Escrevi este texto para minhas aulas de Filosofia da Educação. Gostei e resolvi compartilhar.
O filme de Gus Van Sant, Elefante, que recria ficcionalmente as circunstâncias do massacre de Columbine, não pode ser fruído nas condições geralmente esperadas para um produto convencional de entretenimento. Muitos dos elementos que o constituem são inusitados para um filme comercial. O estranhamento começa pela dificuldade de estabelecer a unidade da narrativa. É preciso prestar muita atenção para costurar as diferentes sequências dentro de uma linha de tempo consistente.Tal como a temporalidade, a causalidade também traz problemas para o espectador, que precisa de grande esforço mental para estabelecer os vínculos de sentido entre as diversas personagens que vão aparecendo na trama. Além disso, acompanhar cada uma das sequências também é tarefa complicada, porque elas são longas, lentas e desprovidas de montagens e edições que poderiam sumarizar as cenas, trazendo apenas os aspectos incoativos (relacionados ao começo) e terminativos (relacionados ao final) das ações. O resultado é uma mistura de tédio e tensão: não se sabe quando a cena vai acabar, não se consegue precisar o sentido exato do que está acontecendo, e não se consegue compreender o que está ainda na iminência de acontecer.
Por tudo isso, a análise do filme depende em grande medida da compreensão de sua proposta estética, o que também não é uma tarefa fácil. Vincular todas essas estranhas opções cinematográficas a um projeto final de sentido exige não só reflexão e conhecimento, mas também uma certa confiança condescendente nas apostas do diretor/roteirista, para que o estranhamento não nos leve a abandonar a obra por não encontrarmos nela elementos elucidadores e autoexplicativos, tão comuns a narrativas fílmicas.
Vários podem ser os caminhos para a análise de uma obra de arte, mas talvez os mais seguros – visto que Elefante é um filme em que há perigo de se perder a compreensão do todo, pois os sentidos não se evidenciam de imediato – talvez possam ser construídos a partir de pistas presentes no próprio objeto de análise. O aparecimento do nome das personagens, em passagens de sequências de cenas, identificando protagonistas e coadjuvantes da trama, aparece como uma intervenção de coesão do autor. Se houve a opção de destacar esses nomes e de relacioná-los a personagens que participam da trama, é porque considera-se que identificá-los e compreender as ações que realizam contribui para que se atinja o efeito esperado. O autor organiza a obra por meio desse expediente; portanto, o expediente tem uma razão de ser.
Essa opção de interpretação, no entanto, revela-se ainda um passo tímido em direção ao entendimento de Elefante. Não há obviedade alguma nas possíveis relações entre as personagens da trama: John, Elias, Nathan, Carrie, Acádia, Eric, Alex, Michelle, Brittany, Jordan, Nicole, Benny fazem coisas diferentes em lugares diferentes, com diferentes finalidades; suas posturas físicas, seus padrões de comportamento, suas relações com outras pessoas e com as situações em que se envolvem também são notoriamente distintas. O que têm em comum é o fato de que todas estão presentes na escola no dia do massacre. Entretanto, mesmo esse fato não é suficiente para justificar esteticamente as escolhas de Gus Van Sant. Não seriam necessárias longas cenas e frenéticos avanços e recuos de tempo para mostrar como o acaso colocou todas essas criaturas no mesmo barco. O que a bebedeira do pai de John ou a revelação de fotos de Elias pode trazer de elucidativo para uma trama que tem seu desfecho no brutal assassinato de adolescentes por outros adolescentes?
Talvez seja nesse ponto que se possa dar todos os créditos a Van Sant. Se ele quisesse fazer um filme explicando o que aconteceu, teria várias alternativas. Se a explicação fosse o bullying, poderia centrar a história na humilhação dos garotos-assassinos, para posteriormente mostrar o quanto eles se tornaram amargos, anormais e raivosos. Se a explicação fosse a pressão da sociabilidade e da competição social reproduzida nas escolas, poderia focar as personagens de maior sucesso e maior fracasso, mostrando suas vidas antagônicas e a tensão dos conflitos em suas convivências. Se a explicação fosse o desequilíbrio mental dos adolescentes atiradores, poderia ter utilizado quase que exclusivamente cenas que mostrassem esses meninos em seus delírios e estranhezas.
Mas é possível pensar uma outra coisa: e se o diretor quisesse criar um filme mostrando justamente a impossibilidade de reduzir o problema a explicações simples e parciais? Em outras palavras, e se o diretor quisesse mostrar que o sentido de um massacre como o de Columbine não pode ser depreendido por percepções individuais isoladas, mas deve estar relacionado a uma compreensão mais global do fenômeno da violência e de sua relação com a escola e a adolescência? Se admitimos essa perspectiva, as estranhezas cinematográficas de Elefante são perfeitamente coerentes com sua proposta estética. Há várias visões, porque todas as visões são importantes quando um fenômeno é coletivo, complexo e de tal intensidade. As sequências intermináveis e entediantes podem traduzir o cotidiano igualmente entediante da vida dos estudantes; a dificuldade de relacionar os diversos fatos correlatos pode traduzir a dificuldade de toda uma sociedade em enquadrar, numa lógica de valores e perspectivas de vida, os complexos fenômenos sociais que nela acontecem; o vazio de sentido que se associa à atitude dos meninos atiradores pode se relacionar à própria desumanização dos indivíduos no universo social em que a tragédia ocorre. Todas essas reflexões são demasiado incômodas para serem apresentadas num filme intelectualmente “mastigado”. Gus Van Sant entendeu que não deveria dar de bandeja ao espectador as reflexões já elaboradas, porque, mesmo já estando elaboradas, carecem de certezas; ao contrário, optou por incomodá-lo a ponto de tornar necessária uma reflexão elaborada por parte do mesmo, para tentar sair do turbilhão de imagens e sequências desconcertantes em que foi arremessado.
Por esse prisma, Elefante pode ser visto um filme feito para incomodar, mais que entreter. E, especialmente para os que trabalham com educação, o incômodo se justifica, porque está relacionado à própria essência do trabalho que realizam, que é, em primeiríssimo lugar, o da humanização.
Um comentário:
Bravo, Vini! Lembremos que, historicamente, a preocupação da melhoria de ensino nas universidades, no Renascimento, partiu de Humanistas e vinculava a necessidade de um conhecimento mais profundo para a construção de valores humanos.
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