quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O caso da cartinha

Uma aluna minha recebeu um bilhete de parabenização por seu bom desempenho em sala de aula. Sou caprichoso quando confecciono esses mimos, e não foi diferente dessa vez. Coloquei uma cartinha padronizada impressa, com o nome da aluna e da mãe escritos à mão, num envelope branco padrão, e entreguei à menina com a recomendação de que levasse até sua mãe e que só ela (sua mãe) lesse. Mas a menina ficou tão feliz de receber esse presentinho que saiu pela classe mostrando a todos os outros alunos.
Nem todas as pessoas, e muito menos as crianças, têm a mesma percepção de privacidade ou propriedade alheia. Uma das amiguinhas de classe resolveu abrir a cartinha para ver o que estava escrito, enquanto a menina que a recebera conversava distraidamente com um coleguinha. Dali a dois minutos, ela estava na minha mesa, com a cartinha na mão, chorando.
- Mas o que aconteceu, 64757?
- Ela abriu minha cartinha! - apontava a abusada amiguinha com raiva.
- Deixe-me ver. - peguei a carta e observei com atenção. - Olha, não sujou, não rasgou, não aconteceu nada. Está inteirinha, é só guardar e levar para sua mãe.
- Não quero mais.
- Por quê?
- Porque ela leu!
Eu não estava entendendo nada. Depois de mais alguns minutos de conversa, eu desisti de argumentar e fiz outro mimo nos mesmos moldes para a menina. Ela saiu contente, fagueira, mas desta vez guardou-o na mala antes que seus colegas vissem.
Esse episódio aparentemente desimportante fez com que eu parasse para pensar sobre o valor das coisas para as crianças. Para mim, o importante seria que a carta estivesse inteira, sem danos, e não faria diferença entregá-la lida ou não lida por outra pessoa. Mas a culpa foi minha. Quando disse à menina para entregar para sua mãe, eu criei, sem querer, um jogo de segredo e exclusividade, que ela absorveu em seu universo infantil como um compromisso de carinho. Para aquela cabecinha e aquele coraçãozinho, o importante não era nem a carta em si, mas o gesto, e tudo o que o rodeava. O importante era poder dizer à mamãe: trouxe algo só para você, a que ninguém mais (a não ser o professor) teve acesso. O importante era manter intacta essa comunicação carinhosa e positiva de afeto, sem qualquer intereferência, ainda que simbólica, funcionando como ruído. Enfim, para 64757, mesmo sem ter estragado a cartinha, a coleguinha praticara uma invasão nesse processo tão fundamental de comunicação, e a crença nesse objeto como portador de uma mensagem de sentimento fora profanada.
Nada me custou fazer outra cartinha para a menina, e rejubilei com sua satisfação. O que foi difícil para mim foi chegar à compreensão dessas incríveis revelações contidas na reação a um gesto tão simples. Como as crianças nos surpreendem!

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