sábado, 26 de junho de 2010

Figurinhas da Copa

Nesse tempo de Copa do Mundo, há futebol em tudo quanto é conversa, e todo mundo acompanha as transmissões. Evidentemente, os alunos, à sua maneira, querem participar dessa festa. E colecionar figurinhas da Copa é a forma que encontraram de fazê-lo.
No último mês, meninos e meninas eram vistos carregando seus álbuns pela escola e, sempre que havia oportunidade, trocando ou batendo bafo com os cromos repetidos. Como isso é muito gostoso de fazer, alguns andaram brincando com as figurinhas durante as aulas, o que levou os professores e a direção a proibirem a presença delas em classe, com punições para os que insistissem em portá-las.
Eu compreendo perfeitamente o entusiasmo dos alunos. Na idade deles, eu também teria muito mais vontade de trocar figurinhas que de prestar atenção a uma aula de ciências ou geografia. Mas o bom senso dirá que sou um professor, e que por isso devo manter a postura. Não devo permitir que as figurinhas circulem e distraiam as crianças. Devo utilizar a Copa do Mundo como motivação temática para introduzir assuntos das aulas, ou como meio de organizar pesquisas, ou como ensejo para complementar lições com informações sobre os países que dela participam, ou seja, devo utilizar o tema do momento apenas como gancho para o trabalho pedagógico. Diz o bom senso, portanto, que devo continuar com o processo normal de ensino via aula, incorporando o futebol como oportunidade de ganhar atenção para conteúdos que não interessam os estudantes.
Mas o bom senso é inimigo da criatividade. Muitas das melhores coisas que fiz dando aula não tinham nada a ver com o que as pessoas pensavam que eu deveria fazer. Por isso, aproveitando o fato de que sempre gostei de colecionar coisas quando era criança, comprei um álbum de figurinhas, comprei vários pacotinhos delas, e entrei na onda da criançada. E, a despeito da proibição da escola, passei a me encontrar nos intervalos com alunos de diversas classes para trocar repetidas. E ainda mais: quando os alunos terminavam a lição em sala de aula, permiti que trocassem figurinhas entre si e também comigo. E ainda mais: imprimi uma folha de controle de figurinhas, similar à do encarte central, e distribuí para alguns alunos, para que tivessem controle das repetidas e faltantes sem precisar olhar o álbum o tempo todo. Essa folha fez um sucesso tão grande que tive de fotocopiá-la mais vezes, pois muitos alunos a pediram. Assim, posso dizer que descumpri completamente o regulamento da instituição, chegando a organizar ações coletivas para efetivar esse descumprimento. E, como se não bastasse, ainda passei a agir como um aluno entre tantos, motivado pela vontade de completar sua coleção antes do fim da Copa do Mundo.
O que posso dizer a meu favor? Não sei exatamente. Não é uma atitude exemplar. Mas não quero ser exemplo para ninguém, a não ser que possa sustentar espontaneamente o modelo ético que ofereço. Esse modelo ético não vê problema em vivenciar e experenciar o interesse pelas figurinhas. Esse modelo ético não vê o profissionalismo como a atuação 100% dentro dos padrões e regras estabelecidos de forma genérica e descontextualizada. Esse modelo ético faz escolhas. Eu fiz as minhas. Posso arcar com a responsabilidade sobre elas, sem medo: desde que comecei a trocar cromos com os alunos, nenhum deles deixou de fazer a lição em sala ou de participar dos jogos que desenvolvo por causa disso. Os alunos perguntam se podem e quando podem trocar figurinhas nas aulas. Eles guardam as figurinhas quando peço para trocarem em outra hora. Eles não ficam ansiosos e desatentos, porque sabem que haverá um espaço na aula para fazerem isso, e que esse espaço será tutelado pelo professor. Eles procuram o professor depois da aula para fazer trocas. Eles confiam no professor, usam a tabela que o professor bolou, levam e trazem figurinhas para os colegas e efetivamente devolvem aquelas de que não precisam, sem que se precise cobrar ou chamar a atenção. Tudo isso faz parte do conteúdo atitudinal de história, geografia, português: saber se comunicar, saber se relacionar, saber negociar, estabelecer relações de confiança, organizar o próprio material, criar aparatos facilitadores da própria organização.
Um professor que se vê como "totalmente responsável" e "eticamente correto" na verdade simplesmente deixou de ser responsável por algumas coisas e passou a sê-lo por outras. Lecionar é optar. Minha opção relaciona-se com meus paradigmas: aula, tal como a entendemos, como sequência didática de ações de aprendizagem, é só um pedaço do meu trabalho como professor. Se ela tiver todo o espaço, perco oportunidades de convivência social educativa. Se ela perder todo o espaço, a escola deixa de existir. E se eu, como profissional, não tiver coragem de jogar com essa complexidade (como propõe Perrenoud), serei menos professor, e mais funcionário da educação padronizada. Prefiro ser menos funcionário padrão, e mais professor aloprado. É o que eu sou, para o bem ou para o mal.

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