segunda-feira, 23 de abril de 2012

Respostas a um questionário de alunos sobre Rubem Alves


Acabei de responder a um questionário enviado por uma ex-aluna sobre o trabalho do pensador brasileiro Rubem Alves. Deixo três das respostas aqui, como síntese de minhas reflexões.

Rubem Alves defende uma escola com um “professor de espantos”, ou seja, ele não teria disciplina específica, sua função seria de provocar a curiosidade aos alunos e ouvi-los. Você acredita na necessidade deste tipo de professor?


O “professor de espantos” pode funcionar em uma escola experimental, sem a pressão de um currículo oficial ou de formar cidadãos para exercer funções na sociedade. Essa figura serve como um paradigma interessante e belo, mas não tem condições de se efetivar como parâmetro profissional nas condições históricas da educação. Há momentos em que se pode ser “professor de espantos”, porém essa condição se restringe a determinadas aberturas na relação professor-aluno, em condições igualmente determinadas. Acredito que o professor deve, sim, lecionar uma disciplina específica e deve aproveitar a curiosidade dos alunos dentro de uma estrutura de aula e de escola em que estudar, ler e aprofundar conhecimentos sejam atividades capazes de assimilar essa curiosidade.

Rubem Alves defende o fim do vestibular, pois segundo ele “A maior importância dos vestibulares está precisamente nisso: as deformações que eles impõem sobre a educação que os antecede” (Casa de Rubem Alves - conversas com educadores- http://www.rubemalves.com.br/ofimdosvestibulares.htm). O que essa medida implicaria nas propostas educacionais dos dias de hoje?

O vestibular existe porque a Universidade brasileira é um projeto de elite. Ele já vem sofrendo numerosas modificações em função do ENEM, do PROUNI e de outras ações governamentais. O fim dos vestibulares implicaria obviamente, um novo sistema de seleção para os cursos superiores. O que aconteceria, em minha opinião, seria a adaptação do ensino médio às exigências desse novo sistema de seleção. Na prática, isso não representaria melhoras nem prejuízos, apenas um deslocamento de foco de uma determinada formatação de currículo para outra.

Em que o perfil literário de Rubem Alves influencia na sua carreira, o que mais lhe chama atenção?

Rubem Alves é um sonhador da educação, com belos textos e colocações provocativas. É um autor que traz boas ideias e incentiva a experimentação, a mudança e a inventividade. Desde que não seja lido como um guru e sim como um animador filosófico da profissão, é alguém que pode contribuir para o crescimento profissional do professor.


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Tempos depois, o embasamento

Há algum tempo atrás, quando ainda trabalhava para a Prefeitura de São Paulo, fiz um dos muitos cursos oferecidos pelos sindicatos da categoria. A despeito de serem cursos geralmente curtos, e um tanto quanto superficiais, eles consistiam em uma forma legítima de somar pontos para evolução na carreira, e como não éramos exatamente as pessoas mais bem remuneradas do Município, sempre nos empenhávamos em fazê-los. Os cursos eram realizados em ambiente virtual, em sua maior parte, com encontros presenciais que complementavam a carga horária. Dentro dos limites desse modelo, os tutores e professores trabalhavam com seriedade, e as coisas fluíam com tranquilidade até a prova final e o envio dos diplomas.
Acontece que, em um determinado momento, éramos chamados para participar dos fóruns virtuais. A participação nos fóruns fazia parte da nota final. Quer dizer: quem não participasse, perderia pontos. E lá fui participar de um desses fóruns, bem perto do fechamento, naqueles dias em que você só faz a lição de casa porque tem de fazer mesmo (eu também já fui aluno, né?).
Não lembro quais eram as questões a responder, mas lembro bem que eram questões de compreensão de leitura. O aluno que tivesse lido os textos encontraria as respostas nos mesmos. Como eu fui postar bem perto do horário limite, pude ler as contribuições dos colegas, que eram quase todas iguais. Claro que seriam, as perguntas eram do tipo "o que os textos dizem sobre x", e não "o que você tem a dizer sobre x, além do que o texto disse". Eu não acreditei que fosse aquilo, e resolvi interpretar o fórum como fórum: em vez de responder pergunta por pergunta com paráfrases dos textos e dos colegas, tentei dar uma contribuição original a um dos tópicos levantados em uma das questões. Escrevi consistentemente e bem.
Para minha surpresa, recebi uma mensagem do tutor do fórum dizendo que eu não havia feito o solicitado e que parte dos questionamentos que eu havia levantado estavam respondidos nos próprios textos. Fiquei incomodado (sou uma pessoa arrogante quando se trata de questões profissionais) e um pouco desgostoso com aquela resposta. Fiz uma postagem depois disso, respondendo direitinho cada uma das perguntas, mas deixei um espaço para reclamar. Reclamei que aquilo não era um fórum, era uma lista de atividades online. Que se fosse efetivamente um fórum, seria organizado para a efetivação do debate, e não para verificação do entendimento dos textos. Que não fazia sentido eu entrar num espaço virtual para escrever o que os outros escreveram e ler a mesma coisa um monte de vezes.
Desse momento em diante, minha relação com o tutor se tornou um tanto quanto ácida e desconfortável. Ainda mais porque resolvi discutir uma resposta que ele deu a outra aluna, mandando-a ler direito os textos. Não fiz isso porque quisesse contrariá-lo. Fiz porque queria gerar um debate mínimo, qualquer debate.
Mas não funcionou, porque as pessoas que faziam o curso entenderam o que era aquele fórum, e eu não entendi. Aquele fórum não poderia gerar debate, tinha de ser um controle de leitura dos textos. Por quê? Porque aquele era um curso de formação em massa. Havia um monte de pessoas em cada um dos fóruns, e não seria possível contemplar todas as contribuições que fatalmente viriam de um debate provocado por uma pergunta aberta. Ou seja, o fórum não era um fórum. E o que eu tinha de fazer era respondê-lo conforme solicitado, depois fazer a prova e esperar pelo certificado.
Alguns anos depois, montando um curso sobre Metodologia de Ensino para Educação Superior, encontro este trecho do livro Competência Pedagógica do Professor Universitário, de Marcos Tarciso Masetto, a respeito de listas de discussões:
(...) há que se pensar em um assunto sobre o qual o grupo possa vir a se expressar uma ou mais vezes, durante um tempo de, por exemplo, quatro a sete dias, podendo cada participante avançar e modificar suas próprias reflexões nesse tempo com base em seus estudos ou analisando as colaborações de seus colegas e do professor, discutindo as ideias em questão. Pode-se tirar as primeiras conclusões e até produzir um texto: depende do objetivo prefixado e do tempo estabelecido para tal.
Tal forma de trabalhar grupalmente favorece o desenvolvimento de uma atitude crítica perante o assunto, uma expressão pessoal fundamentada e argumentada sobre os vários aspectos que estão sendo debatidos e não pode ser atropelada pelo professor com interferências diretas "para resolver os conflitos, ou responder às dúvidas que surjam". Não se trata de uma situação de perguntas e respostas entre os participantes e o professor. Mas sim, de uma reflexão contínua, debate fundamentado de ideias, com intervenções do professor no sentido de incentivar o progresso dessa reflexão, e como membro do grupo trambém trazer suas reflexões, sem nunca fechar o assunto. (MASETTO, Marcos Tarciso. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo: Summus Editorial, 2003 p. 135-136.)
Lamento não ter referência desse texto naquela época. Era isso o que eu queria dizer, mas não consegui, por não saber formular. Eu esperava de um fórum as características que Masetto considera essenciais a uma lista de discussão.
Águas passadas não movem moinhos. Recebi o certificado daquele curso. Mas a verdade é que não lembro quase nada do conteúdo. A maior reflexão que fiz foi sobre os usos produtivos dos recursos da EAD, e isso se refletiu na minha recente descoberta bibliográfica. Acho que o curso foi importante para provocar minha inquietude em relação à forma como são gerenciadas as novas tecnologias. Nesse sentido, valeu a pena. Agora que trabalho montando cursos de EAD, sei o que não devo fazer.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Em defesa do Piso Nacional dos Professores


Nós, todos, educadores, deveríamos acompanhar, se já não fazemos sempre, o que está acontecendo no Congresso Nacional por esses dias. É um debate de suma importância.
O MEC elevou o Piso Nacional para os professores. Avanço inegável. Pode-se argumentar que foi um avanço ainda tímido, e eu concordo (afinal, 1.451 reais para alguém trabalhar 40 horas semanais na profissão mais importante da sociedade é um valor escandaloso). Mas, se temos noção de que ser professor em pequenos municípios do interior do Brasil é ainda mais difícil do que de sê-lo nas grandes redes municipais das metrópoles, somos obrigados a reconhecer algum ganho para a causa. Ele não será sentido para quem trabalha onde o Estado já contempla o piso, mas fará enorme diferença para quem não tem essa condição. Há professores, Brasil afora, que ganham menos de 1000 reais por mês. Creio que todos devem se lembrar do apelo da professora Amanda Gurgel, que virou hit no YouTube. Pois é: muito incômodo imaginar que há números piores do que aqueles que ela mostrou em seu vídeo.
Acontece que os prefeitos de várias cidades, por meio de sua associação de defesa de interesses administrativos (Confederação Nacional dos Municípios), argumenta que não é possível pagar sequer esse aumento insuficiente e ínfimo. E que, se forem respeitadas, dentro das 40 horas de jornada previstas pelo governo, as horas de preparação didática do professor, os números seriam ainda mais complicados, porque teriam de ser contratados mais profissionais.
A questão é dinheiro. Porque, quem quer educação de qualidade, precisa oferecer condições para que ela aconteça. Aumentar o piso é um avanço. Determinar 1/3 da jornada para que o professor estude, prepare aulas, corrija provas, não é nem um avanço: é uma correção imprescindível para que a profissão continue existindo. Não acho possível que as pessoas continuem se interessando em dar aulas se só fossem consideradas como trabalhadas as horas em sala de aula. Isso as obrigaria a uma segunda jornada de trabalho para estudo e preparação e, pela faixa salarial atual, qualquer outra ocupação ofereceria melhor relação trabalho/rendimentos. Essas conquistas mínimas deveriam estar fora de debate. Ou seja: o debate deveria ser sobre como ampliá-las.
A questão deveria ser educação. Se o governo determina um mínimo humanamente imprescindível (e ainda insuficiente!) para manter a dignidade do profissional da educação, e se racionaliza a jornada desse profissional para que ele possa realizar uma tarefa absolutamente central na construção da sociedade com algum padrão de qualidade, as pessoas deveriam ter vergonha de reclamar de dinheiro. Não, não acho que a política de educação brasileira atual seja a melhor do mundo. Não tenho ilusões quanto a isso: ainda não se leva a educação a sério em nenhum âmbito governamental, e qualquer comparação entre a carreira profissional do magistério e outras carreiras de nível universitário é prova incontestável dessa pouca seriedade. Mas quando o mínimo dos mínimos dos avanços pode ser colocado em questão de forma tão imediata e com argumentos tão esquisitos, está na hora de perguntar que projeto de município, de estado ou de país as pessoas verdadeiramente têm. Não o que está no discurso, e sim aquele que guia as ações dessas superentidades, como a CNM. Pedir para o governo federal pagar os salários dos professores argumentando falta de dinheiro é bastante curioso. Mostra que o orçamento de muitos municípios simplesmente desconsidera a necessidade de remunerar dignamente e dar boas condições de trabalho para o educador. Ou seja: se meu professor sair do estágio em que está (abaixo do sofrível) e subir para outro (sofrível), não posso pagar. E por quê? A resposta não será dada, mas é esta: porque meu modelo de administração prevê a situação sofrível. Então, não discuto mudar o modelo. Discuto mantê-lo com subsídio da Federação para tentar, a longo prazo, resolver a situação em questão. Simples assim: naturaliza-se um modelo de administração em que o salário do professor é miserável. Quando a Federação diz que isso é um problema, não se olha para o modelo, e sim para a custo final da solução desse problema sem que se tenha de repensar o modelo.
Realmente, é de arrepiar. Ainda mais se formos pesquisar a fundo os orçamentos dos municípios reclamões. Educação infelizmente ainda não é prioridade concreta no país. Então, precisamos ter vigilância para garantir os pequenos avanços; se bobearmos, nem eles teremos.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Horas livres

Há pelo menos dez anos venho correndo atrás daquilo que consegui em 2011-2012: a perspectiva de trabalhar em um lugar só, novamente.
Sempre leio e ouço professores que se queixam da dupla jornada de trabalho (tripla, em boa parte dos casos), que os impede de realizar outras atividades, como leituras, estudos, cursos, organização das próprias coisas e outras ações para desenvolvimento individual e profissional. Eu também não estava satisfeito, e Deus me concedeu a graça de poder sair disso com um regime de dedicação exclusiva.
Mas o que eu descobri sobre o tempo livre parece mais grave que isso. Eu descobri que é preciso disciplinar até o tempo livre... para garantir que ele seja realmente livre, realmente seu!
Vi na TV há anos atrás uma entrevista do Phill Collins em que ele dizia que, sendo músico, acabava trabalhando o tempo todo: comia e bebia música, gastava horas e horas para criar uma canção ou encontrar o arranjo mais apropriado, ficava muito tempo pensando nisso, e chegava a compor durante o sono! Ou seja, ele nunca se desligava da música. Isso era bom para seus fãs, mas não era bom para ele.
Nessa nova fase da minha vida, sem dupla jornada, e com tempo mais razoável para preparação do material com o qual trabalharei, fiquei excitado com a possibilidade de empregar as horas livres para zilhões de coisas. Até que a ficha caiu: nada disso! Horas livres, são horas livres.
Um professor não pode recuperar, em alguns anos, toda a defasagem intelectual que foi criada por sua condição de trabalho. É preciso admitir que há coisas que não sabemos, e continuaremos sem saber. A curiosidade intelectual é maravilhosa e extremamente propulsora; no entanto, fazer cobranças em relação a ela soa um pouco absurdo no contexto de nosso cotidiano. Não é apenas fazer um monte de cursos e leituras. É preciso tempo e experiência para confrontá-los com a realidade. É preciso descansar a mente. É preciso curtir as coisas que são compradas com o suor do trabalho. É preciso, às vezes, ficar mofando no sofá, ouvindo música boa, ou ficar conversando assuntos menores com a vizinhança.
Se uma pessoa quiser ser professor em tempo integral, ela poderá ser um bom ou excelente professor. Isso vale. A partir do momento em que essa disposição escravizar o indivíduo, em que os compromissos profissionais extra-horário transformarem-se em horários profissionais, em que não houver tempo para que o professor por excelência exercite sua condição de ser humano por excelência, creio que própria noção de excelência está furada. Algum sacrifício é necessário fazer, mas não é justo sacrificar a parte de nós que se beneficiaria, no futuro, dessa árdua batalha.
Não, amigos, um bom professor não é aquele que está sempre com pilhas de coisas para corrigir, acelerado, nervoso e sem tempo para nada. Um professor assim pode ser bom e pode não ser. Na verdade, bom professor é aquele que sabe o que está fazendo. Quem sabe o que está fazendo sabe que não tem força, nem disposição, nem inteligência infinitas. Sabe dizer "não" quando precisa dizer, e sabe em que momento precisa estar cem por cento.
Acho engraçado que, para toda a escola em que trabalhei, vale a mesma regrinha de convivência: você não pode não sofrer. Se está numa mesa da sala dos professores sorrindo, relaxado, pensando sobre algum assunto ou demonstrando tranquilidade em relação às coisas à sua volta, ninguém leva você a sério. As pessoas veem o mau humor como parte indissociável do trabalho que realizam. Se você toma uma bronca de um superior, tem de demonstrar constrangimento por ter feito a coisa errada, ainda que você e ele saibam que aquilo é uma bobagem. Quando está em seu espaço, você tem de ter pilhas de papéis sobre a mesa. Se as pessoas não virem essas pilhas de papéis sobre a mesa, e sua cara fechada, elas vão ficar incomodadas, e pedir para que você faça alguma coisa só para não sentirem sua presença calma por perto. Relaxar parece um crime. E quando você incorpora isso, quando passa a carregar isso como marca de personalidade, você se sente culpado até quando está desobrigado de fazer o que as pessoas querem que você faça. É preciso romper com essa sensação!
Horas livres são imprescindíveis. Ou você tem um tempo para si mesmo, ou esse "si mesmo" vai deixando de existir aos poucos. Não dá para sonhar aula, comer e beber aula, respirar aula. Porque aula não é só aula, assim como professor não é só professor: o algo mais vem do fato de que o mundo continua a girar enquanto nossas questões profissionais nos consomem. Por isso, disciplinar as horas livres é dizer a si mesmo: eu me obrigo, nesse momento, a não pensar nisso e a não falar sobre isso. Eu me obrigo a me desligar da escola, dos alunos e da aula. Minha ainda curta experiência no magistério tem me demonstrado que não vale a pena dormir com os problemas numa cama quentinha de um quarto silencioso depois de uma boa refeição: a maioria deles se resolve sem sua ajuda, ou se desvanece tão logo as pessoas encontrem outros. E a vida continua.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Conquistas e renúncias

Acaba o ano de 2011, com um saldo imensamente positivo e uma série de descobertas no campo profissional.

Desde meados de 2009, vinha crescendo em meu coração uma certeza, maior que todas as outras convicções que sempre carreguei na minha trajetória: eu vinha percebendo a necessidade de mudar.

Trabalhar com crianças e adolescentes é uma das coisas mais extraordinárias que um ser humano pode fazer. Fazer parte da formação de outros seres humanos é algo que não tem nome, não tem preço, não tem paralelo. Desde sempre, em minha profissão, quando eu colocava a cabeça no travesseiro, sabia que poderia dormir sossegado, porque estava realizando, todos os dias, um pedaço do que eu considero a verdadeira transformação do mundo.

Os anos se passaram, e minha disposição física e psicológica começou a cair, por vários motivos. Não seria sensato tentar enumerá-los todos, mas algumas coisas contribuíram decisivamente. Uma delas foi o começo da carreira no ensino superior particular, onde me senti muito mais cobrado intelectualmente que fisicamente, e me senti chamado novamente ao desenvolvimento intelectual. Essa oportunidade veio em função dos problemas econômicos pós-separação, e não exatamente de uma busca deliberada.

Depois, com dois empregos, minha disponibilidade caiu para amigos, hobbies, projetos pessoais e vida particular, mas o dinheiro era necessário. Foram cinco anos nessa toada, até que o corpo começou a avisar que havia problemas.

Acredito que boa parte do que sentimos fisicamente começa no nosso espírito. Nossas disposições mentais vão mudando, nossa tolerância com certas coisas vai diminuindo, e começamos a ficar chateados de ter de enfrentar os mesmos desafios que deveriam estar anteriormente superados. Não me refiro aos alunos, que são sempre desafios novos e gratificantes. Refiro-me à estrutura de trabalho, que vai criando cada vez mais empecilhos à verdadeira batalha, que é a da educação de qualidade. Eu vinha me decepcionando cada dia mais com os rumos administrativos e pedagógicos da educação fundamental.

Durante muito tempo, estive em Sala de Leitura, um trabalho que me permitia inovar, criar, determinar dinâmicas, e até ter um espaço meu para estudos e aprofundamentos, conforme o caso. A saída da Sala de Leitura, por razões burocráticas, jogou-me novamente no turbulento mundo das salas de aula sem recursos, das tecnocracias disciplinares, das relações estranhas em salas de professores. Passaram-se dois anos, com uma produtiva experiência em turmas de EJA para amenizá-los; mas, ao final deles, eu estava completamente esgotado.

Então, comecei a entender que era hora de fazer outra coisa, de procurar algo com o que tivesse condições de lidar. O barulho, a agitação física, o assédio moral, o ambiente carregado, as agressões naturalizadas, o autoritarismo das relações de trabalho, tudo isso estava me fazendo muito mal. Eu começara a reagir, a ser irônico, destrutivo, irritadiço. Eu começara a me defender com minha arrogância e minha dedicação insana ao trabalho. Eu começara a produzir dentro de mim sementes amargas. Resultado: cálculos renais grandes, que conduziram a duas penosas cirurgias e à quase improdutividade do primeiro semestre de 2010.

Já entendendo, antes mesmo das complicações físicas, que as coisas não poderiam continuar daquele jeito - ou seja, que eu estava, por incrível que pareça, infeliz com o que fazia -, comecei a investir na ideia de sair da condição de professor da Prefeitura de São Paulo. A princípio, pensei em ser coordenador, ou pelo menos abrir essa possibilidade. Entrei num curso de Pedagogia complementar, que acabaria não concluindo, pois atrasei os estágios em função das complicações físicas e não consegui rearticular tempo para fazê-los no prazo. Prestei concurso na área de coordenação, tendo sido aprovado. Paralelamente, fui prestando alguns outros concursos, sendo surpreendentemente aprovado em boa parte deles, a despeito do pouco tempo que tinha para estudar. Mas eram vagas complicadas: ou faziam com que eu permanecesse atrelado à Prefeitura, ou ofereciam cargos temporários, em função dos quais em não poderia jamais abrir mão do meu, que era efetivo.

Foi nesse contexto que prestei o concurso do Instituto Federal de Educação de São Paulo. Eu não achava que tivesse muita chance. Na verdade, quando eu prestei, eu nem sabia direito como funcionava a seleção. Tanto que, quando fiquei em segundo na primeira fase, não sabia quais seriam as etapas posteriores. Mas minha boa colocação dera-me o alento necessário para investir. Fui atrás, estudei, preparei minhas aulas para a segunda fase e, pela graça de Deus, logrei ser aprovado em segundo lugar.

O que considero mais extraordinário de ter ido tão longe é que meu objetivo não era, a princípio, galgar a carreira acadêmica na esfera pública. O que eu queria mesmo era procurar uma alternativa, fosse qual fosse, para manter a estabilidade de emprego e sair do tipo de trabalho que estava me fazendo mal. Eu não me pensava, naquele momento, como um professor universitário de uma Federal, sonho óbvio das pessoas em minha área. Eu queria condições de trabalhar sem prejuízos à minha saúde. E, ademais, eu tinha apenas o título de mestre, o que seria insuficiente para a maioria das vagas que se abriam.

Mas aconteceu, e veio em excelente momento. No meio do ano, saí da Prefeitura e - lamentavelmente, nesse caso - também da faculdade particular em que lecionava, e assumi o cargo de professor de português numa instituição que já conhecia, que fazia parte da minha formação e na qual eu podia me sentir verdadeiramente em casa, seguro.

Então, vieram os seis meses finais de 2011. Que são sem dúvida os de maior importância para mim, visto que os seis primeiros meses desse ano estiveram completamente atrelados à expectativa da convocação para o Instituto Federal. Posso dizer até que isso fez com que não fossem tão produtivos quanto deveriam, mas não me arrependo disso, e considero até natural, em vista do que se passava em meu coração.

E o segundo semestre de 2011 foi de intenso aprendizado. Em primeiro lugar, era preciso aprender a dar aula em duplas, coisa que até então nunca tinha feito, ou nunca tinha feito naquele formato. Era preciso, portanto, desenvolver certa inteligência política que nunca foi muito meu forte, e certa capacidade de lidar com problemas que não eram meus, o que costumava me aborrecer em outros tempos. Acredito que esse aprendizado foi vitorioso. Consegui levar bem as duplas, consegui realizar meu trabalho com relativa harmonia, na maior parte dos casos. Em certos momentos, percebi que poderia estar mais vulnerável do que pensava. Eu tinha de entender que estava trabalhando com um grupo muito qualificado, e que, nessas condições, era natural que as pessoas competissem por espaços e convicções pedagógicas de uma forma diferente daquela que até então havia vivenciado. Eu precisava aprender a me colocar, e ser mais cuidadoso; isso era uma coisa toda minha. À parte isso, nada tenho a reclamar dos meus colegas, nem de meus parceiros. Tudo correu como o programado em todas as disciplinas.

Em segundo lugar, era preciso aprender como funciona o Instituto, e quais são seus meandros e caminhos. O que me deixou bastante assustado, no começo, foi perceber que era uma instituição em que, a despeito dos objetivos educacionais, os funcionários administrativos tinham muito mais poder político, institucional e de diálogo que os professores. Isso era uma novidade desagradável para mim, acostumado a considerar meu trabalho como o centro das preocupações de qualquer lugar onde o exercesse. Outra coisa que percebi foi a existência de certo distanciamento de perspectivas entre os professores e os ocupantes de outros cargos, o que é característica de organizações fortemente burocratizadas e hierarquizadas. Mas o que realmente foi complicado de entender - e confesso que ainda não entendi - foi que, dentro dessa estrutura fortemente burocratizada e hierarquizada de decisões dentro do Instituto, a burocracia não era de fato eficiente. Porque é fácil lidar com os trâmites burocráticos quando eles resultam em ações claras e direcionamentos efetivos. Mas, acredite se quiser, os trâmites eram excessivos e paradoxalmente ineficazes para solucionar nossos problemas. Mas aos poucos fui me habituando e, sobretudo, entendendo que meu trabalho não seria afetado por isso, se eu não permitisse.

Em terceiro lugar, o maior e mais útil e mais perfeito e delicioso dos aprendizados. Eu tinha de lidar com o público estudantil mais qualificado que já conhecera. O que faz a diferença no Instituto em relação a qualquer outro ambiente de trabalho é o aluno, disso não tenho a menor dúvida. Nunca vira alunos tão bons, tão interessados, tão participativos, e tão bem preparados. Quando isso acontece, eu já sei o que fazer: trabalhar muito, muito, muito. Estudar, preparar aulas, trazer conteúdos, atender a quem eu puder atender, conversar sobre interesses da classe. Não, eu ainda não logrei atingir o melhor do que posso fazer. Mas senti que evoluí, porque fui exigido exatamente nos pontos onde posso render mais. Creio que só encontrei tamanho grau de satisfação quando lecionava em minhas turmas de Letras da faculdade. E sonho com a abertura, no Instituto, de uma Licenciatura em Letras, na qual eu me veria duplamente realizado.

Enfim, 2012 vem com muitas promessas, e eu creio que conseguirei alcançar resultados ainda mais expressivos do que consegui. Saio de 2011 fortalecido, prestigiado, vencedor da luta contra as condições em que vivi nos últimos anos, e pronto para edificar uma série de conquistas relacionadas àquilo que verdadeiramente amo: a língua, a arte, a música, a literatura, a educação, o diálogo respeitoso, a democracia, o conhecimento, o ser humano.

domingo, 27 de novembro de 2011

Observações sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant

Escrevi este texto para minhas aulas de Filosofia da Educação. Gostei e resolvi compartilhar.

O filme de Gus Van Sant, Elefante, que recria ficcionalmente as circunstâncias do massacre de Columbine, não pode ser fruído nas condições geralmente esperadas para um produto convencional de entretenimento. Muitos dos elementos que o constituem são inusitados para um filme comercial. O estranhamento começa pela dificuldade de estabelecer a unidade da narrativa. É preciso prestar muita atenção para costurar as diferentes sequências dentro de uma linha de tempo consistente.Tal como a temporalidade, a causalidade também traz problemas para o espectador, que precisa de grande esforço mental para estabelecer os vínculos de sentido entre as diversas personagens que vão aparecendo na trama. Além disso, acompanhar cada uma das sequências também é tarefa complicada, porque elas são longas, lentas e desprovidas de montagens e edições que poderiam sumarizar as cenas, trazendo apenas os aspectos incoativos (relacionados ao começo) e terminativos (relacionados ao final) das ações. O resultado é uma mistura de tédio e tensão: não se sabe quando a cena vai acabar, não se consegue precisar o sentido exato do que está acontecendo, e não se consegue compreender o que está ainda na iminência de acontecer.
Por tudo isso, a análise do filme depende em grande medida da compreensão de sua proposta estética, o que também não é uma tarefa fácil. Vincular todas essas estranhas opções cinematográficas a um projeto final de sentido exige não só reflexão e conhecimento, mas também uma certa confiança condescendente nas apostas do diretor/roteirista, para que o estranhamento não nos leve a abandonar a obra por não encontrarmos nela elementos elucidadores e autoexplicativos, tão comuns a narrativas fílmicas.
Vários podem ser os caminhos para a análise de uma obra de arte, mas talvez os mais seguros – visto que Elefante é um filme em que há perigo de se perder a compreensão do todo, pois os sentidos não se evidenciam de imediato – talvez possam ser construídos a partir de pistas presentes no próprio objeto de análise. O aparecimento do nome das personagens, em passagens de sequências de cenas, identificando protagonistas e coadjuvantes da trama, aparece como uma intervenção de coesão do autor. Se houve a opção de destacar esses nomes e de relacioná-los a personagens que participam da trama, é porque considera-se que identificá-los e compreender as ações que realizam contribui para que se atinja o efeito esperado. O autor organiza a obra por meio desse expediente; portanto, o expediente tem uma razão de ser.
Essa opção de interpretação, no entanto, revela-se ainda um passo tímido em direção ao entendimento de Elefante. Não há obviedade alguma nas possíveis relações entre as personagens da trama: John, Elias, Nathan, Carrie, Acádia, Eric, Alex, Michelle, Brittany, Jordan, Nicole, Benny fazem coisas diferentes em lugares diferentes, com diferentes finalidades; suas posturas físicas, seus padrões de comportamento, suas relações com outras pessoas e com as situações em que se envolvem também são notoriamente distintas. O que têm em comum é o fato de que todas estão presentes na escola no dia do massacre. Entretanto, mesmo esse fato não é suficiente para justificar esteticamente as escolhas de Gus Van Sant. Não seriam necessárias longas cenas e frenéticos avanços e recuos de tempo para mostrar como o acaso colocou todas essas criaturas no mesmo barco. O que a bebedeira do pai de John ou a revelação de fotos de Elias pode trazer de elucidativo para uma trama que tem seu desfecho no brutal assassinato de adolescentes por outros adolescentes?
Talvez seja nesse ponto que se possa dar todos os créditos a Van Sant. Se ele quisesse fazer um filme explicando o que aconteceu, teria várias alternativas. Se a explicação fosse o bullying, poderia centrar a história na humilhação dos garotos-assassinos, para posteriormente mostrar o quanto eles se tornaram amargos, anormais e raivosos. Se a explicação fosse a pressão da sociabilidade e da competição social reproduzida nas escolas, poderia focar as personagens de maior sucesso e maior fracasso, mostrando suas vidas antagônicas e a tensão dos conflitos em suas convivências. Se a explicação fosse o desequilíbrio mental dos adolescentes atiradores, poderia ter utilizado quase que exclusivamente cenas que mostrassem esses meninos em seus delírios e estranhezas.
Mas é possível pensar uma outra coisa: e se o diretor quisesse criar um filme mostrando justamente a impossibilidade de reduzir o problema a explicações simples e parciais? Em outras palavras, e se o diretor quisesse mostrar que o sentido de um massacre como o de Columbine não pode ser depreendido por percepções individuais isoladas, mas deve estar relacionado a uma compreensão mais global do fenômeno da violência e de sua relação com a escola e a adolescência? Se admitimos essa perspectiva, as estranhezas cinematográficas de Elefante são perfeitamente coerentes com sua proposta estética. Há várias visões, porque todas as visões são importantes quando um fenômeno é coletivo, complexo e de tal intensidade. As sequências intermináveis e entediantes podem traduzir o cotidiano igualmente entediante da vida dos estudantes; a dificuldade de relacionar os diversos fatos correlatos pode traduzir a dificuldade de toda uma sociedade em enquadrar, numa lógica de valores e perspectivas de vida, os complexos fenômenos sociais que nela acontecem; o vazio de sentido que se associa à atitude dos meninos atiradores pode se relacionar à própria desumanização dos indivíduos no universo social em que a tragédia ocorre. Todas essas reflexões são demasiado incômodas para serem apresentadas num filme intelectualmente “mastigado”. Gus Van Sant entendeu que não deveria dar de bandeja ao espectador as reflexões já elaboradas, porque, mesmo já estando elaboradas, carecem de certezas; ao contrário, optou por incomodá-lo a ponto de tornar necessária uma reflexão elaborada por parte do mesmo, para tentar sair do turbilhão de imagens e sequências desconcertantes em que foi arremessado.
Por esse prisma, Elefante pode ser visto um filme feito para incomodar, mais que entreter. E, especialmente para os que trabalham com educação, o incômodo se justifica, porque está relacionado à própria essência do trabalho que realizam, que é, em primeiríssimo lugar, o da humanização.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Releituras

Estive lendo postagens que fiz há tempos. Como saí da Prefeitura e da faculdade em que lecionava, quis verificar se minhas opiniões mantinham-se as mesmas ou se respirar novos ares faria rever certos radicalismos de postura e certas assertivas com teor mais emocional.
Não aconteceu nada disso. Na verdade, fiquei impressionado com a lucidez dos textos que escrevi. Posso remontar toda a tensão emocional que vivi pelas temáticas que neles abordo, mas não sinto que isso macule a essência dos raciocínios. Há muitos erros de digitação e reescrita, o que mostra que, depois do desabafo, não me sentia disposto para fazer revisões. Mas - e isso é o que positivamente impressionou - não creio que discorde de quase nada do que ali está. Eu estou nesses textos, o professor que sou neles se evidencia.
São novos os desafios no IFSP. Parece que preciso apresentar-me de forma mais agressiva, mais enfática; parece que os maiores problemas ali são questões de ego e vaidade, ou seja, de insegurança. Preciso me trabalhar melhor nesses aspectos, e sei que venho evoluindo. Sinto que construirei meu espaço, e que as reações adversas das pessoas são indícios de sucesso nisso, um sucesso que altera configurações de poder e obriga a renegociar as relações.
Não há, por enquanto, elementos suficientes para estabelecer uma compreensão global dessa nova empreitada; assim que houver, o blogue revelará. Até lá, e como forma de restabelecer minha identidade diante do novo, revisitarei as ideias dos anos de Prefeitura e FIP. Tem sido muito gratificante.