sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Conquistas e renúncias

Acaba o ano de 2011, com um saldo imensamente positivo e uma série de descobertas no campo profissional.

Desde meados de 2009, vinha crescendo em meu coração uma certeza, maior que todas as outras convicções que sempre carreguei na minha trajetória: eu vinha percebendo a necessidade de mudar.

Trabalhar com crianças e adolescentes é uma das coisas mais extraordinárias que um ser humano pode fazer. Fazer parte da formação de outros seres humanos é algo que não tem nome, não tem preço, não tem paralelo. Desde sempre, em minha profissão, quando eu colocava a cabeça no travesseiro, sabia que poderia dormir sossegado, porque estava realizando, todos os dias, um pedaço do que eu considero a verdadeira transformação do mundo.

Os anos se passaram, e minha disposição física e psicológica começou a cair, por vários motivos. Não seria sensato tentar enumerá-los todos, mas algumas coisas contribuíram decisivamente. Uma delas foi o começo da carreira no ensino superior particular, onde me senti muito mais cobrado intelectualmente que fisicamente, e me senti chamado novamente ao desenvolvimento intelectual. Essa oportunidade veio em função dos problemas econômicos pós-separação, e não exatamente de uma busca deliberada.

Depois, com dois empregos, minha disponibilidade caiu para amigos, hobbies, projetos pessoais e vida particular, mas o dinheiro era necessário. Foram cinco anos nessa toada, até que o corpo começou a avisar que havia problemas.

Acredito que boa parte do que sentimos fisicamente começa no nosso espírito. Nossas disposições mentais vão mudando, nossa tolerância com certas coisas vai diminuindo, e começamos a ficar chateados de ter de enfrentar os mesmos desafios que deveriam estar anteriormente superados. Não me refiro aos alunos, que são sempre desafios novos e gratificantes. Refiro-me à estrutura de trabalho, que vai criando cada vez mais empecilhos à verdadeira batalha, que é a da educação de qualidade. Eu vinha me decepcionando cada dia mais com os rumos administrativos e pedagógicos da educação fundamental.

Durante muito tempo, estive em Sala de Leitura, um trabalho que me permitia inovar, criar, determinar dinâmicas, e até ter um espaço meu para estudos e aprofundamentos, conforme o caso. A saída da Sala de Leitura, por razões burocráticas, jogou-me novamente no turbulento mundo das salas de aula sem recursos, das tecnocracias disciplinares, das relações estranhas em salas de professores. Passaram-se dois anos, com uma produtiva experiência em turmas de EJA para amenizá-los; mas, ao final deles, eu estava completamente esgotado.

Então, comecei a entender que era hora de fazer outra coisa, de procurar algo com o que tivesse condições de lidar. O barulho, a agitação física, o assédio moral, o ambiente carregado, as agressões naturalizadas, o autoritarismo das relações de trabalho, tudo isso estava me fazendo muito mal. Eu começara a reagir, a ser irônico, destrutivo, irritadiço. Eu começara a me defender com minha arrogância e minha dedicação insana ao trabalho. Eu começara a produzir dentro de mim sementes amargas. Resultado: cálculos renais grandes, que conduziram a duas penosas cirurgias e à quase improdutividade do primeiro semestre de 2010.

Já entendendo, antes mesmo das complicações físicas, que as coisas não poderiam continuar daquele jeito - ou seja, que eu estava, por incrível que pareça, infeliz com o que fazia -, comecei a investir na ideia de sair da condição de professor da Prefeitura de São Paulo. A princípio, pensei em ser coordenador, ou pelo menos abrir essa possibilidade. Entrei num curso de Pedagogia complementar, que acabaria não concluindo, pois atrasei os estágios em função das complicações físicas e não consegui rearticular tempo para fazê-los no prazo. Prestei concurso na área de coordenação, tendo sido aprovado. Paralelamente, fui prestando alguns outros concursos, sendo surpreendentemente aprovado em boa parte deles, a despeito do pouco tempo que tinha para estudar. Mas eram vagas complicadas: ou faziam com que eu permanecesse atrelado à Prefeitura, ou ofereciam cargos temporários, em função dos quais em não poderia jamais abrir mão do meu, que era efetivo.

Foi nesse contexto que prestei o concurso do Instituto Federal de Educação de São Paulo. Eu não achava que tivesse muita chance. Na verdade, quando eu prestei, eu nem sabia direito como funcionava a seleção. Tanto que, quando fiquei em segundo na primeira fase, não sabia quais seriam as etapas posteriores. Mas minha boa colocação dera-me o alento necessário para investir. Fui atrás, estudei, preparei minhas aulas para a segunda fase e, pela graça de Deus, logrei ser aprovado em segundo lugar.

O que considero mais extraordinário de ter ido tão longe é que meu objetivo não era, a princípio, galgar a carreira acadêmica na esfera pública. O que eu queria mesmo era procurar uma alternativa, fosse qual fosse, para manter a estabilidade de emprego e sair do tipo de trabalho que estava me fazendo mal. Eu não me pensava, naquele momento, como um professor universitário de uma Federal, sonho óbvio das pessoas em minha área. Eu queria condições de trabalhar sem prejuízos à minha saúde. E, ademais, eu tinha apenas o título de mestre, o que seria insuficiente para a maioria das vagas que se abriam.

Mas aconteceu, e veio em excelente momento. No meio do ano, saí da Prefeitura e - lamentavelmente, nesse caso - também da faculdade particular em que lecionava, e assumi o cargo de professor de português numa instituição que já conhecia, que fazia parte da minha formação e na qual eu podia me sentir verdadeiramente em casa, seguro.

Então, vieram os seis meses finais de 2011. Que são sem dúvida os de maior importância para mim, visto que os seis primeiros meses desse ano estiveram completamente atrelados à expectativa da convocação para o Instituto Federal. Posso dizer até que isso fez com que não fossem tão produtivos quanto deveriam, mas não me arrependo disso, e considero até natural, em vista do que se passava em meu coração.

E o segundo semestre de 2011 foi de intenso aprendizado. Em primeiro lugar, era preciso aprender a dar aula em duplas, coisa que até então nunca tinha feito, ou nunca tinha feito naquele formato. Era preciso, portanto, desenvolver certa inteligência política que nunca foi muito meu forte, e certa capacidade de lidar com problemas que não eram meus, o que costumava me aborrecer em outros tempos. Acredito que esse aprendizado foi vitorioso. Consegui levar bem as duplas, consegui realizar meu trabalho com relativa harmonia, na maior parte dos casos. Em certos momentos, percebi que poderia estar mais vulnerável do que pensava. Eu tinha de entender que estava trabalhando com um grupo muito qualificado, e que, nessas condições, era natural que as pessoas competissem por espaços e convicções pedagógicas de uma forma diferente daquela que até então havia vivenciado. Eu precisava aprender a me colocar, e ser mais cuidadoso; isso era uma coisa toda minha. À parte isso, nada tenho a reclamar dos meus colegas, nem de meus parceiros. Tudo correu como o programado em todas as disciplinas.

Em segundo lugar, era preciso aprender como funciona o Instituto, e quais são seus meandros e caminhos. O que me deixou bastante assustado, no começo, foi perceber que era uma instituição em que, a despeito dos objetivos educacionais, os funcionários administrativos tinham muito mais poder político, institucional e de diálogo que os professores. Isso era uma novidade desagradável para mim, acostumado a considerar meu trabalho como o centro das preocupações de qualquer lugar onde o exercesse. Outra coisa que percebi foi a existência de certo distanciamento de perspectivas entre os professores e os ocupantes de outros cargos, o que é característica de organizações fortemente burocratizadas e hierarquizadas. Mas o que realmente foi complicado de entender - e confesso que ainda não entendi - foi que, dentro dessa estrutura fortemente burocratizada e hierarquizada de decisões dentro do Instituto, a burocracia não era de fato eficiente. Porque é fácil lidar com os trâmites burocráticos quando eles resultam em ações claras e direcionamentos efetivos. Mas, acredite se quiser, os trâmites eram excessivos e paradoxalmente ineficazes para solucionar nossos problemas. Mas aos poucos fui me habituando e, sobretudo, entendendo que meu trabalho não seria afetado por isso, se eu não permitisse.

Em terceiro lugar, o maior e mais útil e mais perfeito e delicioso dos aprendizados. Eu tinha de lidar com o público estudantil mais qualificado que já conhecera. O que faz a diferença no Instituto em relação a qualquer outro ambiente de trabalho é o aluno, disso não tenho a menor dúvida. Nunca vira alunos tão bons, tão interessados, tão participativos, e tão bem preparados. Quando isso acontece, eu já sei o que fazer: trabalhar muito, muito, muito. Estudar, preparar aulas, trazer conteúdos, atender a quem eu puder atender, conversar sobre interesses da classe. Não, eu ainda não logrei atingir o melhor do que posso fazer. Mas senti que evoluí, porque fui exigido exatamente nos pontos onde posso render mais. Creio que só encontrei tamanho grau de satisfação quando lecionava em minhas turmas de Letras da faculdade. E sonho com a abertura, no Instituto, de uma Licenciatura em Letras, na qual eu me veria duplamente realizado.

Enfim, 2012 vem com muitas promessas, e eu creio que conseguirei alcançar resultados ainda mais expressivos do que consegui. Saio de 2011 fortalecido, prestigiado, vencedor da luta contra as condições em que vivi nos últimos anos, e pronto para edificar uma série de conquistas relacionadas àquilo que verdadeiramente amo: a língua, a arte, a música, a literatura, a educação, o diálogo respeitoso, a democracia, o conhecimento, o ser humano.

domingo, 27 de novembro de 2011

Observações sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant

Escrevi este texto para minhas aulas de Filosofia da Educação. Gostei e resolvi compartilhar.

O filme de Gus Van Sant, Elefante, que recria ficcionalmente as circunstâncias do massacre de Columbine, não pode ser fruído nas condições geralmente esperadas para um produto convencional de entretenimento. Muitos dos elementos que o constituem são inusitados para um filme comercial. O estranhamento começa pela dificuldade de estabelecer a unidade da narrativa. É preciso prestar muita atenção para costurar as diferentes sequências dentro de uma linha de tempo consistente.Tal como a temporalidade, a causalidade também traz problemas para o espectador, que precisa de grande esforço mental para estabelecer os vínculos de sentido entre as diversas personagens que vão aparecendo na trama. Além disso, acompanhar cada uma das sequências também é tarefa complicada, porque elas são longas, lentas e desprovidas de montagens e edições que poderiam sumarizar as cenas, trazendo apenas os aspectos incoativos (relacionados ao começo) e terminativos (relacionados ao final) das ações. O resultado é uma mistura de tédio e tensão: não se sabe quando a cena vai acabar, não se consegue precisar o sentido exato do que está acontecendo, e não se consegue compreender o que está ainda na iminência de acontecer.
Por tudo isso, a análise do filme depende em grande medida da compreensão de sua proposta estética, o que também não é uma tarefa fácil. Vincular todas essas estranhas opções cinematográficas a um projeto final de sentido exige não só reflexão e conhecimento, mas também uma certa confiança condescendente nas apostas do diretor/roteirista, para que o estranhamento não nos leve a abandonar a obra por não encontrarmos nela elementos elucidadores e autoexplicativos, tão comuns a narrativas fílmicas.
Vários podem ser os caminhos para a análise de uma obra de arte, mas talvez os mais seguros – visto que Elefante é um filme em que há perigo de se perder a compreensão do todo, pois os sentidos não se evidenciam de imediato – talvez possam ser construídos a partir de pistas presentes no próprio objeto de análise. O aparecimento do nome das personagens, em passagens de sequências de cenas, identificando protagonistas e coadjuvantes da trama, aparece como uma intervenção de coesão do autor. Se houve a opção de destacar esses nomes e de relacioná-los a personagens que participam da trama, é porque considera-se que identificá-los e compreender as ações que realizam contribui para que se atinja o efeito esperado. O autor organiza a obra por meio desse expediente; portanto, o expediente tem uma razão de ser.
Essa opção de interpretação, no entanto, revela-se ainda um passo tímido em direção ao entendimento de Elefante. Não há obviedade alguma nas possíveis relações entre as personagens da trama: John, Elias, Nathan, Carrie, Acádia, Eric, Alex, Michelle, Brittany, Jordan, Nicole, Benny fazem coisas diferentes em lugares diferentes, com diferentes finalidades; suas posturas físicas, seus padrões de comportamento, suas relações com outras pessoas e com as situações em que se envolvem também são notoriamente distintas. O que têm em comum é o fato de que todas estão presentes na escola no dia do massacre. Entretanto, mesmo esse fato não é suficiente para justificar esteticamente as escolhas de Gus Van Sant. Não seriam necessárias longas cenas e frenéticos avanços e recuos de tempo para mostrar como o acaso colocou todas essas criaturas no mesmo barco. O que a bebedeira do pai de John ou a revelação de fotos de Elias pode trazer de elucidativo para uma trama que tem seu desfecho no brutal assassinato de adolescentes por outros adolescentes?
Talvez seja nesse ponto que se possa dar todos os créditos a Van Sant. Se ele quisesse fazer um filme explicando o que aconteceu, teria várias alternativas. Se a explicação fosse o bullying, poderia centrar a história na humilhação dos garotos-assassinos, para posteriormente mostrar o quanto eles se tornaram amargos, anormais e raivosos. Se a explicação fosse a pressão da sociabilidade e da competição social reproduzida nas escolas, poderia focar as personagens de maior sucesso e maior fracasso, mostrando suas vidas antagônicas e a tensão dos conflitos em suas convivências. Se a explicação fosse o desequilíbrio mental dos adolescentes atiradores, poderia ter utilizado quase que exclusivamente cenas que mostrassem esses meninos em seus delírios e estranhezas.
Mas é possível pensar uma outra coisa: e se o diretor quisesse criar um filme mostrando justamente a impossibilidade de reduzir o problema a explicações simples e parciais? Em outras palavras, e se o diretor quisesse mostrar que o sentido de um massacre como o de Columbine não pode ser depreendido por percepções individuais isoladas, mas deve estar relacionado a uma compreensão mais global do fenômeno da violência e de sua relação com a escola e a adolescência? Se admitimos essa perspectiva, as estranhezas cinematográficas de Elefante são perfeitamente coerentes com sua proposta estética. Há várias visões, porque todas as visões são importantes quando um fenômeno é coletivo, complexo e de tal intensidade. As sequências intermináveis e entediantes podem traduzir o cotidiano igualmente entediante da vida dos estudantes; a dificuldade de relacionar os diversos fatos correlatos pode traduzir a dificuldade de toda uma sociedade em enquadrar, numa lógica de valores e perspectivas de vida, os complexos fenômenos sociais que nela acontecem; o vazio de sentido que se associa à atitude dos meninos atiradores pode se relacionar à própria desumanização dos indivíduos no universo social em que a tragédia ocorre. Todas essas reflexões são demasiado incômodas para serem apresentadas num filme intelectualmente “mastigado”. Gus Van Sant entendeu que não deveria dar de bandeja ao espectador as reflexões já elaboradas, porque, mesmo já estando elaboradas, carecem de certezas; ao contrário, optou por incomodá-lo a ponto de tornar necessária uma reflexão elaborada por parte do mesmo, para tentar sair do turbilhão de imagens e sequências desconcertantes em que foi arremessado.
Por esse prisma, Elefante pode ser visto um filme feito para incomodar, mais que entreter. E, especialmente para os que trabalham com educação, o incômodo se justifica, porque está relacionado à própria essência do trabalho que realizam, que é, em primeiríssimo lugar, o da humanização.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Releituras

Estive lendo postagens que fiz há tempos. Como saí da Prefeitura e da faculdade em que lecionava, quis verificar se minhas opiniões mantinham-se as mesmas ou se respirar novos ares faria rever certos radicalismos de postura e certas assertivas com teor mais emocional.
Não aconteceu nada disso. Na verdade, fiquei impressionado com a lucidez dos textos que escrevi. Posso remontar toda a tensão emocional que vivi pelas temáticas que neles abordo, mas não sinto que isso macule a essência dos raciocínios. Há muitos erros de digitação e reescrita, o que mostra que, depois do desabafo, não me sentia disposto para fazer revisões. Mas - e isso é o que positivamente impressionou - não creio que discorde de quase nada do que ali está. Eu estou nesses textos, o professor que sou neles se evidencia.
São novos os desafios no IFSP. Parece que preciso apresentar-me de forma mais agressiva, mais enfática; parece que os maiores problemas ali são questões de ego e vaidade, ou seja, de insegurança. Preciso me trabalhar melhor nesses aspectos, e sei que venho evoluindo. Sinto que construirei meu espaço, e que as reações adversas das pessoas são indícios de sucesso nisso, um sucesso que altera configurações de poder e obriga a renegociar as relações.
Não há, por enquanto, elementos suficientes para estabelecer uma compreensão global dessa nova empreitada; assim que houver, o blogue revelará. Até lá, e como forma de restabelecer minha identidade diante do novo, revisitarei as ideias dos anos de Prefeitura e FIP. Tem sido muito gratificante.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Professor de funk

Podem me xingar, podem me ofender, podem ficar decepcionados comigo. O que vou escrever é certamente polêmico, mas está entalado aqui na garganta faz tempo.
Vou começar com um episódio que vivi quando iniciei minha carreira de professor na Prefeitura de São Paulo. Eu trabalhava numa escola periférica, próxima dos limites do município. Vivíamos os preparativos para uma festa dos alunos, e eu estava na sala dos professores conversando com os colegas. De repente, a música parou por uns instantes e comecei a ouvir uma batida um tanto quanto rústica, com uma voz estranha e desafinada a cantar "um tapinha não dói". Juro por Deus que pensei que as crianças tinham desligado o CD e tomado o microfone para fazer provocações umas com as outras. Fiquei espantado quando saí da sala dos professores em direção ao pátio da escola. Não, não era nenhuma brincadeira boba das crianças; era uma faixa de um CD de sucesso, que eu simplesmente desconhecia. Fiquei ainda mais impressionado com o fato de que, durante a execução da canção, havia quase uma unanimidade de corpos dançando uma coreografia com uma sensualidade que eu jamais supus ser possível, dentro ou fora da escola. Praticamente todas as meninas rebolavam ao som daquela batida simples, cantavam a letra e davam palmadas em seus próprios bumbuns quando chegava a parte do refrão. Não conhecia nada daquilo, e fiquei realmente impressionado.
Nem me passou pela cabeça ter algum tipo de chilique moralista, desligar o som, mandar todo mundo parar ou passar um sermão na molecada. Achei engraçado, um tanto quanto de mau gosto, e só. Era claro, naquele momento, que aquela era uma manifestação cultural aceita, referendada e até esperada pelos alunos. Festa, para eles, era isso, tinha essas referências. E a partir do momento em que eles se viram na condição de gerenciadores da própria festa, utilizaram as referências que tinham de diversão. O gosto pessoal não estava em questão, nem a sensualidade exacerbada das danças. Tanto que, quando comentei com um dos colegas meu estranhamento, ele me respondeu: - Você nunca viu um baile funk, Vinicius? A música que toca é essa, eles dançam assim. Diante de minha insistência no pasmo, acrescentou: - Deixa eles, estão se divertindo como fariam em qualquer outro lugar. Não tem nada de mais.
Estávamos em meados de 2002, acredito, e as coisas que ouvi e vi depois, ao longo dos anos, mostraram que a dança de rebolação e tapinha no bumbum chegava a ser realmente inocente. Mas não é essa a questão.
A questão é o moralismo, e como esse moralismo é hipócrita. E até diria, com risco de perder meus leitores mais puritanos: a questão é como esse moralismo hipócrita casa perfeitamente com uma sociedade sexualmente mal resolvida.
Um professor resolveu fazer uma brincadeira com a classe, ao dançar passos de funk-pancadão brasileiro durante uma de suas aulas. Não é caso de demissão; não é uma atitude preocupante; não é notícia para jornal de TV. E é curioso notar que a classe não entendeu a brincadeira como sendo mau gosto, e até se divertiu com a apresentação do professor. Mas, obviamente, uma coisa não justifica a outra; houve uma quebra contratual, um deslocamento brusco de papéis que pode ser considerado indevido (para mim, isso é o máximo que se pode imputar ao professor). Não se pode julgar todo o trabalho de um profissional por um deslize, mas também não se pode mascarar o fato de que esse deslize aconteceu. Isso é um ponto, já devidamente explorado pela mídia sedenta por bodes expiatórios de momento.
Outro ponto, que não vi ninguém trazendo para o debate, é: em que circunstâncias a dança feita pelo professor é de mau gosto e em que circunstâncias ela é aceitável? E aí temos um nó. Porque os professores educam, mas os pais também educam, assim como os grupos sociais e os meios de comunicação. A educação é direito do cidadão e dever de toda a sociedade, não é mesmo? Pois bem, se assumimos que essas crianças passam a maior parte de seu tempo diante do educador-mor de nossa civilização, que é o aparelho de televisão, temos de admitir que boa parte do que elas aprendem sobre o conveniente e o inconveniente, o socialmente aceito e o socialmente não-aceito, o sensual e o não-sensual está associado a padrões mais ou menos definidos que dele recebem, não é mesmo? Se não fosse assim, a dancinha das meninas com o "tapinha não dói" não seria a unanimidade que eu havia presenciado; esses padrões não apenas se impõem, mas funcionam como códigos de aceitação dos grupos sociais, senhas para popularidade.
Ora, se há comportamentos considerados inadequados a ponto de levar à execração pública um professor que os simulou parodicamente em uma sala de aula, por que esses mesmos comportamentos são a base e o principal ponto de apoio da mídia em seus programas "para família"? O que fazem boa parte das dançarinas de palco, desde o Chacrinha até o Pânico, que não seja, em menor ou maior grau, mostrar as curvas de seu corpo em movimentos coreografados? O que era a banheira do Gugu? O que vende o Big Brother não é a possibilidade de ver os participantes fazendo sexo (não é isso que faz com que a Globo crie um canal pago para aquilo que não aparece em cena, ou seja, para o obsceno)? E a sociedade valoriza ou desvaloriza as dançarinas de palco, os participantes de quadros pornoteatrais, os biguibróderes?
Quero deixar claro aqui que não sou contra nada disso. Não é o tipo de coisa que faz minha cabeça, mas creio que essa sexualização explorada pela mídia responde a determinados apelos de consumo, e penso que a sociedade de alguma forma precisa disso tudo, como precisa da novela, do futebol, da violência dramatizada. Ademais, vejo beleza no erótico, e considero plenamente aceitável que as pessoas procurem formas de extravasar essa energia tão primária e fundamental.
Minha questão é mais simples. É assim: não é contraditório que uma emissora de televisão que apresenta um professor dançarino de funk como um monstro possa, algumas horas mais tarde, legitimar como atração para seus telespectadores a apresentação de uma pessoa justamente dançando funk, e não num contexto de paródia, mas de foco na sensualidade? Não é contraditório que os pais condenem e promovam ações contra a educação sexual nas escolas quando, no aconchego sagrado e ilibado de sua sala de estar, assistem com os filhos a encenações como a banheira do Gugu? Não é contraditório que as pessoas condenem qualquer atitude com possível conotação erótica na escola quando sequer conversam com seus filhos sobre a vida íntima deles?
Tudo isso me remete à cena da festa funk em 2002. Os anos se passaram, aquelas crianças cresceram, os tabus permaneceram, a sociedade amadureceu pouco para algumas reflexões, o fundamentalismo ganhou força. E continuamos ancorados na mesma hipocrisia. Antes de escolher um bode expiatório e destruir sua vida em nome da moral e dos bons costumes, as pessoas deveriam fazer um exame de consciência e tentar entender até que ponto elas mesmas vivem dentro desses padrões que impõem aos outros.

sábado, 20 de agosto de 2011

A curta experiência no Olavo Pezzotti

No início deste ano, em decorrência dos resultados do concurso de remoção de 2010, fui ministrar aulas de História na EMEF Olavo Pezzotti, na Vila Madalena. Entre as inúmeras vantagens da mudança poderia incluir a proximidade da escola (quinze minutos de casa, de ônibus), a estrutura privilegiada do bairro do entorno (Vila Madalena tem muitos bancos, restaurantes, bares, tudo o que se procurar lá tem) e a possibilidade de lidar com diversos e diferenciados projetos (a localização da escola, perto da USP e de uma série de sedes de ONGs, propicia constante contato com interessados em desenvolver trabalhos alternativos com os alunos).
Mas eu já sabia que o namoro seria curto. Embora não soubesse exatamente quando, tinha muita esperança de ser nomeado no concurso para a área federal.
Ainda assim, entre fevereiro e abril, procurei dar o melhor de mim. Como estava em módulo, programei um trabalho com canções populares, em que a letra era, a princípio, discutida e cantada por todos em sala, numa mistura de atividade lúdica e interpretação de texto. No início, foram poucas as vezes em que entrei sozinho; fazia mais o trabalho de acompanhar o excelente professor Luiz, de História, uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Com altos e baixos e idas e vindas mais do que esperadas para alguém que é novo de casa, aos poucos criei uma sistemática com as canções e fui sendo aceito pelas turmas.
No início de maio, entretanto, alguns fatores começaram a me tornar um tanto quanto apagado em meu trabalho. É difícil determiná-los com precisão, uma vez que eram formados de percepções ainda confusas e mal constituídas. Limito-me, então, àqueles que pude discernir com um pouco mais de nitidez, a ponto de reconhecer sua face e seu peso.
O fator de maior influência nessa queda de rendimento foi, sem sombra de dúvida, a seleção para o doutorado da USP. Vindo de uma área diferente daquela cuja vaga pleiteava (ou seja, saindo da Literatura Brasileira e tentando a sorte na Linguística), tive de me virar para ser aprovado em duas proficiências (francês e espanhol), uma prova específica de conhecimentos de Linguística (para a qual estudei mais de um mês ininterruptamente), uma avaliação de projeto e uma arguição sobre o mesmo com o orientador pretendido e mais dois experts no assunto. Graças a Deus, deu tudo certo e consegui a vaga.
Essa batalha pela pós teria custado algumas aulas não-dadas, nos dias das provas a realizar, e algumas outras faltas, abonadas ou justificadas, e nada mais. Em nossa carreira, isso não é incomum. Há momentos em que temos problemas pessoais e questões que não são previstas pelas licenças, e muitas vezes acabamos por faltar mais vezes que o normal naquele período, para, posteriormente, recuperar o padrão de assiduidade. Mas, para mim, havia um segundo fator agravante: estar em módulo. Para quem não é da Prefeitura e não conhece esse termo, explico: o professor de módulo é aquele que não tem aulas atribuídas. Cabe a ele fazer substituições nas faltas de outros professores. Em tese, ele usa o diário do professor que substitui, e aplica atividades que são agregadas à nota da disciplina. Apenas em tese, ressalto, porque isso dificilmente acontece. Raramente um professor em módulo substitui aulas apenas na sua área; geralmente, ele entra em aulas de quatro ou cinco disciplinas diferentes na mesma semana, e não é possível estar a par de todos os conteúdos ministrados por outros professores, nem mesmo localizar e utilizar seus diários de registro. Como o professor de módulo nunca sabe quando nem em que classe vai entrar, dificilmente tem atividades devidamente preparadas, e sempre corre o risco de ter de improvisar a aula. Para minimizar esse problema, o Olavo determinou que os professores de módulo não dessem aulas das disciplinas assumidas na substituição, mas de conteúdos transversais. Por isso elaborei o trabalho com canções.
Posso afirmar, entretanto, que o improviso nas aulas não é o maior dos problemas. O grande nó para quem está em módulo é não ser visto da mesma forma que o professor com aulas atribuídas. O professor em módulo está sempre vulnerável. Fica esperando dez a quinze minutos no início do período até que seja solicitado para alguma substituição. Não há um critério claro para definir quem substitui quem, a não ser a necessidade imediata e premente, constatada pelo assistente de período; isso acarreta problemas para dividir as aulas entre os diversos professores, gerando a sensação de injustiça e falta de equidade quando alguns ministram uma quantidade de aulas muito maior que outros. Além disso, há um grande incômodo em relação à permanência do professor de módulo na escola quando não está ministrando aulas; são comuns as caras feias, as broncas desnecessárias, a insinuação de que se "ganha sem fazer nada" e outras do gênero. Para compensar esse mal-estar, muitos dos professores nessa condição empenham-se em realizar tarefas burocráticas das mais variadas, e mesmo serviços como entrega de livros e uniformes e intervenções com alunos e turmas indisciplinadas. Como não bastasse tudo isso, o aluno, que é muito mais esperto do que julga nossa vã pedagogia, percebe claramente o estatuto de segunda classe do professor de módulo: não faz as atividades, porque não serão aproveitadas mesmo, não respeita o professor, porque saca que ele está um degrau abaixo na hierarquia, e não cria grandes vínculos com ele, porque pode vê-lo cinco vezes na semana, ou nenhuma, a depender dos ventos e dos acasos. Exemplificando: o Olavo criou, no decorrer dos anos, o saudável hábito de fazer reuniões com todos os professores que ministram aulas numa determinada turma, a coordenação e todos os alunos dessa mesma turma. Quando isso acontece, evidentemente, algumas salas ficam sem professores, durante o período em que acontece a reunião. Os professores em módulo são chamados a substituí-los e, em razão disso, não aparecem em nenhuma reunião de nenhuma turma. O aluno sabe disso, vê isso, e fica muito claro para ele que o professor de módulo, embora também ministre aulas para ele, não participa dessa instância de debate e decisão; portanto, é alguém com menor poder de fogo.
Resumindo: o professor em módulo, mesmo numa escola como o Olavo Pezzotti, que conta com a melhor direção e a melhor coordenação com que já havia trabalhado em toda minha carreira na Prefeitura, é um vulnerável, um deslocado, um ente sobre o qual recaem desconfianças. Como diz o Mauro, um amigo meu, é preciso ter muita estrutura para isso. Eu não tinha, ainda mais com a cabeça no doutorado. O resultado é que minha disposição e boa vontade caíram muito, e me senti acuado e frequentemente exausto, mesmo dando aula pela manhã. Na época, senti certa culpa, mas logo percebi que não era só comigo: dos oito ou nove professores de módulo de que o Olavo dispunha no início do ano, rapidamente víamo-nos reduzidos a cinco ou seis, entre sumiços, exonerações, licenças e outras situações.
Outro fator que reduziu em muito minha disponibilidade foi a crescente e cada vez mais certeira convicção de que eu não tinha habilidades de magistério condizentes com o ensino de crianças e adolescentes. O que eu conseguia fazer - e olha que até conseguia bastante - era resultado de um esforço muito grande e causador de estafa, sofrimento e ansiedade. Posturas autoritárias não são naturais para mim, o que implica um empenho físico descomunal para sustentar a teatralidade do momento da aula. Sempre observei que outras pessoas lidavam de forma muito mais natural com as crianças, que se impunham sem grandes dificuldades e sem grandes remorsos em agirem com mais energia. Consigo, sim, e meus alunos disso são testemunhas, conduzir com competência uma aula para adolescentes e crianças. Mas poucos sabem o custo disso para minha saúde, para minha cabeça. A verdade é que o corpo estava cobrando de mim o peso das loucuras, dos excessos e do empenho desmedido dos mais de 13 anos de magistério para essa faixa etária.
Por fim, o golpe de misericórdia em tudo o que ainda restava de vontade de excelência profissional em mim: em junho, descobri que seria nomeado e assumiria em breve a área federal, meu sonho profissional desde sempre. Isso quase acontecera um mês e meio antes, quando, aprovado num outro concurso, mas não como efetivo, para o mesmo cargo, tive de declinar da vaga, por incompatibilidade de jornadas. A tristeza que então senti foi sobejamente compensada por essa alegria de junho. Era a pá de cal, em boa hora.
O fim de junho foi uma contagem regressiva, em que procurei não criar expectativas com projetos posteriores ou possíveis ações a longo prazo. Em julho, a curta experiência de Olavo Pezzotti chegou ao fim, e com ela a minha carreira de professor de Ensino Fundamental na Prefeitura de São Paulo.
O saldo? Positivíssimo.
No Olavo, conheci pessoas diferenciadas, brilhantes, com interesses variados e nobres. Tive contato com gente que sabia muito mais que eu, que tinha mais experiência, mais tarimba. Fiz amigos de que não esquecerei, e até deixei - quero crer - uma boa impressão nos alunos, apesar do curto tempo de convivência.
Se considero todos os 11 anos de Prefeitura, o saldo é ainda melhor. Foi na Prefeitura, como professor, que conheci as pessoas mais importantes e apaixonantes com que já tive a oportunidade de dividir meu tempo. Muitos alunos ainda lembram de aulas que ministrei e do convívio que tivemos. Muitos professores ainda são grandes amigos, ainda que já não trabalhem comigo.
Também não tenho do que reclamar em relação a dinheiro. Se creio que deveria ganhar mais pelo que fiz - e creio piamente nisso -, por outro lado foram os anos de Prefeitura que possibilitaram minha independência financeira, meu casamento, minha sobrevivência de descasado e todos os investimentos (cursos, graduações, especializações) que consegui fazer nesse período.
Acima de tudo, posso dizer que foi enfrentando as dificuldades quase insolúveis da relação aluno/professor na Prefeitura que aprendi a dar aulas, a ser realmente professor. A despeito dos meus erros, dos erros dos outros, e da complexidade do trabalho que nunca consegui realizar plenamente, uma parte do ser humano que gosto de ser foi educada por essas carinhas curiosas, espertas, ingênuas, ansiosas, que vi dia após dia, por todos esses anos.
Agora, o caminho é outro. Mas o destino é o mesmo. É continuar aprendendo, melhorando e aprimorando a arte de doar a um imprevisível grupo de pessoas uma parte de si, por algumas horas do dia, com toda a força da alma e toda a fé nas transformações que o saber pode proporcionar.
Obrigado, Olavo. Obrigado, Prefeitura de São Paulo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Reflexões sobre a escola nos dias de hoje

O texto que segue foi redigido por minha amiga e colega de profissão Clarissa Suzuki, a quem já tive o prazer de entrevistar, e é publicado com sua expressa autorização.

QUEM DISSE QUE MEUS ALUNOS NÃO SABEM PENSAR NEM SUBTRAIR? – uma breve reflexão sobre inquietações na escola hoje.

Nas últimas semanas algo me deixou bem preocupada, comentários que se afirmavam na escola que trabalho como professora de arte e se reafirmavam na grande mídia, todos pautados em resultados obtidos por meio das avaliações externas formuladas pela Secretaria Municipal de Educação, a chamada “Prova da Cidade de São Paulo”, onde aferiram-se conhecimentos nas áreas de Língua Portuguesa e Matemática, áreas super-valorizadas por esta gestão-administrativa. Que comentários eram estes? Algo como “estes alunos não sabem pensar”, “não dominam conhecimentos básicos”, “nem conseguem somar ou subtrair”, “eles não sabem o mínimo que a sociedade exige”, “o que eles serão na vida?”.
E pasmem, a maioria destes, vieram de pessoas que são consideradas as responsáveis por garantir que estes conhecimentos cheguem aos estudantes, que acompanham-os diariamente, muitas vezes durante anos. Isto me leva a pensar que ou estes profissionais são muito incompetentes ou estes alunos são indivíduos totalmente isolados socialmente, não estabelecem relações sociais no dia-a-dia, estas que garantem minimamente sua sobrevivência. Pois não se trata nem de uma coisa nem outra!
Estas avaliações que chegam às unidades educacionais fomentadas pelo discurso da necessidade de se diagnosticar e horizontalizar conhecimentos nacionalmente, desconsideram fatores fundamentais sobre os sujeitos envolvidos nesse processo, ignora que os significantes variam de acordo com os repertórios individuais, como os contextos sócio-culturais, a diversidade de práticas, a alteridade de saberes, enfim, não estão realmente preocupados com as condições e necessidades desses professores e alunos que, nesta situação avaliativa, aparecem como modelos homogeneizados e reprodutores, apesar das diversidades cultuais que apresentam.
Existem várias possibilidades avaliativas que valorizam uma ou outra habilidade, que respeitam diferentes formas de pensar e agir, que se aproximam de uma metodologia ou outra. A problemática explicitada em baixos índices de rendimento intelectual, como o desta Prova, deveria, ao menos, ser relativizado de acordo com as diferentes realidades avaliadas na Rede Municipal de Ensino, porém, nada disso é feito.
Esta forma de avaliação e os comentários aferidos a ela, estão ligados a uma concepção tradicional de educação na qual o professor é a única fonte de transmissão de conhecimento e a escola é a redentora de todos os problemas sociais. Já está em tempo da escola, da sociedade e do poder-público começarem a pensar a educação como realmente ela é: intrínseca a todas relações sociais, presente em todos os ambientes e comunidades humanas, como forma de aprendizagem de todos com todos, a partir da vida e das experiências individuais e coletivas. Porque, assim concebida, dificilmente alguém cometerá o erro de dizer que um adolescente não sabe pensar, não tem cultura ou não sabe somar e subtrair, já que todo este conhecimento está tacitamente implícito em sua sobrevivência cotidiana. Será que todo aluno e professor ao adentrarem os muros da escola esvaziam-se de condicionantes objetivos e subjetivos, apagam magicamente toda sua experiência de vida, os significados culturais que os identificam?
Se compreendermos os processos de ensino-aprendizagem na escola como dinâmicos e múltiplos, como uma única “Prova” formulada por educadores que não fazem parte desse processo pode ser tão eficaz no apontamento das dificuldades e avanços vivenciados pelos sujeitos reais desse processo, neste caso, estudantes e educadores da Rede Municipal? Quem estabeleceu estes conteúdos exigidos nesta avaliação como essenciais para a sobrevivência social e desenvolvimento cognitivo dos alunos?
A conclusão que reitero a partir das discussões suscitadas por esta e outras avaliações externas é que elas não dão conta de avaliar a complexa trama de saberes e práticas que a escola abriga, assim, servem só como um instrumento burocrático do poder público e da grande mídia burguesa para culpabilizar os professores como agentes incompetentes da sua função e os alunos como indicadores vazios e incapazes de aprender. Aceitaremos isso passivamente?
Portanto, não podemos deixar de pensar sobre qual o papel da escola nos dias de hoje, já que estes e outros instrumentos de controle são impostos à alunos, educadores e gestores educacionais como a melhor opção para solucionar e fazer avançar a educação escolar. Será que a escola precisa de mais avaliações sem modificar sua estrutura, os métodos de ensino reprodutores e não criadores de conhecimento, sua organização, as teorias e práticas reacionárias, o baixo investimento na formação docente, suas ações que valorizam produtos e não processos?
A escola de hoje, integrante da sociedade pós-moderna, da era digital, da globalização das informações, não pode se resumir a reproduzir conhecimentos de livros, que traduzem o ponto de vista de quem comanda o mercado, diga-se de passagem, a classe que detém os meios de produção privados, que não são os que sentam-se nos bancos das escolas públicas. A escola de hoje, deve ser capaz de promover as experiências sócio-culturais, históricas e lingüísticas diferentes, sem que um conhecimento seja compreendido como superior ao outro; ser um espaço de aprendizagem e troca entre os diferentes pares, onde os aspectos culturais de cada um sejam respeitados e compreendidos em uma lógica dialética de conhecer e respeitar a diversidade de saberes. A escola de hoje deve estar consciente e aberta a riqueza de universos culturais que enriquece o diálogo em uma perspectiva de aprender e ensinar, onde a consciência de si e do outro proporcione condições de fortalecimento na compreensão das formas de controle e opressão que permeiam as relações dentro e fora da escola, contribuindo assim para uma efetiva mudança de pensamento e comportamento que refletirão nas relações estabelecidas na sociedade.


Clarissa Suzuki, pesquisadora na área da educação, professora da rede municipal e militante sindical.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Ator, cantor, escritor, professor

Estava fazendo uma pesquisa ontem com os alunos. Consistia em perguntas sobre seus hábitos culturais. Como era basicamente o preenchimento de um questionário, preocupei-me em fazer algumas brincadeiras, para tornar a aula mais animada. Cantei um pouco de rap, fiz quatro ou cinco perguntas embaraçosas, conversei sobre coisas da televisão. De repente, um garoto pergunta para mim:
- Você podia ser ator, cantor ou escritor. Por que você se tornou professor?
Tomei um susto nesse momento, e, como de costume, não respondi nada (em situações surpreendentes, sempre caio do cavalo). Dei risada, fiz mais uma brincadeira e continuei a monitoria da atividade que havia aplicado.
Nos minutos posteriores o cérebro deixou de ser cérebro e passou a ser estômago: houve problemas para digerir o que fora dito pelo menino. A digestão se deu em partes, desmembrando a afirmação em intenções múltiplas e, consequentemente, em múltiplas percepções de mundo, que remetem ao universo social daquela criança.

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Havia, evidentemente, um elogio, um tanto quanto imerecido, mas generoso. Creio que a postura que assumo em sala de aula não seja padrão, e que alguns alunos gostem disso. E, por gostarem, expressam sua avaliação positiva da forma como sabem expressar na idade que têm.
De fato, eu canto nas aulas, canto raps que improviso na hora, músicas do projeto que estou encaminhando, músicas de que gosto e eles gostam. Tenho até um violão que resolvi deixar dentro da sala de aula, guardado num armário, para ficar acessível quando me dá na telha fazer algum número. Mas isso é uma coisa. Ser cantor é outra. Envolve trabalho, estudo, dedicação, insistência, uso de técnicas, exploração do potencial de voz. Eu sei disso, o garoto não sabia.
De fato, eu atuo. Finjo estar nervoso, finjo estar surpreso, finjo não entender alguma coisa. Essas dramatizações, imitações e hipérboles gestuais que faço servem para desarmar certos ares de seriedade que determinadas situações criam. Por exemplo, dois alunos começam a discutir. Se são menino e menina, viro-me para um deles e pergunto: é seu/sua namorado/a? Imediatamente, eles param de discutir entre eles e passam a discutir comigo, e quando assumo o foco da discussão, faço algumas piadas e conduzo a coisa para outro caminho. Evidentemente, sei que não são namorados, mas fingir surpresa é parte da estratégia. Agora, ser ator é outra coisa. Envolve muuuuuuuuuuito estudo, dedicação, vontade de palco, treino constante e quase exaustivo.
De fato, eu também escrevo. Diria até que estou muito mais próximo de ser um escritor que um ator ou cantor. Mas ainda estou longe disso. A facilidade com que formulo frases, imagino histórias ou desenvolvo rimas é um atributo relativo. O que, para mim, é consequência natural de um convívio constante, desde tenra idade, com livros, letras e cultura escrita em geral, para meu aluno é um dom, uma capacidade acima da média. Os alunos creem que tenho facilidade com a palavra porque comparam o que faço ao que veem no cotidiano, que se associa (sem exageros) à desvalorização da leitura e dos livros, do trabalho artístico com a língua até mesmo do cultivo zeloso das possibilidades que esta oferece. Para o universo desses meninos, leio bem, tenho excelente memória, uso as palavras com desenvoltura. Para as expectativas intelectuais de minha formação, sou mediano em tudo isso, até fraco em alguns aspectos. E não tenho livros publicados ainda, nem reconhecimento de uma comunidade de leitores de livros.
Em síntese, compreendo que o garoto tenha se admirado de me ver utilizando esses recursos intelectuais no dia-a-dia de sala de aula, e que, visto que talvez ainda desconheça as especificidades de cada uma dessas ocupações, tenha fantasiado que seu professor pudesse desenvolver-se em cada uma delas. Ingênuo, doce e generoso.

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Por trás do elogio, havia, evidentemente, um valor. Considero positivo que atores, cantores e escritores estejam associados, na fala que analiso, a características positivas. Creio que boa parte das pessoas que conheço, até as mais ranzinzas, gostam de música, gostam de ouvir alguém cantar, gostam quiçá de cantar também. A música é um dos encantos da vida, e talvez seja o mais tocante. Sou absolutamente suspeito para dizer. Mas o que importa aqui é perceber que quando alguém diz "Você poderia ter sido um cantor", isso deve ser interpretado como "você poderia ter se tornado algo de muito bom, que é um cantor". É claro que pesam, nessa valoração, as imagens dos muitos cantores e cantoras que aparecem na mídia televisiva e digital, insistentemente associadas a um estilo de vida de poder sobre os outros (particularmente sobre os fãs) e uso e abuso de fontes de prazer e contentamento. Entretanto, subsiste uma atenção especial ao dom artístico, à capacidade de comoção tão peculiar que a arte pode oferecer. De qualquer forma, seja por admiração pelo sucesso ou pelo talento, o cantor era uma figura positiva na percepção de meu aluno.
Creio não forçar a barra se afirmar que essa mesma positividade recaiu sobre as outras duas figuras, a do ator e a do escritor. A primeira, mais obviamente: atores são, hoje em dia, apresentados como criaturas do mundo do espetáculo, em primeiro lugar, e artistas da interpretação, em segundo. Há um forte apelo associativo da imagem dos atores-celebridades a tudo que diga respeito a uma, digamos, superioridade em relação aos mortais comuns. Mas, tal como em relação ao cantor, entendo que o elemento do desempenho artístico está pressuposto. Senão, o menino não diria "cantor, ator, escritor", mas talvez "cantor, ator, empresário" ou "cantor, ator, modelo", ou "cantor, ator, algo que tivesse status". A questão para ele não se apresentou simplesmente como "por que não ser celebridade", mas sim "por que não aproveitar determinado talento que se possui".
Reforço esse último comentário com a figura do escritor. Queiramos ou não, no Brasil, escritores não são exatamente celebridades, a não ser nos meios literários. Livros não dão tanto dinheiro assim, nem são objetos de tão grande desejo e admiração da sociedade atual, cada vez mais adolescente e imediatista. Fiquei contente com a percepção positiva em relação a cantores e atores, mas mais contente ainda com o empareamento do escritor nessa avaliação. Aqui, há menor influência da glamourização midiática, com certeza, e maior presença do trabalho escolar, o grande responsável, nos dias de hoje, pela inserção do brasileiro na cultura escrita literária.

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Se por trás do elogio, havia um valor, havia também um desvalor (porque todo valor implica em um desvalor na narrativa da vida). Se posso escolher, posso descartar, e há algo de bom no que escolho, e evidentemente algo de não tão bom no que descarto. Retomemos o comentário: "Você podia ser ator, cantor ou escritor. Por que você se tornou professor?". Ele é dividido em duas partes. A primeira, como vimos, valoriza três ocupações do mundo do trabalho, três condições de trabalho associadas a talentos e/ou esforços artísticos. A segunda é uma manifestação de surpresa, baseada na comparação. Pode ser reformulada da seguinte forma: se um indivíduo tem a possibilidade e/ou o talento de inserir-se no mundo por meio de uma dessas três ocupações valorizadas (tanto pelo que produzem quanto pelo que podem trazer em termos de prestígio ou sucesso), por que diabos esse indivíduo opta por uma quarta ocupação? Pressupõe-se aí: essa quarta ocupação ou não produz nada tão admirável quanto as outras três ou não recebe/merece a mesma recompensa em termos de prestígio e sucesso.
Triste ouvir isso? Não. Como sabemos, crianças têm aquilo que costumamos chamar de espontaneidade. Elas comparam e constatam, a partir dos valores que ainda estão recebendo e com os quais ainda estão aprendendo a lidar. Não estão paranoicamente preocupadas em agradar ou desagradar nessa fase da vida, até porque ainda não possuem todas as armas dessa guerra e todas as manhas do polimento e da desfaçatez. Então, elas falam e pronto. Então, nós ouvimos e pronto. E temos de avaliar quais são as vozes que estamos ouvindo. Quando um aluno diz (e eles dizem mesmo!) "viado tem que apanhar" ou "político é tudo ladrão" ou "o negócio é ser bandido", nós estamos ouvindo, junto com essas falas reprodutivas, vozes sociais das mais variadas. Não podemos aceitar o desvario de que aos oito, nove ou dez anos nossos alunos já emitem essas pérolas como juízos de valor estabelecidos, após longa reflexão, debate e confrontação com a experiência. Isso é perigoso, sim, mas deve ser compreendido como um reflexo de algo muito mais perigoso, que é a presença desses valores e desvalores no mundo adulto.
Assim sendo, quando o menino reportou-se aos professores de forma a diminuí-los em relação a atores, cantores e escritores, eu estava ouvindo uma voz social. Talvez por isso tenha ficado surpreso e sem reação: porque o diálogo deveria se travar em outro nível, e eu estava desamparado de recursos dialógicos para empreendê-lo naquele momento.

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Ofendeu-me esse desvalor? Sim. Não pelo menino. Ele quis ser, na verdade, gentil. Isso fica muito claro na valorização do meu trabalho, comparando-o a trabalhos nos quais ele via valor. A ofensa que senti, para ser justo, não foi a do momento da fala, mas a do momento histórico, que se materializou no momento da fala. Sejamos francos: vivemos numa sociedade que não valoriza a educação formal, e, por consequência, não valoriza o professor. Quando aparecemos nos noticiários? Quando há tragédias nas escolas, quando fazemos alguma besteira ligada à violência ou a atitudes exageradas, quando somos vítimas de agressões. E só. E ponto final. Nunca vi um professor na revista Caras, a não ser que se relacionasse a alguma celebridade. Professor não é celebridade. E olha só: nem no mundo dos professores ele é celebridade. Professor não quer escutar palestra de professor. Nada disso: ele paga caro para ouvir gente que nunca pisou em sala de aula explicar o que a educação tem de ser ou não ser. Escritor gosta, admira, valoriza escritor. Atores têm um mundo quase paralelo, até em função do ritmo de trabalho, e defendem-se, e admiram-se, e respeitam-se, e ouvem-se. Cantores vivem constantemente sob holofotes, dentro ou fora do palco, e fazem constantes referências uns aos outros, até como forma de competição por visibilidade. Professores, não. Eles não são as celebridades nem dentro do mundo da educação. Quanto mais no mundo da mídia! Quanto mais nas discussões dos bares, dos salões de cabeleireiros, das bancas de revista!
Por outro lado, é preciso deixar claro que valorizar simplesmente porque "soa bem" valorizar é uma armadilha. Para atribuir valor a algo, é necessário que o sujeito julgue conhecer seu objeto de avaliação a ponto de poder inseri-lo numa determinada escala. Isso é fácil de fazer com caras e bundas, com celebridades fabricadas, com cidadãos cujas profissões conhecemos mais pelos efeitos que pelos processos. É preciso entender que o aluno está DENTRO do processo da educação. Quando estamos de saco cheio ou cansados, o aluno percebe. Pode ser solidário, pode ser indiferente, pode ser cruel, mas não deixa de perceber. Existe um conjunto de procedimentos pelos quais somos reconhecidos, sejam eles falar, dar bronca, passar matéria na lousa, ou outros. Os alunos provavelmente não sabem o quanto atores brigam fora do palco, o quanto cantores ensaiam antes de apresentar, o quanto escritores contorcem-se para encontrar as palavras corretas, mas eles sabem o que nós fazemos, e nós sabemos também. A sociedade, entretanto, não sabe, e nem parece querer saber.
E aí vem uma questão que me incomoda muito: se nós conhecemos nosso processo de trabalho, e os alunos conhecem também, por que nós, professores, e nossos alunos, nunca somos a primeira voz a ser ouvida quando o assunto é educação? Lembrando sempre: ouvir pessoas falando implica ouvir vozes sociais que elas trazem. Quando o aluno diz que seu professor é um cantor, há uma dupla valoração: a figura do professor que atua com ele no cotidiano é valorizada, mas o status é reprovado. Não seria interessante aprofundar essa contradição, pensar a respeito dela, partir dela e de outras equivalentes para reconstruir nossas concepções? Ou será sempre mais importante assistir ao PowerPoint resumido da última moda educacional nos Estados Unidos, na Europa ou no país das maravilhas das pessoas que falam da escola sem conhecê-la?
Insisto: por que professor não ouve professor? Por que batemos palma para os lugares comuns dos discursos dos caras que não querem tematizar a realidade da sala de aula? Por que aceitamos com tanta facilidade esse desvio ideológico e nos colocamos numa posição tão defensiva e diminuída?
Ouso responder: pelos mesmos motivos que levaram meu aluninho a reproduzir a voz social na comparação que fez. Porque pertencemos a uma sociedade que, por uma série de razões históricas a avaliar, não tem a educação formal como valor, e, inescapavelmente, reproduzimos o discurso dominante dessa sociedade, que ainda prefere fingir que acredita que a escola é uma ilha de saber no mundo cão.

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(Digressão: contei essa história que escrevo na sala dos professores. Uma de minhas colegas cobrou que eu tivesse respondido à pergunta do aluno: "Porque eu amo meu trabalho. Por isso eu não quis ser ator, nem cantor, nem escritor". E eu disse à minha colega que não amo meu trabalho. E repito aqui, porque acho isso uma coisa séria: eu não amo meu trabalho. Eu amo minha família, minha mulher, amarei meus filhos, amo pessoas maravilhosas. Amo a música, amo a arte, amo a beleza do ser humano. Mas não meu trabalho. Meu trabalho eu exerço, com competência, dignidade, decência, e posso vir a sentir enorme prazer exercendo-o. Mas ainda é só um trabalho, como há outros, nos quais eu poderia expressar meu carinho e respeito com o mundo que me cerca dentro do mesmo contexto de competência, dignidade e decência. Como, por exemplo, sendo bombeiro, gari ou entregador de pizza; ou ator, cantor e escritor. Amar é um verbo forte demais para associar a um cargo, uma condição profissional específica. Posso sentir enorme prazer dando aulas, entender com muita lucidez minha importância na estrutura educacional do país, mas isso não é amar. Em síntese: eu trocaria de trabalho por minha mulher, mas jamais trocaria de mulher por causa do trabalho. São patamares bem diferentes.
Retornando ao tema da digressão (rsrs): a colega não gostou nada da minha colocação. Porque parece realmente uma coisa feia de se dizer. Mas a verdade é que não acredito nesse amor abstrato que enfeita os discursos das pessoas. Eu amo a música porque o que chamo de música tem cor, nome, textura: Beethoven, Pink Floyd, Milton Nascimento. Mas as pessoas dizem que amam seu trabalho, e ao mesmo tempo vivem falando mal da cor, do nome, da textura desse trabalho, que são os alunos. Por outro lado, mesmo em relação a quem gosta dos alunos, duvido que goste de reuniões pedagógicas improdutivas, ordens desencontradas, recursos escassos, assédios psicológicos, diários estúpidos para preencher. E isso tudo é parte do meu trabalho! Essa coisa da "beleza do educar" é fácil de amar, porque é uma abstração, uma idealização de produto final que nem existe, nem tem nada a ver com o processo real da coisa. Difícil é amar o processo como ele é, nas suas especificidades, nas suas concretudes. Ninguém é santo, e é mais sadio soltar os cachorros e revelar insatisfações do que querer dar uma de mártir superior, porque essa imagem não se sustenta, e pior, nos transforma em vítimas indefesas carentes de proteção, posição que não tem mesmo como ser respeitada por criaturas cheias de energia como as crianças, e indivíduos tão adolescentes quanto aqueles com os quais lidamos na sociedade. Fim da digressão.)

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Mas dentro do desvalor há um valor, e uma perspectiva. Se um aluno, dentro do contexto complicado e delicado da aula, preocupa-se em falar das semelhanças da atuação do professor com a de outros trabalhadores, notadamente da área artística, é porque reconhece algo que precisa ser assinalado nessa semelhança. E entendi, no contexto da intervenção, que é algo positivo. De certa forma, o aluno me oferece um caminho: ele consegue lidar melhor, talvez, com meu lado artístico que com meu lado professoral, e é isso que ele diz, sem explicitar. Talvez porque a aula, em seu aspecto não-professoral, possa paradoxalmente se tornar mais aula. Talvez porque a aula tradicional, cem por cento frontal e monologada, esteja com os dias contados em nossa sociedade. Talvez porque classes quietas não sejam necessariamente mais agradáveis, para nossos alunos, que classes cantantes, brincantes, escritoras, alegres. E talvez porque a formação dos alunos precise desse aspecto criativo tanto quanto precisa do aspecto reprodutivo. Quem sabe as colocações dos alunos não tenham menos relação com os pequenos poderes da sala de aula e mais relação com a necessidade de extravasar sentimentos e pensamentos podados pelo silêncio de uma sociedade de respostas prontas e papéis definidos? Quem sabe a diminuição da figura do professor não indique certa expectativa generalizadora em relação ao mesmo, que poderia ser surpreendida e desarmada por uma atuação mais livre, mais negociada, mais autêntica, mais prazerosa? Quem sabe não seja isso mesmo: alguém está me dizendo que precisa gostar da escola, e que conhece coisas de que sabe que gosta? Eu teria obrigação ética de responder: vamos juntar as duas ideias?

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E teria de admitir que, enquanto o valor e o desvalor estiverem isolados, de bico um com o outro, cada um com sua turminha bolando planos de sacanear o adversário, não conseguiremos muita coisa. O professor é o profissional mais importante da sociedade. Eu não tenho nenhuma dúvida disso. Vai, se você não achar que seja O mais, provavelmente o colocará entre os dez mais. Mas a importância é inegável.
Atores, cantores e escritores sabem disso. Vamos juntar? Em vez de fazer festas em que se isolam da sociedade, esses caras, que têm prestígio com as crianças, não poderiam ser fotografados e filmados com professores? Esses caras não poderiam emprestar sua visibilidade para causas como a defesa do magistério, a valorização do professor, a participação da comunidade na escola? Essas caras não poderiam falar de responsabilidades na educação, de organização de estudos, de importância do aprendizado na nossa vida? Não poderiam falar de suas experiências educacionais? Não poderiam emprestar algo de suas autoridades estabelecidas de indivíduos admirados à autoridade necessária e tão debilitada de indivíduos menos admirados? Que nó não seria na cabecinha dos alunos: eles nos querendo enquanto artistas, e os artistas nos querendo enquanto professores!
Sinceramente, não acredito em nenhuma melhora no quadro da educação nacional enquanto não houver uma movimentação real, efetiva e massiva da sociedade nesse sentido. Acho que as feridas já estão sendo sentidas, mas a mídia e os discursos oficiais têm funcionado como amortizantes e desviantes. Eu preciso do Luan Santana e do Restart, da Xuxa e da Ivete Sangalo, do William Bonner e do Alckmin, do Neymar e da Juliana Paes dizendo o quanto é legal ter uma boa relação com os professores. E eu precisaria que isso fosse verdadeiro, sincero, espontâneo... será que é possível?
Será que o leitor deste texto não chegou até este espaço justamente por causa do título da postagem, que faz referência a possíveis celebridades? Será que não podemos usar o valor para questionar o desvalor, resultando num novo equilíbrio de forças mais produtivo para todos?
Enquanto essa mobilização gigantesca não for factível, continuarei produzindo conhecimento, bufonaria e arte na minha atuação profissional. O carinho dos alunos ainda é a melhor medida da minha eficiência.

sábado, 12 de março de 2011

Sobre a suspensão das férias coletivas em CEIs e EMEIs

Acabo de ler em e-mail enviado pelo SINPEEM que uma ação judicial determinou suspensão do direito de férias coletivas em CEIs e EMEIs. Como diz o ditado... barbas de molho.
Profissionais de educação têm férias coletivas por vários motivos. Em primeiro lugar, porque compreende-se, em vários lugares diferentes do mundo, com diversas concepções de educação, que as crianças precisam de férias. Em segundo lugar, porque compreende-se, em vários lugares diferentes do mundo, com diversas concepções de educação, que o trabalho escolar precisa ser planejado. Em terceiro lugar, porque compreende-se (etc e tal) que a escola precisa parar, em algum momento, para se organizar. E poderíamos arrolar aqui dezenas de argumentos que apontam para a arbitrariedade e o teor contrassensual dessa decisão da justiça.
Mas uma coisa me incomoda, e muito. As organizações que moveram essa ação argumentaram que defendem o direito das famílias e das crianças de terem uma escola funcionando com professores trabalhando no período das férias. Pode-se igualmente pensar num argumento contrário: e o direito das crianças de permanecer com suas famílias? E o dever das famílias de se organizarem para as férias escolares? Mas não é esse o ponto que eu queria destacar.
O problema, na minha visão é que, quando se levanta esse tipo de argumento, fica a impressão de que o trabalho do professor é o de tomar conta da criança. A especificidade educacional do magistério desaparece; o trabalho educacional, que precisa ser discutido, planejado, organizado, articulado, previsto, revisto, sofre um golpe duríssimo em sua credibilidade. Se sou um profissional de educação, e não um cuidador de crianças, faço parte de um coletivo educacional, que precisa funcionar de forma articulada, coesa, e precisa de tempo inclusive para não funcionar, para rever prioridades, para reorganizar-se. Por outro lado, se sou mero cuidador de crianças, tanto faz se cuido delas em julho, abril ou dezembro, desde que cumpra essa função de mantê-las em segurança e sadias. O problema é que isso não precisa ser feito necessariamente por um educador.
O pressuposto de que é preciso deslocar profissionais para cuidar de crianças nas férias não precisaria, de forma alguma, intervir na especificidade do trabalho educacional escolar. As organizações poderiam brigar na justiça, por exemplo, para que fossem contratados temporários para trabalhar durante o recesso, e uma decisão judicial nesse sentido manteria a estrutura de organização de CEIs e EMEIs, poupando as férias coletivas dos profissionais desses aparelhos (quero deixar claro que não concordo nem com isso, mas citei a possibilidade como exemplo de soluções alternativas). Quando organizações da sociedade civil colocam-se em posição de solucionar um problema por meio do ataque a direitos adquiridos por categorias profissionais, é sinal de que a discussão deslocou-se perigosamente da responsabilidade social do Estado para uma percepção ideológica extremamente daninha de que o trabalho educacional consiste na ação institucional destinada a preencher o tempo da criança quando ela não pode, ou não precisa, ficar em casa. Também me parece que ações como essa indicam certo descrédito dos educadores em relação à sociedade civil; fica a impressão de que o discurso que coloca o funcionário público em geral como um "privilegiado", beneficiado com "mordomias" que não existem no mundo empresarial ainda está em voga, em que pese a percepção crescente de que professores, policiais e profissionais da saúde vivem relações complicadíssimas com as condições de trabalho oferecidas.
Quando uma decisão judicial respondendo a ação movida por organizações civis interfere na autonomia gestionária e administrativa da escola (e não de UMA escola em específico, mas da escola enquanto instituição social), temos um claro sinal de que a sociedade não está entendendo o que as crianças fazem ou deveriam fazer dentro de um ambiente educacional. Parece claro, nesse caso, que essa incompreensão afeta a própria concepção de educador, de professor, de profissional de educação, não sendo, portanto, apenas um problemas dos que trabalham em EMEI e CEI, mas de todos nós que fizemos do magistério nossa forma de oferecer algo a essa sociedade. Para mim, temos claramente uma questão que envolve a valorização do professor. E - ampliando - diria que a grande dúvida que fica é: o que o senso comum, as organizações civis, o judiciário e o Estado sabem - ou pensam que sabem - de nosso trabalho? Para que serve uma escola, para que fim trabalha o professor? Como essa questão é perigosa e demanda uma coragem infrequente nas lideranças políticas, que é a de assumir causas não demagógicas e de sucesso eleitoral não evidente, creio que teremos essa contenda insana de trabalhador contra trabalhador ainda por um longo período no debate sobre nossa carreira.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Por uma história do professor enquanto profissional

Palestra ministrada pelo professor Miguel Arroyo, que vi numa aula de meu curso de pós-graduação, levantou questão que estava engasgada comigo já há muito, e que tem a ver inclusive com a proposta deste blogue.
Falando sobre o projeto governamental da Educação de Jovens e Adultos, Arroyo lembrou da necessidade de se pensar a educação como um processo de trabalho, em que as pessoas exercem seu direito de produzir e inserem-se, pela via da educação, na lógica do capitalismo contemporâneo. Ele procura desvincular a educação do aspecto vocacional, e afirma que o professor é, antes de tudo, um trabalhador.
Em determinado momento da fala, ele questiona correntes da Pedagogia atual por dissociarem o magistério da lógica contemporânea do trabalho, e critica os cursos e faculdades por não colocarem em seus currículos a história da profissão ao longo dos anos.
Arroyo está coberto de razão.
Se alguém for escrever uma "História da Educação na Rede Municipal entre 2000 e 2010", por exemplo, que materiais teria mais facilmente em mãos para a pesquisa? Com toda a certeza, materiais oficiais, registros de reuniões, pareceres, editais, portarias, orientações curriculares etc. Além desses, teria livros de pedagogia, teses, dissertações, biografias, artigos e outros, geralmente abordando assuntos específicos ou reelaborando aspectos teóricos das ciências da educação. E que materiais provavelmente seriam mais difíceis de encontrar? Não tenho dúvidas de que aqueles que se referem ao cotidiano de sala de aula: registros de problemas ocorridos, embasamentos de decisões no âmbito das escolas, entrevistas com professores a respeito daquilo que os motiva e desmotiva, atas de conselho redigidas de forma relevante, queixas dos profissionais da educação, imagens e textos que mostrassem o que efetivamente acontece dentro dos prédios escolares, para além do que sabemos "oficialmente". Ao redigir o livro hipotético que citamos, o pesquisador poderia, facilmente, convencer-se de que as mudanças de orientação curricular da Prefeitura na última gestão seriam centrais para a compreensão do período. Encontraria esse pesquisador elementos suficientes para compreender que o adoecimento físico e mental da classe do magistério é um fenômeno histórico mais importante que o anterior?
Quando lemos ou ouvimos sínteses retrospectivas sobre a educação paulistana, paulista, ou brasileira, será que reconhecemos nessas sínteses as mudanças tão nitidamente percebidas na relação com os alunos, a família e a sociedade? Sinceramente, penso que não. As pesquisas de história da educação que conheço não dão espaço às condições efetivas de trabalho.
A carreira do magistério sofreu enormes e inquestionáveis transformações, década após década, desde os anos 50. Onde isso aparece nos livros de História da Educação Brasileira? Para além das constatações óbvias, como a de que o perfil dos alunos mudou, o ensino se universalizou e outros lugares-comuns inúteis, onde está a efetiva análise de fenômenos como o aumento descomunal do número de professores em licença médica, ou a movimentação de sindicatos em defesa da integridade física do professor (como aconteceu recentemente em Belo Horizonte), ou a batalha em vários cantos do país pela aprovação de legislações que possam coibir o assédio moral dentro das instituições escolares? Esses são temas da ordem do dia há anos, e não têm aparecido nas pautas oficiais sobre educação, nem na maior parte da produção intelectual acadêmica dos especialistas.
Para mim, concordando com Arroyo, faltam pesquisas que se debrucem seriamente sobre o que é ser professor hoje, e o que era ser professor há 5, 10, 15, 50, 100 anos. Falta uma história do professor, da profissão de professor, que não seja mero apêndice final de qualquer História da Educação ou das Ideias Pedagogicas, mas que procure entender como as necessidades, condições de trabalho, expectativas, relações administrativo-hierárquicas e relações pedagógico-didáticas desse profissional em sala de aula mudaram no decorrer dos anos, como se quiséssemos ou pudéssemos colocar câmeras nas classes do passado e procurar por um dado mais bruto e essencial que o discurso que justifica/justificou/justificará os fracassos e sucessos do ensino-aprendizagem.
É incrível que a sala de aula, sendo o espaço por excelência da construção pedagógica, continue aparecendo como mero detalhe nos livros e manuais de educação. É incrível como uma canetada de gabinete ainda tem mais valor histórico que anos e anos de labuta, grito, giz e lousa de trabalhadores tão fundamentais para qualquer política pública de qualquer orientação ideológica.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Para que a aula renda

Escrevi um texto para a volta às aulas na Faculdade, e compartilho aqui.

Considerações acerca do bom aproveitamento das aulas pelos alunos
Professor Carlos Vinicius

Este texto tem por objetivo estimular algumas reflexões sobre a relação que os alunos estabelecem com as aulas enquanto eventos didático-pedagógicos, e explicitar alguns limites importantes para o sucesso dessa relação.

Considera-se que o ensino de 3º grau seja caracterizado pela maior especificidade e profundidade de seus conteúdos, associados a uma área definida do conhecimento científico humano. Assim sendo, espera-se do aluno e do professor posturas compatíveis com o maior nível de dificuldade que essa modalidade de ensino apresenta.

As estratégias de aprendizagem que serviram bem ao aluno no 1º e no 2º graus já não são eficientes quando se trata do ensino universitário. A simples presença à aula e anotação dos conteúdos já não bastarão para um aproveitamento mínimo das questões trabalhadas pelos professores. É preciso aprender/desaprender/reaprender uma série de mecanismos que já se desenvolvem ou que passarão a ser desenvolvidos:

1) É preciso reaprender a pesquisar, a ler, a estudar de fato. Desenvolver hábitos de estudo. Desenvolver curiosidade intelectual. Ler de verdade os textos que serão trabalhados em aula. Ler a bibliografia de apoio. Ler e reler, com tranquilidade, silêncio, interesse, calma. Pesquisar: no dicionário, na enciclopédia, nos manuais, na internet. Mas pesquisar direito: comparar fontes, comparar informações, comparar análises.

2) É preciso reaprender a anotar. Desaprender a anotar tudo o que se ouve. Aprender a escrever resumos, sínteses, indicações importantes sobre o que se ouviu e viu. Desaprender a só anotar o que está na lousa. Aprender a rabiscar os cantos de páginas, grifar, escrever no verso, fazer setas, círculos, comentários.

3) É preciso reaprender a prestar atenção. Combater o cansaço, se vier. Combater a vontade de sair para paquerar ou papear, se vier. Aprender que a aula chata continua sendo aula, o professor chato continua sendo seu, o assunto chato continua sendo importante para sua formação. Aprender que o relevante às vezes é chato mesmo, mas quando compreendido, pode se tornar muito mais interessante que aquilo que é irrelevante e "legal". É preciso aprender a passar um pouco de fome, para sair só na hora do intervalo e aproveitar toda a fala do professor. É preciso aprender a aguentar um pouco mais de sono, quando a aula ainda vai prosseguir e seu cansaço parece grande. Desaprender a fazer tudo o que sua vontade imediata manda. Aprender a sacrificar um pouco os interesses mais espontâneos, para prestigiar interesses maiores.

4) É preciso reaprender a respeitar. Aprender que o professor não é máquina de ensinar, é um ser humano com altos e baixos, acertos e erros, e que sempre pode trazer algo de novo para você. Aprender que o professor também quer ser ouvido, tanto quanto o colega que senta ao seu lado. Aprender que o professor precisa completar raciocínios, e sua fala tem uma exigência de desenvolvimento e uma dificuldade de recuperação muito maiores que as falas banais cotidianas. Desaprender a perguntar o óbvio, e aprender recuperá-lo de outra forma. Aprender a melhorar as perguntas. Aprender a ouvir de fato, ouvir pensando no que está sendo dito. Aprender a ver de fato, olhar o professor para ver como o conteúdo se transforma por meio dele. Desaprender a tomar atitudes que não magoam nas relações cotidianas, mas que podem magoar o professor: demonstrações de desinteresse, agressões e ironias gratuitas, atitudes que tiram a própria atenção e a do colega.

5) É preciso reaprender a participar. Aprender a esperar a fala do outro. Aprender a esperar a resposta antes de fazer uma nova pergunta. Aprender a fazer a atividade solicitada do modo solicitado. Aprender a não discriminar quem não sabe. Desaprender o cada-um-por-si, aprender a dividir, aprender a apoiar, aprender a estudar junto.

6) Acima de tudo, é preciso reaprender a ser aluno. Reaprender com cada aula, pois cada aula é uma. Reaprender com cada professor, pois cada um tem uma proposta. Reaprender com cada disciplina, pois tudo pode valer a pena, se a alma não é pequena.

Renovando sua postura e dispondo-se a colaborar com o professor, o aluno conseguirá que relação em sala de aula traga benefícios muito maiores, e que sua formação seja muito mais eficiente e produtiva.
Estudar e prestar atenção na aula são investimentos a longo prazo. Confie no seu professor, e os resultados com certeza virão.

domingo, 9 de janeiro de 2011

A busca da leveza na profissão

Estava lendo um material, muito bacana por sinal, sobre coordenação pedagógica. São livros que comprei recentemente, para embasar o TCC que estou fazendo.
Embora esteja de férias, ainda reverberam na minha mente cenas e fatos do ano anterior, e ainda sinto-me um pouco fatigado do clima que vivenciei em 2010. Muita coisa aconteceu, e em relação àquilo que vivi, já deixei bem clara minha insatisfação e minha vontade de mudar, contemplada pela sorte e pelo que chamam de destino.
Nos encontros que tive com professores da rede, em maior ou menor grau, percebi que uma sensação era comum: a de peso. O fardo de ensinar realmente não é tranquilo de carregar, a profissão realmente exige muito, mas, nos últimos anos - e acredito que não só na escola em que trabalhei, mas em muitos outros lugares - parece que os estilos de gestão tornaram-se menos humanos, mais fiscalizadores, mais intolerantes.
E foi então que me deparei com este belo texto, que transcrevo abaixo, e que creio sintetizar uma reivindicação minha e de muitos nesse período de acertos e desacertos da educação. Segue, com negritos meus para trechos fundamentais:

Cultivar a leveza

"É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma."
Ítalo Calvino, citando Paul Valéry


Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino enuncia os valores literários que merecem ser preservados para o novo século: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência.
Fala da leveza como o esforço para retirar o peso das pessoas, das coisas, das cidades. Embora estivesse focalizando a literatura e, nela, a busca da leveza como reação ao peso de viver,
entendemos que a leveza, assim apresentada, é muito mais que um valor literário - é um valor de vida e, como tal, importante nos processos de formação.
Calvino (1990, p.19)* afirma:

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...


Essa é uma atitude muito importante no processo de formação - o formador precisa perceber que o outro está com o peso da responsabilidade de seu trabalho, de suas turmas, de seus deveres, de uma estrutura nem sempre adequada, sem parceiros para discutir. Pode-se até dizer que o magistério hoje, por razões que não nos propomos a discutir aqui, é um corpo cansado. Quando o formador consegue levar o formando a ver as coisas que o incomodam de um novo ângulo, de outro ponto de observação e a ver, portanto, a figura em todos os seus lados, está cuidando da leveza. E quando nesse processo consegue comunicar ao outro que ele é um parceiro, que tem alguém que o ajuda a carregar o peso, está cuidando não só da leveza como também despertando a esperança. E é preciso tentar algo mais: fazê-lo enxergar todos os ângulos com senso de humor, sem amarguras.
Calvino (1990, p. 28)* afirma, ainda, que "leveza está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago e aleatório"; e aí cita Paul Valéry: "é preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma". Esse é um dado muito importante: cuidar da leveza não é se deixar levar pelo aleatório, pelos casuísmos. É ser capaz de, tendo a visão do todo, como o pássaro quando sobrevoa vales, rios e florestas, definir uma meta e chegar lá. E há outro ponto a refletir nesse caminhar: é preciso não atropelar, é preciso respeitar o ritmo de cada um.
Tirar o peso das coisas, das situações, é colaborar com a alegria, não só a alegria de um final de processo, do objetivo atingido, mas a alegria do percurso. Paulo Freire esclarece essa alegria:


A alegria não chega no encontro do achado, mas faz parte do processo de busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.


ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. A dimensão relacional no processo de formação docente. In: _______________; BRUNO, Eliane Bambini Gorgueira; CHRISTOV, Luiza Helena da Silva (org.). O coordenador pedagógico e a formação docente. São Paulo: Edições Loyola, 2009. Excerto citado: p. 80-81.

* CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.