terça-feira, 24 de agosto de 2010

Reflexões sobre a disciplina na escola

A grande vilã da educação fundamental, na cabeça dos professores, foi, é e será sempre a indisciplina. Desde que comecei a lecionar, essa é a reclamação central da maioria dos meus colegas. Não penso que seja sem razão, acontecem fatos realmente inimagináveis em nosso trabalho. Mas duas coisas são impressionantes: primeiro, que as soluções para a disciplina são vistas, no discurso cotidiano informal da categoria, como soluções definitivas para a educação; segundo, que não houve e não há nenhuma resposta governamental efetiva em relação a esse problema, em que pese a importância a ele dada pela categoria.
Quanto ao primeiro incômodo, creio que consegui criar minhas proteções pessoais. Meu conceito de disciplina é outro, menos convencional, mas na verdade bem simples: disciplina é envolvimento (isso ouvi de Giuliano Tierno de Siqueira, grande contador de histórias, e tomei para mim sem mais cerimônia). Então, a questão não é se os alunos estão quietos ou sentados, mas se eles estão participando do que bolei para a aula. Se a particpação exige momentos de quietude, eu aviso antes, e cobro. Se exige momentos de movimentação, idem. A única questão com o qual sou intolerante é a violência. Separo brigas, sim, e não deixo que os meninos fiquem se ofendendo. Essa é uma guerra que tenho obrigação de vencer. As outras, sei que posso vencer, mas dependem de fatores mais complexos.
Em função desse posicionamento, acho até engraçado quando as pessoas dizem (ou uma pessoa diz de si mesma) que alguém é bom professor porque mantém a classe "em ordem", ou "quietinha". Com quarenta alunos por sala e sem recursos de mídia avançados, não creio que seja produtivo trabalhar com silêncio absoluto que não seja associado à concentração em algo que se faz. O aluno que baixa a cabeça e dorme na sala está, para mim, tão perdido quanto o que não presta atenção em nada porque não para no lugar. Manter a ordem e o silêncio pela repressão autoritária é o sonho de muitas pessoas que trabalham comigo, mas entendo que seja,na verdade, apenas uma fantasia compensatória para a frustração de não conseguir fazer o trabalho funcionar. Quando se aceita que falhar também é aprender, creio que esse ranço terrorista se desfaz em uma perspectiva mais aberta e democrática.
O segundo incômodo é algo que me toma mais profundamente, e com o qual tenho mais dificuldade de lidar. Ora, ainda que eu tenha uma concepção mais branda de indisciplina, não moro em Marte. É muito claro para mim que as condições de trabalho ficam profundamente deterioradas quando temos de, dia após dia, nos colocar em situações de enfrentamento com os alunos e a gestão. Não é fácil ser agredido, ser desprezado, ser ironizado constantemente, e isso se torna ainda mais difícil quando as gestões não querem encarar essas violências como problemas da escola, e não do indivíduo que as sofreu. É lamentável, mas a verdade é que aquilo que chamamos de contrato pedagógico é algo que não vingou para essas novas gerações. Contratos implicam obrigações, responsabilidades de cada uma das partes, e justamente o que vemos é uma fuga da responsabilidade, da obrigação, por parte das crianças, e uma incapacidade de estabelecer e cobrar essas responsabilidades, por parte do mundo adulto. Contratos, na verdade, por melhores que sejam, ainda precisam da disposição das partes para serem cumpridos; sem essa disposição, não adianta estabelecê-los goela abaixo e achar que vão funcionar. Para coibir a indisciplina, precisaremos de mais que isso. Precisaremos de uma comunidade que compre as ideias da escola, de uma sociedade que entenda a importância da educação, e de um magistério que não tenha medo de mostrar que os sistemas falham e precisam ser revistos. Precisamos de regras nas escolas, e precisamos que a sociedade e o Estado nos autorizem a cumpri-las, dando-nos autonomia para aplicá-las e aparato legal para sustentá-las. Professores não podem apanhar, não podem ser xingados, não podem ter seus bens depredados; por mais que precisemos proteger nossas crianças, não faz sentido acobertar ou minimizar atos de tão grande deliquência.
Creio, então, que duas possíveis formas de lidar com a questão da disciplina seriam: estabelecer um sistema coercitivo de normas que impeçam a violência, buscando garantias de legitimação desse sistema com a comunidade e o estado; e construir uma percepção mais ampla da ação de educar, o que pode contribuir para gerar uma concepção justamente mais aberta da disciplina escolar.

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