Toca o sinal a primeira vez. Os alunos de 5as e 6as séries sabem que precisam formar as filas, ainda no pátio, antes de serem levados pelos professores às respectivas salas de aula. Mas não o fazem, porque o tempo da organização escolar não é o mesmo tempo das brincadeiras de que se ocupam, que ainda não terminaram e poderiam bem durar mais alguns minutos.
Aos poucos, o pátio vai se tornando mais povoado, e formam-se aglomerações disformes nos lugares onde deveria estar um atrás do outro. Uns ficam na fila, outros ao lado da fila, outros na fila de outra sala. Os inspetores vão, aos poucos, organizando a confusão. Vez por outra, há uma briga, ou simulação de briga, e todos os esforços de ordem vão para os ares.
Em fila ou em grupos, os alunos sobem quando o sinal bate uma segunda vez. Afunilam-se nos corredores, sempre agitados e alegres. Agora é mais difícil: é preciso fazê-los entrar em suas respectivas salas. Os professores, que os guiam desde o pátio até a porta da classe, não têm como pastorear os carneirinhos todas as vezes, e sempre há aquele que se desgarra. Nesse processo, em que os inspetores param para separar inícios de briga, segurar os que atiraram coisas ou correram no intervalo e dar broncas nos que ficam gritando, sempre sobram desgarrados nesse único e estreito corredor do andar de cima, onde ficam todas as salas de aula da escola.
Nesse momento, já se passaram pelo menos dez minutos de uma aula de quarenta e cinco. Ainda não entraram todos os alunos em suas salas, e, se o professor tiver começado qualquer exposição, será interrompido por essa movimentação. Dentro da classe os alunos ainda estão agitados, e é preciso controlá-los aos poucos, num processo que exige enorme paciência. Fora da classe, ainda será possível ouvir desgarrados remanescentes chutando portas ou querendo retornar ao pátio para pegar alguma coisa que esqueceram, ou simplesmente para não ter de entrar na aula. Com boa vontade, sorte, paciência e tolerância, o professor ainda tem trinta minutos para dizer alguma coisa ou orientar alguma atividade, se não tiver também o problema de estar em uma sala com janelas voltadas para as quadras, onde crianças se divertem na aula de educação física, causando um barulho incômodo e fatigante.
Mas os trinta minutos que o professor tem desaparecem como que por encanto quando bate o sinal do segundo intervalo, o dos alunos de 7as e 8as séries, dez minutos depois de a sala ter se aquietado. Imediatamente, começa o festival de gritos pelo corredor e chutes na porta, o que obriga o docente a manter a mesma aberta e a manter-se próximo dela, para evitar que os alunos conversem com seus primos e irmãos menores, ou entrem para dar recados, pegar materiais e coisas do gênero. A descida dos alunos maiores dura, em média, cinco minutos, suficientes para excitar novamente os pequenos, que querem correr até a porta, ou observar o recreio dos outros pelas janelas, quando o desenho da sala permite.
Sobram ao professor quinze minutos de uma aula toda fragmentada, em que qualquer ritmo que se venha a estabelecer será quebrado pelo ritmo próprio da estrutura organizacional da escola, ao qual se adaptou a psicologia carente de socialização dos nossos alunos. Nesses quinze minutos, é possível recolher algum material de alguma atividade proposta, ou retomar algum ponto perdido anteriormente em dúvidas ou desatenções. Mas a verdade é que: não há aula expositiva ou planejamento didático que sobreviva à quarta aula do Chiquinha Rodrigues. Quando um professor teima em se fazer presente pela voz ou pelo enfrentamento, fica com dor de garganta ou em situação tensa. A melhor opção é bolar outra coisa: entender que é preciso adaptar-se àquele ritmo diferenciado, perdoar-se por não conseguir vencer o conteúdo daquele dia, e aplicar uma atividade, de preferência divertida, que possibilite formação de grupos e trabalho coletivo. A exposição, longa ou curta, não sobreviverá às circunstâncias.
Quando faço meu planejamento, quase nunca lembro de estabelecer, nas unidades didáticas, procedimentos de sobrevivência para a quarta aula do Chiquinha, e acabo me dando mal. Um dia, quando eu estiver mais matreiro como profissional, farei isso, embora creia que nunca poderei explicitar as razões das minhas escolhas nos papéis a serem lidos pelos gestores. O planejamento burocratizado padrão não tem espaço para a escola real e, em grande medida, deve fingir que ela não existe. E é por isso que às vezes, enfrentando os problemas mais que reais da escola real, preciso fingir que o planejamento burocratizado padrão não existe.
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