quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O caso de vandalismo no Amadeu Amaral

Menos de 24 horas depois de ter postado sobre a necessidade de compreender o desinteresse pelo magistério à luz das condições deploráveis encontradas para seu exercício, recebo uma bombástica notícia sobre um caso extremo de violência numa escola estadual em São Paulo. Creio ser própria do ser humano certa tendência a pensar "eu não disse?" quando algum de seus prognósticos é confirmado, ou quando alguma de suas análises ganha uma evidência comprobatória. Vou tentar deixar de lado a vontade de estar certo para analisar mais detidamente este episódio indigno.
O que aconteceu no Amadeu Amaral, do ponto de vista da intensidade e abrangência da ação violenta, ainda não é regra nas escolas públicas que conheço, graças a Deus. Mas as situações de descontrole e impossibilidade de contenção dos alunos são constantes, e isso é inegável. Vi episódios semelhantes; nenhum tão horroroso, mas muitos com dramaticidade similar, guardadas as proporções.
Na escola em que trabalho, o mais perto que chegamos disso foi a inundação de corredores pela abertura de hidrantes, duas vezes na mesma semana, e uma tentativa frustrada de bomba caseira, desbaratada pela ação policial. Eu estava no meio dessa cenas degradantes, tentando conter a sanha de uma horda alucinada e sedenta de reconhecimento pelas lideranças deliqüentes. Eu tive vontade de largar tudo. Graças a Deus não larguei. Entendi que muitas pessoas precisavam de minha pouca coragem restante naqueles momentos difíceis. Depois, fui deglutindo aos poucos essa experiência, e acabei me recuperando. Neste momento, portanto, minha maior preocupação é com a cabeça dos profissionais de educação e dos adolescentes que vivenciaram essas horas terríveis de barbárie, bem piores que as piores que já presenciei. Sei que não é fácil, sei que dá vontade de jogar tudo pra cima. Não sei se alguma dessas pessoas lerá este post, mas gostaria de dizer que entendo o sentimento que elas estão experenciando agora, e sou totalmente solidário às decisões que elas tomarem pensando em sua carreira ou sua integridade pessoal.
A notícia correu Brasil afora, via Jornal Nacional e Jornal da Globo. A repercussão foi tamanha que autoridades da secretaria da educação de São Paulo prometeram punição exemplar aos alunos que vandalizaram o colégio. William Bonner disse com todas as letras a palavra "expulsão", referindo-se a medidas cabíveis para punir os estudantes. E disse porque repetiu o que provavelmente aparecia em algum comunicado oficial. E eu fiquei chocado. Por dois motivos.
Primeiro, porque "expulsão" virou um termo tabu nas discussões sobre comportamento dos alunos. Há muitos anos ouço eufemismos para essa palavra, proferidos por professores, diretores e coordenadores. Visto que o aluno tem direito constitucional à escola, não se permitia dizer que ele seria expulso da mesma, mas sim transferido para outra unidade. Não se fala mais em expulsão há muitos anos no ambiente em que trabalho, pelo menos não oficialmente, e se nós ou os alunos utilizamos esse termo de forma descuidada, muitas vezes somos corrigidos pelos superiores hierárquicos. Sabemos que, na prática, a escola expulsa o aluno, mas ela nunca diz isso oficialmente, preferindo chamar a ação de transferência. Surpreendeu-me, assim, o uso tão desencabulado desse vocábulo pelos altos escalões da educação.
Segundo, porque, normalmente, a "expulsão" ou transferência de alunos das escolas é processo complicado, chato, delicado e determinado por grande número de variáveis. Quantas e quantas vezes, nesses dez anos de magistério, vi grupos de professores inconformados com a permanência de alunos na instituição em condições e situações absolutamente insustentáveis para a escola! Em post anterior, citei o caso de um aluno que deu um soco numa professora e NÃO FOI TRANSFERIDO. Repare o leitor: ele não quebrou uma carteira, ele agrediu um ser humano, e NÃO FOI TRANSFERIDO. E quando foi discutida sua situação no âmbito das questões internas da escola, em nenhum momento ninguém usou a palavra "expulsão". Há casos graves, alguns até criminais, que não resultam sequer em transferência. Quero crer que, no caso da escola depredada, há que se considerar o fator mídia: quando o acontecimento ganha os jornais e a TV, é preciso mostrar que providências serão tomadas. Mas fica uma impressão ruim: a de que agressões e ações violentas, se não ganham espaço na mídia, são minimizadas e relevadas, ficando restritas às soluções-padrão de "abafa geral" das coordenadorias, enquanto aquelas que viram notícia permitem a construção de um discurso que demonstre força e implacabilidade por parte do sistema.
Não defendo nem condeno as expulsões; essa é uma outra questão na qual nem pensei. Para mim a questão é saber se a preocupação é com a educação ou com a mídia. Porque parece-me que muitos julgam ser mais fácil lidar com a mídia que com a educação. Eu não gosto do "abafa geral", e julgo que a mídia pode jogar a nosso favor se focar o que realmente acontece nas salas de aula e nas escolas em que trabalhamos. O horroroso episódio de hoje me faz pensar que é possível recuperar uma parcela da indignação da sociedade em relação aos problemas enfrentados pelos professores. Só não acho que tenha de ser a esse preço, e por isso acredito que seja necessária uma atitude jornalística mais comprometida com a educação e suas mazelas, que não fique esperando outro espetáculo de bárbarie para tocar nas questões fulcrais que nos dizem respeito.

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