segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Óbvio incompreendido


Era um período letivo como todos os outros, e eu atuava no projeto Sala de Leitura da escola municipal. A sala, que abrigava o acervo bibliográfico, ficava na parte de cima do prédio. Entre as milhares de incumbências que nunca risquei da minha lista, havia a necessidade de catalogar um gigantesco acervo de livros que até então não havia sido nem dimensionado nem convenientemente organizado. Para isso, e para fazer empréstimos e devoluções dos alunos, e outras ações necessárias ao meu trabalho, eu tinha um insuficiente PC nada invejável.
Nesse período letivo como todos os outros, eu descia para conversar com meus colegas numa sala de professores que ficava na parte de baixo do prédio. Entre as milhares de incumbências de todas aquelas pessoas que entravam e saíam da sala, poucas eram realizadas no pequeno e também nada invejável PC improvisado na mesinha encostada na parede, por razões evidentes: acesso precário e limitado à internet e impossibilidade de envio de materiais para impressão. A atividade mais realizada naquela máquina era o jogo eletrônico de paciência, que divertia as horas vagas de descanso dos fatigados mestres.
Um belo dia, o PC da sala dos professores pifou. As pessoas chiaram um pouco, mas bem pouco, na verdade, porque todo mundo já tinha computador em casa para tarefas sérias, e aquilo servia mais como um brinquedinho que como apoio didático. Mas brinquedinhos também são importantes, porque a vida é dura e ingrata, e algumas vozes ressoaram o resmungo da perda do artefato.
Foi então que, em meio a essas vozes, uma dirigiu-se a mim de forma desinibida e desafiadora. Não fora uma proposta, e sim uma intimação: eu teria de descer o computador da Sala de Leitura para a sala dos professores. Razões? Muitas. Era injusto possuir um computador para meu uso quando ninguém mais além da secretaria tinha essa mamata. Era injusto utilizar um computador para meu trabalho quando mais de vinte professores não possuíam essa oportunidade. Era injusto ter um computador à disposição para trabalho didático quando outros professores tinham de fazê-lo em casa.
Eu dei risada. Literalmente. E fui colocando todas as aspas necessárias: em "meu uso", em "injusto", em "oportunidade", em "trabalho didático", em "mamata". Fui arrogante, bem sei, mas não me arrependo. Disse que sabia muito bem que o computador seria usado, na sala dos professores, para tudo menos trabalhos didáticos. Disse que os professores ficavam jogando paciência, e que não era necessário um computador para isso. Disse, ainda, que a conta estava completamente errada, pois não eram vinte contra um, mas a escola inteira contra vinte, já que o trabalho que eu fazia era de interesse da instituição, e o que os professores faziam com o computador era de interesse particular.
Para mim, era óbvio. Na verdade, para mim era até absurdo que alguém propusesse uma cretinice daquele tamanho. Ninguém em sã consciência comprometeria um trabalho didático em função de caprichos de um pequeno grupo, ainda que o trabalho didático fosse realizado por uma única pessoa. Eu tinha plena convicção disso.
E esse é um dos meus maiores defeitos: não faço questão de esconder minhas convicções, mesmo quando as pessoas se sentem melindradas com elas. Eu poderia ter sido mais esperto, mais político, mais até delicado. Não fui. Disse sem cerimônias que aquilo era absurdo, e ridicularizei a argumentação da voz solicitante. Fui muito claro: dali não sairia o PC.
Mas as pessoas não gostam de perder, nem as discussões, nem as disputas materiais. A voz solicitante, então, como diria meu pai, subiu nas tamancas. "Vou falar com a direção e vamos ver se não consigo!". É justo dizer que essa afirmação deveria ter me colocado uma pulga atrás da orelha. Eu sabia muito bem da relação de bajulação explícita da pessoa em relação à direção. Sabia que a pessoa havia conseguido outras coisas anteriormente com essa atitude, e que confiava nessa boa relação, nesse servilismo constrangedor para obter sucesso em sua nobre empreitada.
Por outro lado, eu sabia que estava certo. Sabia que, se houvesse ali uma direção digna do nome, ou qualquer criatura dona de bom senso ocupando o cargo, o pedido seria visto como inapropriado. E fui três vezes mais arrogante: dei de ombros. Sequer dei atenção à ameaça. Nem fiz questão de saber em que momento a questão seria levantada. Nem fui me defender, nem fui justificar a manutenção do PC na sala em que trabalhava. Estava plenamente convicto de que meu trabalho prosseguiria nas condições em que estava até aquele momento.
Para algumas pessoas, o que pode nos parecer óbvio tende a soar, às vezes, como uma petulante aposta pessoal. Infelizmente, tem gente que não entende que nem tudo está em disputa. Quando o valor de uma pessoa é conseguir o máximo possível de vantagens dentro de um determinado espaço de relação, há claramente um problema ético de fundo. Não é plausível que um indivíduo não considere a existência de valores mais essenciais que os seus quando ele trabalha justamente numa instituição fundada na noção, ainda que esparsa, de bem coletivo. É como disputar com o colega quem consegue passar mais lição na lousa. Ou quem consegue faltar mais vezes sem ser descontado num mês. Há coisas que não estão em jogo nas articulações políticas e de influências, porque, se estivessem, tudo o mais perderia o sentido.
A voz solicitante veio me procurar pouco tempo depois. Disse que o PC ficaria na Sala de Leitura. Disse que a direção considerava que o trabalho que eu realizava possuía uma especificidade que tornava o PC necessário. Disse, por fim, e essa é a parte interessante, que eu tinha moral com a direção, porque ela não havia conseguido, com sua influência, levar-me o computador.
Essa última conclusão mostra que a pessoa não tinha entendido absolutamente nada. Não, aquilo não era maior ascendência minha sobre X ou Y. Nem maior proximidade com a direção. Nem a derrota de vinte para um, nem a usurpação do democrático direito de um grupo de profissionais de esvaziarem a mente com um joguinho nas aulas vagas ou nos intervalos.
Aquilo era mais simples: era a manutenção da função da escola contra a manutenção da disfunção da escola. Dentro de minhas convicções intocáveis e em meio a minhas posturas arrogantes, há algo que está além do que sou e mesmo do que represento, e que fala por si bem melhor do que eu mesmo falaria. Quando esse algo não toca as pessoas, o óbvio pode ser surpreendente, estranho, e até mesmo difícil de engolir.