sábado, 10 de outubro de 2009

Autocrítica e divã

Estou realmente preocupado com o tecnicismo na educação. Chego a pensar que fiquei um pouco paranóico, vendo essa tendência em tudo quanto é documento ou fala que aparece. Ontem, disse a meus alunos da Pedagogia que nós conhecemos melhor as pessoas se prestamos atenção às críticas que elas fazem às outras. Toda vez que criticamos algo, ou alguém, indicamos um aspecto que nos incomoda, e assim revelamos um pouco de nossas fraquezas e nossas limitações. Talvez o tecnicismo incomode tanto porque não sei receber ordens.
Sei que não posso escrever isso numa ficha de emprego, nem confessar a um entrevistador numa seleção, mas esta é a mais pura verdade. Tenho de esforçar muito para cumprir determinações das quais discordo, e não consigo ser polido ao ouvir um "cumpra-se" sem entendê-lo ou considerá-lo pertinente. Isso pode ser qualidade ou defeito da minha personalidade, conforme o ponto de vista e a posição em que esteja no relacionamento com outras pessoas. E é uma postura recente, que só aflorou depois de cinco anos de análise em que boa parte das minhas culpas foram repensadas e descobri que não precisava ser perfeito nem agradar todo mundo.
Julgo que essa rebeldia interior me tornou insuportável para muita gente. Vejo que muitos me olham de lado depois de alguma discussão ou intervenção propositiva de minha parte. Sou arrogante, irônico e insubmisso com meus superiores, muito pouco político e, por vezes, irresponsável e exagerado em certas atitudes. O curioso é que isso me faz bem. Eu não sou uma pessoa agressiva na aparência, mas sou muito tenso por dentro. Então, quando coloco para fora minhas emoções, sinto-me melhor, menos massacrado. Sei que é feio dizer isso, mas muitas vezes gosto de dar respostas na lata, ou manifestar meu desagrado com determinadas coisas, ou mesmo agir de forma irreverente e desestabilizadora, e, com isso, constranger ou assustar pessoas que me incomodam.
A outra face da moeda da minha constante insatisfação é a recusa da disciplina individual. Parece, às vezes, que nem de mim mesmo aceito ordens! Faço programações e mais programações, preencho agendas, juro que vou fazer isto e aquilo, e no final acabo cedendo ao cansaço, à preguiça, ou até mesmo ao assédio dos pequenos prazeres da vida. Não sou workaholic, definitivamente. Por outro lado, quando estou fazendo algo de que gosto, não me incomodo de fazê-lo o dia inteiro (isso inclui, por exemplo, estudar, ler, ouvir música, fazer música, lecionar literatura e história em condições de diálogo com os alunos, namorar, corrigir textos dos outros e usar a internet). A verdade é que não deixo de cumprir prazos, mas sempre procrastino, ponho os deveres incômodos no fim e entrego tudo na última hora. E isso causa desgaste, porque sei que não devia ser assim e que acabo limitando meus potenciais.
Se me perguntarem, entretanto, porque não mudo esse comportamento inquieto e rebelde, uma vez que constato sua inadequação, posso responder que ele me convém muitas vezes, faz parte da minha identidade - que levou décadas para ser construída - e traz alguns pontos positivos, como a ousadia de experimentar e a sensação de renovação constante de meus paradigmas e modos de atuação. Posso dizer, por exemplo, que, até por compreender a dificuldade que tenho em relação a isso, não sou um professor autoritário, e lido bem com a insubmissão dos alunos, embora fique furioso ao ser ofendido ou imitado (algo com o que ainda não sei lidar). Posso dizer, além disso, que concebo disciplina como envolvimento, evito ficar lamentando a incapacidade de obediência dos meninos e centro meus esforços na criação de estratégias para que eles colaborem. Posso dizer, também, que, com uma ou outra exceção, meus alunos não têm medo de mim e me respeitam tanto como profissional quanto como pessoa, muitos deles tornando-se até meus amigos depois do período de convívio em aula. Creio que isso se deva em grande parte ao fato de não me considerarem uma figura artificial, e se sentirem à vontade para dizer e ouvir coisas não ensaiadas e relevantes.
Por causa de tudo isso, e por acreditar na autonomia intelectual do profissional de educação, não consigo levar a sério as broncas que tomamos quando aparecem números de Prova São Paulo ou outros instrumentos que não agradam a fulano ou beltrano; tampouco consigo atender às "orientações" - vulgo ordens - referentes a posturas que devo tomar em sala de aula, soltando ameaças veladas para os alunos ou mentindo sobre datas, intenções de reposição, fechamento de notas e faltas, etc.; também é praticamente impossível para mim alterar os combinados arduamente conquistados da relação professor -aluno em função de determinações de gabinete; principalmente, não consigo colocar em prática na sala de aula algo que não repute como útil ou positivo para a educação, e tendo a só mudar a minha prática quando estou intimamente convencido de que há um meio melhor de fazer o que estou fazendo. Em função de todas essas inaptidões, creio que não tenho espaço num mundo de aplicadores de aula, e não conseguirei "render" dentro da noção de produtividade educacional que começa a tomar corpo e alma nas propostas de secretarias e ministérios pelo Brasil e mundo afora.
Entretanto, para desespero geral dos que não gostam de mim, eu passo em concursos. E são eles que me garantem esse vínculo com o Estado - que entendo como um vínculo com as necessidades da população. E enquanto eu conseguir garantir legalmente esse vínculo e ser respeitado por essa população que é beneficiária do meu trabalho, as pessoas terão de lidar com minha rebeldia.
Ou podem me convencer a mudar. Mas para isso será preciso primeiro demonstrar com argumentos bem construídos que há um caminho melhor, que pode ser trilhado com segurança e defendido com convicção. Pela força, pela imposição, pelas promessas de prêmio à obediência e ao silêncio, por essas estratégias de gerenciamento que o tecnicismo e o neoliberalismo educacional adotaram para controlar os profissionais de educação, não será possível dobrar pessoas com as minhas características.

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