domingo, 15 de julho de 2012

Números e migalhas

Quando, há cerca de oito anos, cursava a disciplina de metodologia do curso de Licenciatura em Latim, na FE/USP, presenciei uma cena engraçada, mas curiosa. O professor havia passado todo um semestre discutindo as abordagens de ensino de línguas estrangeiras (audiolingual e comunicativa). Numa de suas últimas aulas do curso, falou a respeito de pesquisas comparativas de resultados para as duas abordagens. As pesquisas, disse ele, indicavam algo inacreditável: que os alunos que aprendiam pela abordagem comunicativa tinham melhor desempenho nas habilidades que essa abordagem considerava fundamentais, e os alunos que aprendiam pela abordagem audiolingual... também. Rimos muito do que era óbvio do óbvio, sem nos darmos conta de que aquilo não era tão óbvio assim. É claro que quem faz mais exercícios de trava-línguas, por exemplo, terá desenvolvido mais habilidade em exercícios de trava-línguas, e assim será com qualquer aprendizagem humana. Mas o que essas pesquisas citadas pelo professor indicavam era outra coisa: a metodologia respondia a uma determinada visão de mundo, e sua construção era coerente com essa visão. Ou seja: ambas as abordagens funcionam. Para nós, impunha-se pergunta mais fundamental: o que é exatamente "funcionar" quando falamos de aprendizagem?
Enquanto estive na Prefeitura de São Paulo, acompanhei, ao longo dos anos, um progressivo aumento das normatizações para o trabalho do professor. Foram criados muitos manuais, foram criadas muitas prescrições novas, o ensino passou a responder a números, tabelas, gráficos, demonstrativos matemáticos. Isso sempre me incomodou, porque essa visão de mundo e de educação me incomoda. Alunos não são números, estatísticas não são fatos, e a realidade é muito mais complexa do que esses paradigmas tecnicistas pressupõem. A visão de sociedade que está embutida nessa lógica maluca dos números-acima-de-tudo é a de que as pessoas podem ser classificadas de acordo com um determinado valor para o sistema, que esse valor pode ser mensurado com relativa precisão e que resta aos atores da prática educacional adaptar seu comportamento e sua experiência de educação a essas "medições". A expectativa, a longo prazo, é a de que essas adaptações produzam novos números, e que esses números sejam apresentados como evidências para exigir novas adaptações, até que o sistema todo "compreenda" o que deve fazer e como deve fazer. E que isso tudo, numa relação de causa e efeito, provoque transformações positivas na qualidade da educação como um todo.
Nem vou fazer a pergunta óbvia (o que se entende por qualidade da educação?), nem a que exigiria reflexão mais propriamente axiológica (quais são os valores e os objetivos da educação?). Meu questionamento será mais básico. O seguinte: partindo-se do pressuposto (do qual discordo) de que esses números e estatísticas são termômetros eficientes da qualidade da educação, não seria de se esperar que toda a metodologia e todas as prescrições construídas a partir deles servissem, ao menos, para provocar modificações nos padrões dos quais eles são índices? Ou seja, se eu constato que o aluno vai mal num exame por x e y razões, e determino toda uma normatização relacionada a x e y, não seria de se esperar que ele passasse a ir bem nos próximos exames? Mais simplesmente ainda: investir num aspecto x não deveria melhorar justamente os índices relacionados a esse aspecto x?
Pois bem, aí está o nó. Pois, a não ser que eu esteja muito enganado, a paranoia dos números não tem sido eficiente nem para mudar os números. Há muitas pesquisas apontando para a ineficácia desse modelo de política educacional. Há pesquisas que mostram, por exemplo, que as políticas de bônus, associando desempenho dos alunos e faltas de professores a adicionais nos salários, não produzem os resultados esperados em termos de melhora do desempenho em provas oficiais e nem em outros indicadores. Outras pesquisas indicam que não há melhoras efetivas de rendimento dos alunos em função da parafernália normativa tecnicista. Ao que parece, a limitação dos potenciais criativos dos professores em nome de uma intervenção pseudocientífica vêm falhando sistematicamente. Dar aulas começa a se tornar uma coisa muito quadrada e chata, e em nome de nada.
Mas, voltando ao tema central deste texto, quero lembrar apenas que não concordo em nada com o que essa corrente de pedagogos e administradores-de-empresas-disfarçados-de-pedagogos propõe como solução para a educação. O que quero dizer é que as metodologias adotadas, se não servem para meus paradigmas e concepções, tampouco se mostram coerentes com os paradigmas e concepções que as sustentam. Não me basta, nem me refresca a consciência, saber que meus alunos subiram décimos de pontuação nas avaliações externas; não considero isso uma preocupação educacional relevante. O assustador é saber que os que consideram esses décimos miseráveis um seguro índice de evolução, os que investiram o máximo para atingir esses décimos, os que comparam esses décimos com décimos de outras escolas, esses ultimamente nem essas migalhas têm para alimentá-los. Talvez porque o óbvio não seja tão óbvio, afinal.