Se o leitor do blog acostumou-se com um estilo ponderado e educado de escrita no decorrer dos meses, peço que não leia esta postagem. Aqui, fui obrigado a colocar as palavras sem filtro, porque é preciso recuperar não apenas os fatos, mas também o impacto do que aconteceu.
E se o querido leitor não quer acreditar nas estórias mil que ouve a respeito da dificuldade de se trabalhar nas escolas, peço que pare por aqui. Embora seja um fato real, o que narrarei adiante não fará bem a quem acredita que os professores exageram nas reclamações e são acomodados.
Hoje um aluno da 5ª série entrou na sala dos professores e sentou-se no sofá, sem cerimônia. Uma professora disse que ele devia ficar lá fora, que ali era espaço dos professores. Disse que aquilo era um absurdo, ao que ele respondeu: - Absurdo, o caralho!
Eu disse a ele que esperasse lá fora e o conduzi à porta. Antes que eu me desse conta ele voltou e, sem mais, abriu o estojo de canetas de outra professora, que estava em cima da mesa. A professora brigou com ele, dizendo para não mexer ali, que era dela, ao que ele respondeu: - Vai tomar no cu.
Vários professores, revoltados, disseram para ele esperar lá fora, e que não entrasse na sala dos professores, porque estava criando confusão, ao que ele respondeu com um gesto com o dedo médio, citando mães e pais e órgãos do corpo de todos os que reclamavam.
Eu o levei para fora de novo e disse: - Poxa, 234457, não precisa disso! Para que fazer assim? - ao que ele me respondeu: - Desculpa, parei. Ah, mas eu quero ficar lá dentro! E voltou para o interior da sala, desta vez sem adentrar muito. Eu tinha de pegar as minhas coisas e ir para a classe, e quando saí, ainda o vi entretendo-se com a observação de certificados que ficam num vidro, perto da porta. Tudo isso ele fez sem tirar o sorriso do rosto. Tudo isso ele fez diante de, pelo menos, doze professores.
Não comentarei.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
Nem um parabéns, senhor gestor?
Duas cenas que gostaria de comentar.
Há quatro anos atrás, quando saíram os resultados do IDEB de 2005, os professores estavam presentes a uma bizarra reunião pós-aula, nas horas da jornada de formação, da qual eu infelizmente (ou felizmente) me ausentara. Nessa reunião, foram comentados os resultados, interpretados como ruins (ficáramos bem abaixo da meta), de nossa escola na referida avaliação. A então diretora começou sua fala com uma truculenta afirmação: os professores não sabem dar aula. E explanou sobre a necessidade de mudarmos nossa didática, nossas abordagens, nossa maneira de organizar o ensino de cada componente curricular etc. Ficam,os revoltados, inclusive eu que não havia participado da reunião. Daí depreendia-se algo, entretanto: que os resultados da prova Brasil seriam fundamentais para as gestões, e que portanto deveríamos nos empenhar ao máximo para atingi-los.
Este ano, saíram os resultados do IDEB de 2009. Nossa escola, que em 2005 e 2007 ficara abaixo da meta estipulada, desta vez superou essa meta (lembrando que a meta de 2009 era maior que de 2007, que por sua vez era maior que a de 2005). Os resultados (que poderiam ser lidos como muito bons) foram apresentados numa reunião pedagógica com os professores. Nenhum comentário. Nenhuma discussão. Nenhum elogio. Nenhuma referência aos resultados anteriores. Simplesmente: tiramos a nota tal e atingimos a meta.
Fiquei surpreso, e me manifestei de imediato: - Não vamos ganhar parabéns? - disse, não porque tenha em grande estima esses indicadores externos, mas porque havia e há uma grande pressão em relação aos resultados que eles apontam. Ganhamos o parabéns: - Parabéns. E só. O resto da reunião foi de cobranças, cobranças, cobranças. Não esquecer de fazer a chamada. Preencher a pasta de frequência e o diário de classe. Definir por escrito critérios de avaliação. Entregar os relatórios dos alunos com problemas de aprendizagem. Fazer registros e mais registros.
E não mais se falou do resultado excelente que atingíramos.
Isso não foi esquecimento, nem birra, nem acabrunhamento, nem humildade. Isso é um estilo de gestão, hepático, fatigante, focado na pressão sobre o profissional. Um estilo que não tem espaço para comemorações, para celebrações, para percepções de conquista. Um estilo que se baseia em rédeas, e no medo de perdê-las. Um estilo que precisa que o professor se sinta sempre incompetente, desqualificado, incapaz; porque, do contrário, não consegue impor seus desmandos paranóicos. Como dar bronca em quem trabalha direito e consegue frutos? Como dar bronca em quem sabe o que está fazendo e ganha respeitabilidade da comunidade? Só mesmo por meio da cobrança burocrática. É preciso que haja muito o que fazer, muita papelada para preencher, para que ninguém possa sequer respirar, e todo mundo se sinta em dívida. Aí então, todo mundo está na mão. Se conseguirmos algo, não fizemos mais que a obrigação: mantenham-se apertadas as rédeas. Se não conseguimos... apertem-se ainda mais as rédeas!
Esse é o estilo de gestão que considero menos produtivo, ainda mais em se tratando de uma profissão como a nossa, que exige equilíbrio emocional para lidar com grupos de pessoas com carências psicológicas de todo o tipo. Baseado em hierarquia rígida, cumprimento de ordens, e burocratismo acima da pedagogia, esse modelo de gerenciamento é o maior problema da administração educacional da cidade de São Paulo nos últimos seis anos. Creio piamente nisso, e minha crença tem se fortalecido cada vez mais, pois alguns números apontam para o aumento de casos de exoneração, readaptação e licenças de longo prazo justamente em função da deterioração das relações profissionais na capital. Ninguém aguenta carregar nas costas, sozinho, os problemas políticos do desamparo de anos a fio, do desmantelamento da escola, do desprestígio do professorado. Não vamos salvar a educação martirizando profissionais em função de índices duvidosos e concepções tecnocráticas. Como contar com a colaboração construtiva de um profissional em quem não se demonstra confiança?
A política da educação precisa de um olhar mais ameno para seus trabalhadores. Caso contrário, corre o risco de ficar sem eles.
Há quatro anos atrás, quando saíram os resultados do IDEB de 2005, os professores estavam presentes a uma bizarra reunião pós-aula, nas horas da jornada de formação, da qual eu infelizmente (ou felizmente) me ausentara. Nessa reunião, foram comentados os resultados, interpretados como ruins (ficáramos bem abaixo da meta), de nossa escola na referida avaliação. A então diretora começou sua fala com uma truculenta afirmação: os professores não sabem dar aula. E explanou sobre a necessidade de mudarmos nossa didática, nossas abordagens, nossa maneira de organizar o ensino de cada componente curricular etc. Ficam,os revoltados, inclusive eu que não havia participado da reunião. Daí depreendia-se algo, entretanto: que os resultados da prova Brasil seriam fundamentais para as gestões, e que portanto deveríamos nos empenhar ao máximo para atingi-los.
Este ano, saíram os resultados do IDEB de 2009. Nossa escola, que em 2005 e 2007 ficara abaixo da meta estipulada, desta vez superou essa meta (lembrando que a meta de 2009 era maior que de 2007, que por sua vez era maior que a de 2005). Os resultados (que poderiam ser lidos como muito bons) foram apresentados numa reunião pedagógica com os professores. Nenhum comentário. Nenhuma discussão. Nenhum elogio. Nenhuma referência aos resultados anteriores. Simplesmente: tiramos a nota tal e atingimos a meta.
Fiquei surpreso, e me manifestei de imediato: - Não vamos ganhar parabéns? - disse, não porque tenha em grande estima esses indicadores externos, mas porque havia e há uma grande pressão em relação aos resultados que eles apontam. Ganhamos o parabéns: - Parabéns. E só. O resto da reunião foi de cobranças, cobranças, cobranças. Não esquecer de fazer a chamada. Preencher a pasta de frequência e o diário de classe. Definir por escrito critérios de avaliação. Entregar os relatórios dos alunos com problemas de aprendizagem. Fazer registros e mais registros.
E não mais se falou do resultado excelente que atingíramos.
Isso não foi esquecimento, nem birra, nem acabrunhamento, nem humildade. Isso é um estilo de gestão, hepático, fatigante, focado na pressão sobre o profissional. Um estilo que não tem espaço para comemorações, para celebrações, para percepções de conquista. Um estilo que se baseia em rédeas, e no medo de perdê-las. Um estilo que precisa que o professor se sinta sempre incompetente, desqualificado, incapaz; porque, do contrário, não consegue impor seus desmandos paranóicos. Como dar bronca em quem trabalha direito e consegue frutos? Como dar bronca em quem sabe o que está fazendo e ganha respeitabilidade da comunidade? Só mesmo por meio da cobrança burocrática. É preciso que haja muito o que fazer, muita papelada para preencher, para que ninguém possa sequer respirar, e todo mundo se sinta em dívida. Aí então, todo mundo está na mão. Se conseguirmos algo, não fizemos mais que a obrigação: mantenham-se apertadas as rédeas. Se não conseguimos... apertem-se ainda mais as rédeas!
Esse é o estilo de gestão que considero menos produtivo, ainda mais em se tratando de uma profissão como a nossa, que exige equilíbrio emocional para lidar com grupos de pessoas com carências psicológicas de todo o tipo. Baseado em hierarquia rígida, cumprimento de ordens, e burocratismo acima da pedagogia, esse modelo de gerenciamento é o maior problema da administração educacional da cidade de São Paulo nos últimos seis anos. Creio piamente nisso, e minha crença tem se fortalecido cada vez mais, pois alguns números apontam para o aumento de casos de exoneração, readaptação e licenças de longo prazo justamente em função da deterioração das relações profissionais na capital. Ninguém aguenta carregar nas costas, sozinho, os problemas políticos do desamparo de anos a fio, do desmantelamento da escola, do desprestígio do professorado. Não vamos salvar a educação martirizando profissionais em função de índices duvidosos e concepções tecnocráticas. Como contar com a colaboração construtiva de um profissional em quem não se demonstra confiança?
A política da educação precisa de um olhar mais ameno para seus trabalhadores. Caso contrário, corre o risco de ficar sem eles.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O caso da cartinha
Uma aluna minha recebeu um bilhete de parabenização por seu bom desempenho em sala de aula. Sou caprichoso quando confecciono esses mimos, e não foi diferente dessa vez. Coloquei uma cartinha padronizada impressa, com o nome da aluna e da mãe escritos à mão, num envelope branco padrão, e entreguei à menina com a recomendação de que levasse até sua mãe e que só ela (sua mãe) lesse. Mas a menina ficou tão feliz de receber esse presentinho que saiu pela classe mostrando a todos os outros alunos.
Nem todas as pessoas, e muito menos as crianças, têm a mesma percepção de privacidade ou propriedade alheia. Uma das amiguinhas de classe resolveu abrir a cartinha para ver o que estava escrito, enquanto a menina que a recebera conversava distraidamente com um coleguinha. Dali a dois minutos, ela estava na minha mesa, com a cartinha na mão, chorando.
- Mas o que aconteceu, 64757?
- Ela abriu minha cartinha! - apontava a abusada amiguinha com raiva.
- Deixe-me ver. - peguei a carta e observei com atenção. - Olha, não sujou, não rasgou, não aconteceu nada. Está inteirinha, é só guardar e levar para sua mãe.
- Não quero mais.
- Por quê?
- Porque ela leu!
Eu não estava entendendo nada. Depois de mais alguns minutos de conversa, eu desisti de argumentar e fiz outro mimo nos mesmos moldes para a menina. Ela saiu contente, fagueira, mas desta vez guardou-o na mala antes que seus colegas vissem.
Esse episódio aparentemente desimportante fez com que eu parasse para pensar sobre o valor das coisas para as crianças. Para mim, o importante seria que a carta estivesse inteira, sem danos, e não faria diferença entregá-la lida ou não lida por outra pessoa. Mas a culpa foi minha. Quando disse à menina para entregar para sua mãe, eu criei, sem querer, um jogo de segredo e exclusividade, que ela absorveu em seu universo infantil como um compromisso de carinho. Para aquela cabecinha e aquele coraçãozinho, o importante não era nem a carta em si, mas o gesto, e tudo o que o rodeava. O importante era poder dizer à mamãe: trouxe algo só para você, a que ninguém mais (a não ser o professor) teve acesso. O importante era manter intacta essa comunicação carinhosa e positiva de afeto, sem qualquer intereferência, ainda que simbólica, funcionando como ruído. Enfim, para 64757, mesmo sem ter estragado a cartinha, a coleguinha praticara uma invasão nesse processo tão fundamental de comunicação, e a crença nesse objeto como portador de uma mensagem de sentimento fora profanada.
Nada me custou fazer outra cartinha para a menina, e rejubilei com sua satisfação. O que foi difícil para mim foi chegar à compreensão dessas incríveis revelações contidas na reação a um gesto tão simples. Como as crianças nos surpreendem!
Nem todas as pessoas, e muito menos as crianças, têm a mesma percepção de privacidade ou propriedade alheia. Uma das amiguinhas de classe resolveu abrir a cartinha para ver o que estava escrito, enquanto a menina que a recebera conversava distraidamente com um coleguinha. Dali a dois minutos, ela estava na minha mesa, com a cartinha na mão, chorando.
- Mas o que aconteceu, 64757?
- Ela abriu minha cartinha! - apontava a abusada amiguinha com raiva.
- Deixe-me ver. - peguei a carta e observei com atenção. - Olha, não sujou, não rasgou, não aconteceu nada. Está inteirinha, é só guardar e levar para sua mãe.
- Não quero mais.
- Por quê?
- Porque ela leu!
Eu não estava entendendo nada. Depois de mais alguns minutos de conversa, eu desisti de argumentar e fiz outro mimo nos mesmos moldes para a menina. Ela saiu contente, fagueira, mas desta vez guardou-o na mala antes que seus colegas vissem.
Esse episódio aparentemente desimportante fez com que eu parasse para pensar sobre o valor das coisas para as crianças. Para mim, o importante seria que a carta estivesse inteira, sem danos, e não faria diferença entregá-la lida ou não lida por outra pessoa. Mas a culpa foi minha. Quando disse à menina para entregar para sua mãe, eu criei, sem querer, um jogo de segredo e exclusividade, que ela absorveu em seu universo infantil como um compromisso de carinho. Para aquela cabecinha e aquele coraçãozinho, o importante não era nem a carta em si, mas o gesto, e tudo o que o rodeava. O importante era poder dizer à mamãe: trouxe algo só para você, a que ninguém mais (a não ser o professor) teve acesso. O importante era manter intacta essa comunicação carinhosa e positiva de afeto, sem qualquer intereferência, ainda que simbólica, funcionando como ruído. Enfim, para 64757, mesmo sem ter estragado a cartinha, a coleguinha praticara uma invasão nesse processo tão fundamental de comunicação, e a crença nesse objeto como portador de uma mensagem de sentimento fora profanada.
Nada me custou fazer outra cartinha para a menina, e rejubilei com sua satisfação. O que foi difícil para mim foi chegar à compreensão dessas incríveis revelações contidas na reação a um gesto tão simples. Como as crianças nos surpreendem!
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Reflexões sobre a disciplina na escola
A grande vilã da educação fundamental, na cabeça dos professores, foi, é e será sempre a indisciplina. Desde que comecei a lecionar, essa é a reclamação central da maioria dos meus colegas. Não penso que seja sem razão, acontecem fatos realmente inimagináveis em nosso trabalho. Mas duas coisas são impressionantes: primeiro, que as soluções para a disciplina são vistas, no discurso cotidiano informal da categoria, como soluções definitivas para a educação; segundo, que não houve e não há nenhuma resposta governamental efetiva em relação a esse problema, em que pese a importância a ele dada pela categoria.
Quanto ao primeiro incômodo, creio que consegui criar minhas proteções pessoais. Meu conceito de disciplina é outro, menos convencional, mas na verdade bem simples: disciplina é envolvimento (isso ouvi de Giuliano Tierno de Siqueira, grande contador de histórias, e tomei para mim sem mais cerimônia). Então, a questão não é se os alunos estão quietos ou sentados, mas se eles estão participando do que bolei para a aula. Se a particpação exige momentos de quietude, eu aviso antes, e cobro. Se exige momentos de movimentação, idem. A única questão com o qual sou intolerante é a violência. Separo brigas, sim, e não deixo que os meninos fiquem se ofendendo. Essa é uma guerra que tenho obrigação de vencer. As outras, sei que posso vencer, mas dependem de fatores mais complexos.
Em função desse posicionamento, acho até engraçado quando as pessoas dizem (ou uma pessoa diz de si mesma) que alguém é bom professor porque mantém a classe "em ordem", ou "quietinha". Com quarenta alunos por sala e sem recursos de mídia avançados, não creio que seja produtivo trabalhar com silêncio absoluto que não seja associado à concentração em algo que se faz. O aluno que baixa a cabeça e dorme na sala está, para mim, tão perdido quanto o que não presta atenção em nada porque não para no lugar. Manter a ordem e o silêncio pela repressão autoritária é o sonho de muitas pessoas que trabalham comigo, mas entendo que seja,na verdade, apenas uma fantasia compensatória para a frustração de não conseguir fazer o trabalho funcionar. Quando se aceita que falhar também é aprender, creio que esse ranço terrorista se desfaz em uma perspectiva mais aberta e democrática.
O segundo incômodo é algo que me toma mais profundamente, e com o qual tenho mais dificuldade de lidar. Ora, ainda que eu tenha uma concepção mais branda de indisciplina, não moro em Marte. É muito claro para mim que as condições de trabalho ficam profundamente deterioradas quando temos de, dia após dia, nos colocar em situações de enfrentamento com os alunos e a gestão. Não é fácil ser agredido, ser desprezado, ser ironizado constantemente, e isso se torna ainda mais difícil quando as gestões não querem encarar essas violências como problemas da escola, e não do indivíduo que as sofreu. É lamentável, mas a verdade é que aquilo que chamamos de contrato pedagógico é algo que não vingou para essas novas gerações. Contratos implicam obrigações, responsabilidades de cada uma das partes, e justamente o que vemos é uma fuga da responsabilidade, da obrigação, por parte das crianças, e uma incapacidade de estabelecer e cobrar essas responsabilidades, por parte do mundo adulto. Contratos, na verdade, por melhores que sejam, ainda precisam da disposição das partes para serem cumpridos; sem essa disposição, não adianta estabelecê-los goela abaixo e achar que vão funcionar. Para coibir a indisciplina, precisaremos de mais que isso. Precisaremos de uma comunidade que compre as ideias da escola, de uma sociedade que entenda a importância da educação, e de um magistério que não tenha medo de mostrar que os sistemas falham e precisam ser revistos. Precisamos de regras nas escolas, e precisamos que a sociedade e o Estado nos autorizem a cumpri-las, dando-nos autonomia para aplicá-las e aparato legal para sustentá-las. Professores não podem apanhar, não podem ser xingados, não podem ter seus bens depredados; por mais que precisemos proteger nossas crianças, não faz sentido acobertar ou minimizar atos de tão grande deliquência.
Creio, então, que duas possíveis formas de lidar com a questão da disciplina seriam: estabelecer um sistema coercitivo de normas que impeçam a violência, buscando garantias de legitimação desse sistema com a comunidade e o estado; e construir uma percepção mais ampla da ação de educar, o que pode contribuir para gerar uma concepção justamente mais aberta da disciplina escolar.
Quanto ao primeiro incômodo, creio que consegui criar minhas proteções pessoais. Meu conceito de disciplina é outro, menos convencional, mas na verdade bem simples: disciplina é envolvimento (isso ouvi de Giuliano Tierno de Siqueira, grande contador de histórias, e tomei para mim sem mais cerimônia). Então, a questão não é se os alunos estão quietos ou sentados, mas se eles estão participando do que bolei para a aula. Se a particpação exige momentos de quietude, eu aviso antes, e cobro. Se exige momentos de movimentação, idem. A única questão com o qual sou intolerante é a violência. Separo brigas, sim, e não deixo que os meninos fiquem se ofendendo. Essa é uma guerra que tenho obrigação de vencer. As outras, sei que posso vencer, mas dependem de fatores mais complexos.
Em função desse posicionamento, acho até engraçado quando as pessoas dizem (ou uma pessoa diz de si mesma) que alguém é bom professor porque mantém a classe "em ordem", ou "quietinha". Com quarenta alunos por sala e sem recursos de mídia avançados, não creio que seja produtivo trabalhar com silêncio absoluto que não seja associado à concentração em algo que se faz. O aluno que baixa a cabeça e dorme na sala está, para mim, tão perdido quanto o que não presta atenção em nada porque não para no lugar. Manter a ordem e o silêncio pela repressão autoritária é o sonho de muitas pessoas que trabalham comigo, mas entendo que seja,na verdade, apenas uma fantasia compensatória para a frustração de não conseguir fazer o trabalho funcionar. Quando se aceita que falhar também é aprender, creio que esse ranço terrorista se desfaz em uma perspectiva mais aberta e democrática.
O segundo incômodo é algo que me toma mais profundamente, e com o qual tenho mais dificuldade de lidar. Ora, ainda que eu tenha uma concepção mais branda de indisciplina, não moro em Marte. É muito claro para mim que as condições de trabalho ficam profundamente deterioradas quando temos de, dia após dia, nos colocar em situações de enfrentamento com os alunos e a gestão. Não é fácil ser agredido, ser desprezado, ser ironizado constantemente, e isso se torna ainda mais difícil quando as gestões não querem encarar essas violências como problemas da escola, e não do indivíduo que as sofreu. É lamentável, mas a verdade é que aquilo que chamamos de contrato pedagógico é algo que não vingou para essas novas gerações. Contratos implicam obrigações, responsabilidades de cada uma das partes, e justamente o que vemos é uma fuga da responsabilidade, da obrigação, por parte das crianças, e uma incapacidade de estabelecer e cobrar essas responsabilidades, por parte do mundo adulto. Contratos, na verdade, por melhores que sejam, ainda precisam da disposição das partes para serem cumpridos; sem essa disposição, não adianta estabelecê-los goela abaixo e achar que vão funcionar. Para coibir a indisciplina, precisaremos de mais que isso. Precisaremos de uma comunidade que compre as ideias da escola, de uma sociedade que entenda a importância da educação, e de um magistério que não tenha medo de mostrar que os sistemas falham e precisam ser revistos. Precisamos de regras nas escolas, e precisamos que a sociedade e o Estado nos autorizem a cumpri-las, dando-nos autonomia para aplicá-las e aparato legal para sustentá-las. Professores não podem apanhar, não podem ser xingados, não podem ter seus bens depredados; por mais que precisemos proteger nossas crianças, não faz sentido acobertar ou minimizar atos de tão grande deliquência.
Creio, então, que duas possíveis formas de lidar com a questão da disciplina seriam: estabelecer um sistema coercitivo de normas que impeçam a violência, buscando garantias de legitimação desse sistema com a comunidade e o estado; e construir uma percepção mais ampla da ação de educar, o que pode contribuir para gerar uma concepção justamente mais aberta da disciplina escolar.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Mais uma reunião de representantes do SINPEEM
Mais uma reunião de representantes do SINPEEM. A dinâmica de sempre: primeira parte com exposição de especialistas sobre temas relacionados à educação brasileira, segunda parte dividida entre longos informes e alguns poucos debates de propostas.
O SINPEEM é, para o bem ou para o mal, o sindicato de Claudio Fonseca. Ninguém pode dizer que o extraordinário crescimento da entidade, que é a maior de São Paulo e provavelmente do Brasil para a categoria, não seja mérito da luta, persistência e dedicação de seu atual presidente. O Claudio é um político hábil, com discurso forte e inegáveis capacidades de persuasão e negociação. Quando são colocadas propostas em votação, dificilmente a categoria vota contra a proposta por ele defendida. Além disso, parece que transita bem nas esferas de poder do Executivo e do Legislativo. Tanto que conseguiu se tornar vereador e cultiva bom relacionamento tanto com o secretário da educação quanto com o prefeito. E tudo isso mantendo-se como presidente do SINPEEM.
Que fique claro aqui que não sou "claudista". Pelo contrário, sempre manifestei discordâncias em relação a condução de reuniões e certos rumos da atuação de nosso presidente, principalmente quando recuamos da greve que realizávamos no início da administração Kassab. O que não posso fazer, entretanto, é negar os fatos. A categoria gosta do Claudio, confia nele, acata o que ele diz, e a oposição nunca conseguiu lidar de forma inteligente com essa relação. A história de Claudio Fonseca enquanto líder sindical não é algo que se possa jogar pela janela ou esconder debaixo do tapete, ainda que discordemos do que ele venha a fazer. Os professores percebem isso, mas os opositores, infelizmente, não, e atacam com uma agressividade que espanta as parcelas menos politizadas da categoria. Resultado: no fim, Claudio sempre vira o jogo para ele. Temos de reconhecer.
Em relação a isso, tenho alguns receios. O primeiro é o de que a liderança que o Claudio exerce não encontre equivalente sucessório no âmbito da entidade, o que é muito provável, pois não me parece que haja líderes tão personalistas nem na situação, nem na oposição. É claro que esse vazio pode até ser bom, pois haveria a posssibilidade de que uma alternância no poder implicasse em um incremento na atuação dos diferentes grupos.
O segundo receio é um pouco mais pesado. Com erros e acertos, decisões corretas e incorretas, conquistas e recuos, a permanência do Claudio no poder por tanto tempo (nem sei quantas vezes foi reeleito) criou uma condição absolutamente curiosa: a oposição parece que se conformou com isso. Em momentos de maior embate político, as reuniões de representantes foram marcadas por ferozes discussões, discursos inflamados, acusações mútuas, explosões de ânimo. Faz já algum tempo que isso não acontece. As reuniões tem sido mornas, sem grandes sobressaltos, com concordâncias quase universais entre as diversas correntes de política sindical. Se posso encontrar uma explicação minimamente satisfatória para essa capitulação, creio que está, novamente, na habilidade do presidente: Claudio tem inteligência de abrir espaço para a oposição no Conselho do SINPEEM e colocar membros de diversas correntes em cargos dentro da entidade. Assim, as decisões, mesmo as mais questionáveis, deixam de ter apenas seu DNA personalista, e passam a contar com a assinatura e o compromisso das alas de oposição. Ora, isso praticamente liquida com a possibilidade de uma postura mais contestatória, o que pode ser muito perigoso: precisamos, sempre de antagonistas nas narrativas. O movimento dialético do pensamento não pode se realizar sem o contraditório, sem o outro, sem o que nega e se opõe; podemos não gostar da maneira como esse contraditório se manifesta, mas não podemos viver sem ele. Seria um risco muito grande.
Esses meus dois receios relacionam-se, em suma, a perspectivas futuras: o que acontecerá com um sindicato do tamanho do SINPEEM se o Claudio continuar com um domínio tão absoluto das ações políticas e a oposição não conseguir construir uma pauta que congregue a categoria? O que acontecerá com nossas conquistas no dia em que o Claudio sair e não houver organização suficiente nem clareza de objetivos para seu sucessor na entidade? Como poderemos cobrar o Claudio em questões que exigem atuação mais enérgica do sindicato ou em erros que ele vier a cometer, ou mesmo em atitudes autoritárias que ele puder realizar em função de sua folgada condição de liderança, se a oposição silenciar em função de acordos internos?
São perguntas que não serão respondidas tão cedo, mas que exigiriam certo esforço de reflexão da categoria nos próximos anos.
O SINPEEM é, para o bem ou para o mal, o sindicato de Claudio Fonseca. Ninguém pode dizer que o extraordinário crescimento da entidade, que é a maior de São Paulo e provavelmente do Brasil para a categoria, não seja mérito da luta, persistência e dedicação de seu atual presidente. O Claudio é um político hábil, com discurso forte e inegáveis capacidades de persuasão e negociação. Quando são colocadas propostas em votação, dificilmente a categoria vota contra a proposta por ele defendida. Além disso, parece que transita bem nas esferas de poder do Executivo e do Legislativo. Tanto que conseguiu se tornar vereador e cultiva bom relacionamento tanto com o secretário da educação quanto com o prefeito. E tudo isso mantendo-se como presidente do SINPEEM.
Que fique claro aqui que não sou "claudista". Pelo contrário, sempre manifestei discordâncias em relação a condução de reuniões e certos rumos da atuação de nosso presidente, principalmente quando recuamos da greve que realizávamos no início da administração Kassab. O que não posso fazer, entretanto, é negar os fatos. A categoria gosta do Claudio, confia nele, acata o que ele diz, e a oposição nunca conseguiu lidar de forma inteligente com essa relação. A história de Claudio Fonseca enquanto líder sindical não é algo que se possa jogar pela janela ou esconder debaixo do tapete, ainda que discordemos do que ele venha a fazer. Os professores percebem isso, mas os opositores, infelizmente, não, e atacam com uma agressividade que espanta as parcelas menos politizadas da categoria. Resultado: no fim, Claudio sempre vira o jogo para ele. Temos de reconhecer.
Em relação a isso, tenho alguns receios. O primeiro é o de que a liderança que o Claudio exerce não encontre equivalente sucessório no âmbito da entidade, o que é muito provável, pois não me parece que haja líderes tão personalistas nem na situação, nem na oposição. É claro que esse vazio pode até ser bom, pois haveria a posssibilidade de que uma alternância no poder implicasse em um incremento na atuação dos diferentes grupos.
O segundo receio é um pouco mais pesado. Com erros e acertos, decisões corretas e incorretas, conquistas e recuos, a permanência do Claudio no poder por tanto tempo (nem sei quantas vezes foi reeleito) criou uma condição absolutamente curiosa: a oposição parece que se conformou com isso. Em momentos de maior embate político, as reuniões de representantes foram marcadas por ferozes discussões, discursos inflamados, acusações mútuas, explosões de ânimo. Faz já algum tempo que isso não acontece. As reuniões tem sido mornas, sem grandes sobressaltos, com concordâncias quase universais entre as diversas correntes de política sindical. Se posso encontrar uma explicação minimamente satisfatória para essa capitulação, creio que está, novamente, na habilidade do presidente: Claudio tem inteligência de abrir espaço para a oposição no Conselho do SINPEEM e colocar membros de diversas correntes em cargos dentro da entidade. Assim, as decisões, mesmo as mais questionáveis, deixam de ter apenas seu DNA personalista, e passam a contar com a assinatura e o compromisso das alas de oposição. Ora, isso praticamente liquida com a possibilidade de uma postura mais contestatória, o que pode ser muito perigoso: precisamos, sempre de antagonistas nas narrativas. O movimento dialético do pensamento não pode se realizar sem o contraditório, sem o outro, sem o que nega e se opõe; podemos não gostar da maneira como esse contraditório se manifesta, mas não podemos viver sem ele. Seria um risco muito grande.
Esses meus dois receios relacionam-se, em suma, a perspectivas futuras: o que acontecerá com um sindicato do tamanho do SINPEEM se o Claudio continuar com um domínio tão absoluto das ações políticas e a oposição não conseguir construir uma pauta que congregue a categoria? O que acontecerá com nossas conquistas no dia em que o Claudio sair e não houver organização suficiente nem clareza de objetivos para seu sucessor na entidade? Como poderemos cobrar o Claudio em questões que exigem atuação mais enérgica do sindicato ou em erros que ele vier a cometer, ou mesmo em atitudes autoritárias que ele puder realizar em função de sua folgada condição de liderança, se a oposição silenciar em função de acordos internos?
São perguntas que não serão respondidas tão cedo, mas que exigiriam certo esforço de reflexão da categoria nos próximos anos.
sábado, 7 de agosto de 2010
Cena que testemunhei - 3
- Sabe, professor, esses dias fui fazer uma entrevista.
- É mesmo, XFG7458239, para quê?
- É para uma vaga no SENAI.
- E como você foi na entrevista?
- Acho que fui bem. Você não acredita, professor. O moço perguntou a um menino: "o que você gosta de fazer?". Sabe o que ele respondeu? "Gosto de bater na minha irmã".
- Hahaha, que maluco! Como pode?
- Incrível, né? O outro, quando perguntaram de que matéria ele gostava na escola, disse assim: "Não gosto de Português, não gosto de Matemática, não gosto de Ciências. Para falar a verdade, não gosto de nenhuma matéria".
- Não acredito!
- Pois é... E teve outro, professor, que disse que batia no próprio pai, e bateria no professor se folgasse com ele.
- Credo!
- E ainda teve mais um que disse que sua maior qualidade era gostar de pessoas. Depois, em outra pergunta, disse que seu maior defeito era brigar com as pessoas. O entrevistador perguntou: você gosta ou não gosta das pessoas? Ele ficou sem saber o que responder.
- Hahaha, inacreditável.
- Você vê, professor, o cara vai uma entrevista de emprego e diz que não gosta de estudar, que bate nos outros. Como ele quer a vaga? Pô, mesmo que fosse isso mesmo... mente, né?
- É sim, XFG7458239. Pior que você tem razão.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Até hoje estou pensando sobre a última frase do diálogo. E não tenho juízo definido sobre ela.
- É mesmo, XFG7458239, para quê?
- É para uma vaga no SENAI.
- E como você foi na entrevista?
- Acho que fui bem. Você não acredita, professor. O moço perguntou a um menino: "o que você gosta de fazer?". Sabe o que ele respondeu? "Gosto de bater na minha irmã".
- Hahaha, que maluco! Como pode?
- Incrível, né? O outro, quando perguntaram de que matéria ele gostava na escola, disse assim: "Não gosto de Português, não gosto de Matemática, não gosto de Ciências. Para falar a verdade, não gosto de nenhuma matéria".
- Não acredito!
- Pois é... E teve outro, professor, que disse que batia no próprio pai, e bateria no professor se folgasse com ele.
- Credo!
- E ainda teve mais um que disse que sua maior qualidade era gostar de pessoas. Depois, em outra pergunta, disse que seu maior defeito era brigar com as pessoas. O entrevistador perguntou: você gosta ou não gosta das pessoas? Ele ficou sem saber o que responder.
- Hahaha, inacreditável.
- Você vê, professor, o cara vai uma entrevista de emprego e diz que não gosta de estudar, que bate nos outros. Como ele quer a vaga? Pô, mesmo que fosse isso mesmo... mente, né?
- É sim, XFG7458239. Pior que você tem razão.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Até hoje estou pensando sobre a última frase do diálogo. E não tenho juízo definido sobre ela.
Assinar:
Postagens (Atom)