sábado, 20 de dezembro de 2008

Formulação de hipótese

O leitor deve se lembrar de um quadro do programa "A praça é nossa" em que um professor escrevia palavras estranhas na lousa para posteriormente lê-las de forma que a frase fizesse sentido. O bordão desse quadro era "as palavras se escrevem como se pronunciam".
Pois é. Era fim de ano, conselhos terminados, notas fechadas, conteúdo vencido, tudo feito com uma antecedência de quase um mês. Ainda assim, havia uma escancarada preocupação do administrativo e coordenadoras da escola em "segurar" o aluno, mantendo-o freqüente. O motivo era a amalucada decisão de se aplicar a prova São Paulo no dia 12 de dezembro, e o medo de ter de justificar uma ausência em massa a esse evento tão motivador (mais um caso de MISH).
O que fazer? A opção sugerida não me aprouve: fingir que as notas e faltas não estavam fechadas, e continuar lascando matéria, fazendo chamada e corrigindo exercícios até o fim do ano. O aluno não é bobo, muitos já não vinham, e eu estava a fim de experimentar algumas coisas diferentes. Optei por declarar que, sim, já estava tudo fechado, e que, nessas últimas aulas, eu faria recreação, jogos e brincadeiras.
Uma das brincadeiras era colocar na lousa uma charada para a classe descobrir. A brincadeira nada mais era que uma imitação do quadro no programa de TV acima citado. Um exemplo:

senão sá
bióquia com T
seu

Com um pouco de esforço e desfazendo-se das convenções de leitura habituais, o leitor poderá reconhecer nessa seqüência a sonoridade da expressão "'Cê não sabe o que aconteceu".
Ganhava quem descobrisse, pela sonoridade, a frase oculta.
Pois bem. Em todo jogo e brincadeira realizados em sala de aula há sempre uma turma mais participativa, que não raro é a dos alunos que têm melhor desempenho, e outra que fica mais alheia, porque não se sente em condições de disputar com os primeiros. Tanto na EJA (Educação para Jovens e Adultos, antigo supletivo) quanto no Fundamental II, ocorreu um fenômeno inesperado, pelo menos para mim. Os alunos com dificuldades de leitura apresentaram desempenho similar - até melhor, em alguns casos - ao dos alunos de leitura mais fluente. Fiquei pasmo ao ver a participação ativa e a capacidade de decifração de uma menina que não lê uma linha sequer durante as aulas, tamanha a sua dificuldade. Entre os adultos, aqueles com mais problemas de articulação das palavras foram os que mais conseguiram resultados positivos nesse jogo. Minha cara era muito engraçada: os olhos arregalados, um sorriso de fora a fora, e a pronúncia de um "muito bem!" que, em alguns casos, estava guardada desde o começo do ano.
Surpreendente.
Parei para refletir sobre esse resultado. Revendo o pouco que sei sobre letramento e alfabetização, entendi que, ao escrever as frases de uma forma que exigisse dos alunos a formulação de hipóteses para leitura, eu coloquei-os todos no mesmo patamar zero de decifração. Percebi que aqueles que têm maior domínio da leitura de textos na verdade adquiriram um maior repertório de percepções já automatizadas, e por isso batem os olhos nas palavras e já as assimilam. Os outros, que ainda não têm esse repertório, demoram na assimilação e, quando a realizam, já perderam os vínculos lógicos do texto. Ao escrever coisas como

Q. I. na
ceu piri
mero uó voa
h __________

na lousa, eu, sem querer, ofereci uma atividade em que esse repertório de percepções automatizadas não constitui vantagem, podendo até ser um fator de dificuldade, pois a decifração exige que o aluno dele se desfaça. Ganha, então, não quem já tem mais soluções de leitura na cabeça, mas aquele que está mais preparado para criar hipóteses sobre o que lê. E os alunos com dificuldades de leitura têm mais possibilidade disso, uma vez que o sistema de códigos da escrita ainda é, para eles, um mistério a decifrar.
Se eu não tivesse feito essa atividade, eu nunca teria sacado isso. Surpresas como essa é que fazem a gente gostar da profissão e entender que sempre é possível descobrir algo na nossa prática cotidiana. Ainda bem que eu resolvi brincar, e não encher a lousa de matéria.

P. S.: A segunda charadinha, para quem ainda não descobriu: "Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?".

Um comentário:

Elisabete de Mello disse...

Concordo plenamente com o pensamento. Isto é científico. Os que supostamente teriam mais dificuldades na leitura cotidiana, serão os que mais contribuirão para a renovação da idéia. Einstein tinha problemas de leitura (dislexia).