sábado, 21 de novembro de 2009

Estilo Hepático de Gestão (EHG) - conceito e pressupostos

Estava para escrever esta postagem há muito tempo, mas a preguiça não deixou. Hoje, resolvi encarar. Lá vai.

A expressão "desopilar o fígado" significa algo como afastar as preocupações e problemas. A palavra "desopilar" significa desobstruir, aliviar. O fígado aparece, nesse caso, como centro físico das preocupações no corpo humano. Pelo que pesquisei, a função que ele ocupava na medicina antiga era a de centro das funções vitais. A bílis, líquido por ele produzido, era associada à disposição de espírito, ao humor - quando negra, por exemplo, estaria ligada à depressão e à melancolia.
Uma das coisas de que mais precisamos quando somos professores é desopilar o fígado. Para superar os contratempos e os problemas do dia a dia, temos de manter uma reserva considerável de bom humor e tolerância, ainda mais porque lidamos com pessoas e, em especial, com crianças, para quem um sorriso ou um grito são muitas vezes mais marcantes que um raciocínio brilhante. Será a partir dessa expressão popular e de sua associação aos conhecimentos médicos antigos que construiremos, nesta postagem, a ideia de um estilo de administração escolar capaz de obstruir o fluido vital de qualquer criatura movente, ao qual chamaremos Estilo Hepático de Gestão, ou EHG.
O EHG desenvolveu-se no decorrer da história da educação brasileira, ganhou notoriedade na fase do tecnicismo-militarismo e criou estruturas de funcionamento que transcendem os princípios políticos de quem esteve, está ou estará no poder, seja na Prefeitura, no Estado, na esfera federal ou mesmo no âmbito das administrações particulares. Constituído de paradigmas próprios e modos de atuação consagrados pela prática cotidiana, o EHG se transformou em uma espécie de regra não oficial de funcionamento das instituições educacionais. Tem havido, nas últimas décadas, um ainda tímido esforço de transformação do EHG em norma declarada e legitimamente estabelecida, esforço que esbarra nas contradições entre seus princípios e os ideais de educação que por eles estariam sendo protegidos. Além disso, deve-se considerar o fato de que, enquanto a Administração Científica tem insistentemente apontado para a necessidade de promover a criatividade, a participação, o espírito coletivo, a deshierarquização e a desburocratização da rotina de trabalho, o EHG aponta para um reforço da hierarquia, da burocracia, da tensão no ambiente do trabalho, da limitação das possibilidades criativas dos professores, o que soa atrasado e ineficiente. Ainda assim, é forçoso reconhecer que ele já está estabelecido e que várias de suas normas tornaram-se virtualmente inquestionáveis, mesmo com todos os desconfortos que acarretam.
E como exatamente funciona esse tal de EHG? Para esclarecer a estrutura lógica dessa forma de administrar, vamos recuperar a metáfora que utiliza as partes do corpo humano. Consideremos três dos órgãos mais importantes de nossa constituição física: o já citado fígado, o cérebro, e o coração. Consideremos as tradicionais associações: do cérebro com a razão, do coração com as emoções e sentimentos, e do fígado com o humor.
Há estilos de gestão que conquistam as pessoas pela razão, convencendo-as de que trabalhar pelos objetivos estabelecidos será melhor para todos, e estimulando-as a analisar, discutir e divulgar os porquês de cada determinação recebida. Esses estilos são caracteristicamente cerebrais, e se baseiam num esforço de constante formação dos profissionais, por meio do diálogo e da reflexão sobre as práticas e as necessidades de mudança.
Há estilos, por sua vez, que procuram conquistar as pessoas persuadindo-as de que elas têm valor, de que são importantes na estrutura, de que farão diferença para as crianças, e estimulando-as a sentirem-se parte de um grupo coeso, integrado, que reconhece o quanto são imprescindíveis. Esses estilos estão ligados ao coração, e se baseiam em realizações de encontros, projetos, excursões, reuniões, eventos que unam os integrantes da comunidade escolar e permitam relação mais humana e afetuosa entre os mestres.
Há, entretanto, um momento em que se considera que é preciso oferecer soluções rápidas para problemas persistentes. Há um momento em que pessoas desligadas do cotidiano da escolar passam a acreditar que podem administrá-la da mesma forma que qualquer outra organização social. Há um momento em que a pressão política por resultados numericamente verificáveis sobrepõe-se à noção de que educação é um processo, e que todo processo é mais amplo e complexo que a mera enunciação de seus resultados. Nesse momento, desaparecem todas as evidências de que o professor é um trabalhador e um ser humano. O professor passa a ser apenas um aplicador de soluções já pensadas. O professor passa a ser uma peça de um mecanismo, podendo funcionar bem ou mal e, nessa mesma medida, ser remodelada ou simplesmente substituída. O professor passa a ser um instrumento de uma política de Estado, e não um construtor e debatedor inteligente das concepções de cidadania. Nesse momento, não é preciso convencer o professor de nada, nem racionalmente, nem emocionalmente. Nesse momento, é preciso garantir o menor risco possível de que ele faça algo que não seja o que lhe foi incumbido pelos técnicos e estudiosos. E isso se faz pelo medo. Pelo fígado. Pela destruição do humor.
Quando se considera perda de tempo convencer as pessoas a seguir determinados caminhos ou motivá-las e valorizá-las a fazê-lo, resta apenas a alternativa de obrigá-las a tal. É a coisa do "manda quem pode, obedece quem tem juízo". É aí que começa o Estilo Hepático de Gestão. As ordens são ordens, não devem ser discutidas, não podem ser contestadas. Posso chamá-las disfarçadamente de recomendações, orientações, instruções, mas no fundo são sempre ordens. Não admitem contraditório. Não podem ser adpatadas nem reinterpretadas. Devem ser cumpridas. Lei é lei. Palavra de superior é lei. Quando algo está fora da lei, ou da palavra do superior, é um problema assustador: não pode ser resolvido pelo bom senso, mas só pela intervenção de quem está acima.
Acontece, porém, que no serviço público os trabalhadores conseguiram, depois de anos e anos de luta, algumas garantias que dão margem à recusa de processos de intimidação. Nós, professores da Prefeitura, por exemplo, temos estabilidade no emprego, e temos carreira. Não é fácil nos ameaçar, porque contamos com uma série de garantias estatutárias, entre elas a autonomia de cátedra, a necessidade de estabelecimento de longo processo administrativo para que percamos um cargo, e a possibilidade de mudarmos de escola, de região, de atividade quando nos convém ou quando precisamos de novos ares.
Há, portanto, um impasse: como conduzir o professor a um caminho que ele não sabe ou não quer trilhar se não posso mandá-lo embora a meu bel-prazer? A resposta não precisa de muita reflexão: se não posso demitir o funcionário, posso perturbá-lo a tal ponto de tornar difícil para ele não fazer o que estou mandando. Posso criticá-lo, posso atacá-lo, posso fazer cobranças. Posso, em suma, mirar seu fígado. Posso tentar causar um incômodo tal que, para se ver livre dele, e não por acreditar no que faz, o funcionário aja como pretendo e determino.
E como é possível perpetrar tais incômodos nas situações de trabalho? Não é tão fácil assim. Alguns cuidados são necessários, porque agredir as pessoas, acusá-las abertamente, achacá-las, pode caracterizar o chamado assédio moral, e isso pode desmoralizar e desautorizar aquele que assedia. Em primeiro lugar, é necessário transformar todas as ordens em documentos, circulares, papéis para serem assinados, porque o papel aceita tudo, não tem cara, não pode ser identificado com um indivíduo, não tem compromisso com uma "identidade" da gestão, ou do gestor, ou da política implementada. Em segundo lugar, é preciso apresentar todas as ordens como se fossem pedidos desesperados dos próprios professores. Isso exige que, nas reuniões de planejamento, todas as discussões se encaminhem para um documento final que apenas confirme o que se queria impor, mas dessa vez com a desatenta ou conivente assinatura de todos os profissionais, como se eles concordassem com tudo e tudo subscrevessem. Depois disso, deve-se esfregar, sempre que possível, esses documentos, pseudo-documentos e escritos em geral na cara dos professores, mas sempre com sutileza, sorrisos e feição de quem não tem intenção nenhuma de fazer o que está fazendo. Deve-se, além disso, utilizar as palavras de forma a fazer as pessoas se sentirem mal, incomodadas, insuficientes, mas tudo isso de forma oblíqua, dissimulada, capituliana. Por exemplo, dizer que o desempenho da escola é insatisfatório, que os professores precisam rever suas práticas ou que outras soluções poderiam resolver a questão de disciplina com determinado aluno devem ser formas polidas de dizer que os professores não ensinam direito, que a didática daquele profissional é uma droga e que o professor tem mais é que se virar para lidar com um aluno x ou y. Deve-se usar também a comunicação corporal: cara feia, semblante pesado, seriedade ameaçadora, mau humor permanente, postura arrogante e fechada ao diálogo, sinais de enfado com perguntas incovenientes, sorrisos premiando a obediência, suspiros de impaciência condenando a não submissão. Por fim, deve-se garantir um clima de constante ameaça, com visitas surpresa à escola e às salas de aula, possibilidade constante de conferência sem aviso dos diários de classe e livros de registro, e falta de clareza nos critérios de aprovação ou reprovação de determinados comportamentos, para minar a segurança psicológica do professor e bloquear a construção de sua autoestima, incompatével com sua subserviência.
O EHG tem, além dessas características, a peculiaridade de ser um sistema hierarquicamente rígido. Ou seja, a ordem do ataque ao fígado do subordinado tem de ser rigorosamente respeitada. Na Prefeitura: o secretário ataca o fígado dos assessores. Os assessores atacam o fígado dos supervisores. Os supervisores enegrecem a bílis dos coordenadores. Os coordenadores comem o fígado dos professores. E os professores, contra todas as crenças que os levaram ao magistério, terminam por roer o fígado dos alunos. Mas o supervisor não dá conta, por exemplo, de opilar o fígado de milhares de professores numa determinada região. Isso fica a cargo dos coordenadores. São eles que devem dizer aquela famosa frase: vamos fazer tudo direitinho que o supervisor vem na escola hoje. E isso mesmo que ele não venha, nem nunca tenha sequer imaginado essa possibilidade. No EHG, as coisas devem funcionar porque as pessoas podem brigar, e não porque esse funcionamento conduza a um processo mais eficiente. Quando se gerencia pelo medo, é preciso alimentá-lo, reiterá-lo, promovê-lo. É preciso espalhar boatos, assustar as pessoas, tirá-las da tranquilidade natural.
O EHG existe já há muito tempo, assumindo dimensões de assédio moral, quando transbordante, ou de jogos imbecilóides de manipulação, quando sutil. Seu advento contraria um dos princípios mais básicos da LDB, o de autonomia progressiva e participação democrática, desenvolvido nos artigos 14 e 15 da lei. Entretanto, como não funciona como norma explícita, e como toma todo o cuidado para não traduzir seus paradigmas em legislações, pareceres, ou orientações textuais, é muito difícil localizá-lo. Ele pode reger toda a formação e gerenciamento de um projeto pedagógico sem nunca deixar, nos registros desse projeto, marcas de sua influência. Para superá-lo, é preciso surpreendê-lo em ação, no pulo do gato, no momento em que ele aparece e tenta imediatamente se desfazer no ar, como se nunca tivesse se mostrado. Na teoria, não temos que fazer nada do que já não fazemos todo dia quando uma autoridade nos visita. Na prática, o EHG estabeleceu a norma de que precisamos maquiar a escola. Na teoria, não temos de ter medo de expor nossas opiniões divergentes em relação àquelas que vêm das instâncias superiores. Na prática, o EHG encontrou formas sutis de nos desestimular a proferi-las. Na teoria, nossas aulas e nosso esforço de educadores são mais importantes que os registros que eventualmente deixamos de efetivar em função do tumulto cotidiano. Na prática, o EHG conseguiu inverter essa ordem, porque precisa dos aspectos burocráticos como indicadores políticos e porque pode utilizá-los como parâmetro documental de medidas punitivas. Na teoria, temos autonomia na avaliação dos alunos. Na prática, o EHG tira do professor qualquer possibilidade nesse sentido quando um pai liga para a coordenadoria - bicando o fígado do supervisor - e o próprio supervisor se encarrega - para evitar que o secretário bique seu fígado - de mudar uma avaliação da qual nunca participou. Nada disso se registra, nada disso vai para o papel, nada disso se declara, mas tudo isso está aí, constituindo um corpo consubstanciado de pequenas verdades que, por ser uma forma de agir essencialmente distinta de outras possíveis, podemos chamar de estilo, e por ser direcionada ao que entendemos como nossa disposição vital para o trabalho, nosso humor, podemos chamar de hepático. Só não sei se podemos chamar isso de gestão. Mas isso fica para outra postagem.

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