Eu engatinhava no magistério então. Trabalhava como A.C.T. em escolas estaduais, o que significava ter aulas por contrato mas não ter vínculo com o Estado. Logo, quando o ano letivo acabou, eu não tinha trabalho, nem remuneração. Mas me avisaram de um trabalho que eu poderia fazer nas férias.
Havia um projeto para alunos que haviam perdido boa parte do ano letivo ou abandonado a escola. Eles eram comunicados via correio de que poderiam repor aulas e conteúdos em janeiro, e, assim, dar continuidade a seus estudos sem retornarem à mesma série. Escrito assim parece bonito e útil, mas era picaretagem da grossa. Era uma clara forçação de barra para diminuir índices de retenção. Era um tipo de aprovação promocional e semi-gratuita que nada acrescentaria aos alunos, mas contribuiria para números mais apresentáveis e passíveis de midiatização.
Mas eu precisava de grana, e fui. Dei aulas de Psicologia e Filosofia para uma única aluna, numa escola, e acho que três ou quatro, em outra. Creio que não dei mais de 5 ou 6 aulas. Passei um trabalhinho facílimo para avaliação, fechei as notas, entreguei, e pronto.
Pronto coisa nenhuma. Ainda tinha uma reunião com a supervisora do projeto na escola onde eu tinha mais alunos. Reunimo-nos numa salinha a chefe, eu, um professor de matemática, uma de português, e mais outra de disciplina que não me vem à mente.
A supervisora reexplicou o projeto, agradeceu nosso trabalho, e pediu as notas. O professor de matemática foi o primeiro a fornecê-las. Ele aprovara alguns alunos, mas reprovara quatro (não lembro se eram quatro mesmo, mas não importa), argumentando que não haviam nem comparecido à maioria das aulas, nem atingido a média necessária para aprovação.
A supervisora não gostou nem um pouco do que ouvira. Pediu as provas dos quatro alunos ao professor de matemática. E então tomou a atitude mais anti-ética que já presenciei em toda a minha carreira na educação.
Acredite se quiser, a supervisora simplesmente corrigiu de novo as provas do professor de matemática, rasurando as notas e substituindo-as por notas que aprovassem aqueles alunos. Isso na frente dele e de todos nós. E ainda falando, com agressividade e arrogância, que havia mais acertos que erros, e que, por isso, o professor não havia avaliado corretamente os alunos. O professor não reagiu; acho que não estava preparado para uma invasão tão ofensiva. Eu via aquilo e não queria ver. Onde estava errado, ela colocava meio-certo ou certo, depois somava os certos e meio-certos sem considerar o peso do exercício na nota final atribuído pelo professor, e escrevia uma nota acima de cinco, rabiscando a anteriormente colocada.
O silêncio na mesa era constrangedor. Mas estávamos desempregados, precisávamos receber aquela grama. Ela se virou para mim e perguntou sobre as notas.
- Todo mundo passou - respondi mais que imediatamente.
Todos os outros responderam assim também. Havíamos desistido. Não tivéramos coragem de interceder pelo professor de matemática, e não teríamos de fazê-lo por nós mesmos.
Aquela supervisora saiu da reunião satisfeita com as notas que os alunos obtiveram. Nós saímos conformados com o fato de que tínhamos feito o que se esperava de nós e receberíamos o combinado, afinal. Mas eu saí diminuído como ser humano.
E quando, hoje, vejo um colega ser tratado de uma maneira que lembre a humilhação impingida àquele professor de matemática, costumo intervir com mais veemência do que deveria. Provavelmente porque a indignação se misture à necessidade de compensar o silêncio vil daquele dia. Nessas horas, não ligo que me chamem pejorativamente de rebelde, como sempre fazem. Se não me entendem, pelo menos eu me entendo.
Tudo o que aqui contei realmente aconteceu, embora a distância no tempo faça alguns detalhes menos cristalinos. A essência da cena, entretanto, por quase inacreditável, é algo que não vai se apagar tão cedo das minhas recordações.
Um comentário:
ai, acho que vou parar de ler esse blog. Fica difícil conhecer essas histórias e ainda continuar tendo fé na educação pública do país, que no fim das contas é o mesmo que o tal "futuro do Brasil". Triste que você hoje, mais experiente não se submeta a essas coisas e tenta impor seus princípios, mas quantos outros novatos ainda estão inseguros e tantos outros que virão :(
Aliás, viu que seu "querido governador" pretende diminuir a carga horária de História em função da inclusão de Filosofia e Sociologia?triste né?!
mas to brincando, num vou parar de ler não, mas que as vezes da vontade de pedir pra parar o mundo pra gente descer, isso dá!
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