluno, cheio de dificuldades. Tinha sido o pior da turma por três anos, e isso não mudaria da noite para o dia. Como era de se esperar, enfrentei enormes dificuldades para ser aprovado novamente. Mas dessa vez, a determinação pesara a meu favor: eu tinha a expectativa de aprovação no vestibular para Filosofia na USP (era possível, na época, obter o diploma de segundo grau antes de terminar o quarto ano), e eu tinha uma namorada, Cibeli, o que era um fator enorme de estabilidade para minha mente vagueante. Consegui passar de ano, no aperto, e provavelmente em função de algum outro milagre que não saberia descrever.
Meu quarto ano foi de ausência quase total. Eu o fiz paralelamente ao primeiro ano de Filosofia na USP, e o trânsito entre esses dois mundos foi completamente destruidor para minha recém-conquistada autoestima. Mas isso é uma outra história.

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Em 2010, cansado dos problemas com a linha pedagógica da Prefeitura de São Paulo e provavelmente já abatido pela percepção (então ainda não clara) da não vocação para o ensino de crianças, procurava uma saída para a crise de disposição que se abatera precocemente em minha carreira. O que eu poderia fazer? Largar meu emprego de dez anos por uma carreira instável e incerta, ainda que mais prazerosa, nas faculdades particulares? Galgar cargos para fugir dos desmandos que me atormentavam dia e noite e minavam a confiança em minha capacidade? Adotar uma postura de enfrentamento permanente e colocar em risco as possibilidades de uma carreira até então imaculada?
O que mais doía é que eu construíra boas coisas. Alunos lembravam com carinho de minhas aulas. Meu trabalho com sala de leitura havia sido consistente. Muitas das minhas iniciativas haviam dado certo. Doía ver que as experiências que empreendera, naquele momento, valessem absolutamente nada diante da burocracia escolar. Doía tomar bronca por fazer as coisas em que acreditava e por ser quem era. Doía ver que não havia perspectiva para mais, e que eu precisava de mais.
Prestei o concurso para a coordenação pedagógica. Passei muito bem. Prestei um concurso para trabalhar na EAD da VUNESP. Passei muito bem. Mas nenhuma das duas coisas deu certo. A coordenação exigia Pedagogia, que fiz no esquema de complementação, mas não cheguei a terminar por problemas de completar os estágios (não achei honesto pedir que os assinassem para mim, e ainda tive complicações renais que me impediram de frequentar as escolas). E havia a questão de que coordenar era, na verdade, ficar ainda mais mergulhado nos desmandos do sistema que me havia dado tanto desgosto. A EAD não deu certo porque implicava em abandono do trabalho de muitos anos na FIP, e por uma contratação de apenas dois anos.
Soube, então, da prova para efetivos do IFSP, nova denominação da minha antiga Federal dos tempos de ensino médio. Prestei o concurso como uma possibilidade remota, um bilhete de loteria. Era um sonho para mim, mas eu tinha apenas mestrado, e concorreria com pessoas muito mais qualificadas. Deus, então, operou outro milagre, e consegui aprovação em segundo lugar, sendo convocado um ano depois para assumir a vaga e abandonar, por consequência, tanto a Prefeitura quanto a FIP em prol de uma carreira mais atraente e uma possibilidade mais generosa de desenvolvimento de potenciais.
Aqui estou, então, neste momento da minha vida, trabalhando com profissionais de enorme gabarito. Sou disciplinado. Não entro em sala sem aula preparada. Não faço corpo mole com turma nenhuma. Entrego as notas em dia. Entrego os planos em dia. Cumpro minhas obrigações, esgoto o conteúdo, e uso uma variedade enorme de recursos, como plataformas online, projeções, apresentações musicais, e outras. Faço, na verdade, o que sempre fiz como professor.
Se olhar para minha carreira nesses anos todos, desde 1996 até hoje, posso ficar tranquilo quanto ao que fiz. Converso com ex-alunos, do ensino médio, do fundamental, do PROEJA, do superior, das especializações. Sempre encontro palavras reconfortantes sobre meu desempenho, e quero crer que elas incorporam algum mérito meu para além da generosidade das pessoas. Fui reputado como bom professor em todos os lugares por onde passei, e tenho feito um trabalho digno dentro do Instituto, atualmente.

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Entre a minha chegada como aluno e o meu retorno como professor à mesma instituição, muita água, evidentemente, rolou debaixo da ponte. No mínimo, cabe citar aí duas graduações, uma quase graduação, um mestrado, dois casamentos, quatro bandas de rock, uma litotripsia, um livro escrito e revisto (publicado quando eu já estava lá). Apesar de tudo isso, sei que sou, na essência, a mesma pessoa.
Sabe o que isso significa? Significa que, de alguma forma, o professor dedicado de 2012 é o aluno relapso de 1991. Sei que fui um aluno muito abaixo da média, e sei que sou um professor com muito mais dedicação que a maioria dos meus colegas.
É muito engraçado perceber que, quando conto isso às pessoas, elas simplesmente não acreditam. As pessoas consideram que meu sucesso acadêmico e profissional é resultado da imensa seriedade com que sempre devo ter encarado meus estudos e meus cursos. Há um modelo nesse sentido, e que é válido para boa parte das pessoas que conheço e que conseguiram, por seus méritos, boas colocações profissionais e intelectuais. Essas pessoas geralmente foram alunos dedicados, diligentes, determinados, brilhantes e precoces. Eu não fui nada disso, esse modelo simplesmente não se aplica em nada à minha história. Fui um aluno dos que as pessoas dizem que nunca servirão para muita coisa, que não têm grande futuro. E estou aqui, formando pessoas, trabalhando consciências, amparado pela aprovação em concursos concorridíssimos e pela titulação acadêmica obtida na melhor universidade do país.
Essa condição é contraditória? Creio que não. Creio que minha vida como aluno medíocre ensinou-me a não julgar as pessoas pelo seu desempenho dentro de determinadas disciplinas, e a nunca duvidar do valor e do potencial de ninguém. O desempenho escolar não prepara para a vida e, na verdade, nem para a continuação do desempenho escolar. Na verdade, ele é uma consequência dessa preparação, e não sua causa. Quanto mais pude compreender a mim mesmo, respeitar meus limites e admitir minha condição de ser simplesmente humano, mais bem preparado estive para os desafios da vida, fossem quais fossem, como aluno, orientando, professor ou o que quer que seja.
Quero finalizar esta postagem dizendo que tenho muito orgulho do aluno que fui, desajeitado, incompetente e limitado, na medida em que isso me ajudou a ser o professor, o vocalista de banda, o escritor, o pesquisador e o cidadão que hoje sou. Ouso dizer que sou um bom professor, pelo menos nos quesitos dedicação e empenho (que acredito que fazem muita diferença). E ouso desafiar a lógica do senso comum escolar e acadêmico dizendo que fui um péssimo aluno nos mesmíssimos quesitos e mais outros tantos, que nem quero aqui citar. E tudo isso no mesmo espaço institucional, em que tive e tenho oportunidade de atuar como formador e como formado, como aluno e como professor. E digo ainda que essa aparente contradição é uma das muitas que constroem a essência do que sou e não deixarei de ser jamais, nem se porventura quisesse.