quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O discurso antiprofessor



Nós, professores, sempre temos aquela pessoa em nossos círculos que tem prazer de diminuir nossa profissão. Normalmente, essa pessoa não se pauta pelos mesmos valores que nos conduziram à sala de aula, e tenta construir seus juízos a partir de uma visão de mundo que não é necessariamente melhor que a nossa, nem mais ética, nem mais produtiva, mas que lhe parece mais apta a produzir sucesso (seja lá o que sucesso for nesse contexto).
Algumas pessoas dizem que o que fazemos não é trabalho "duro". Não implica, por exemplo, segundo essas pessoas, grandes esforços físicos, constantes deslocamentos, decisões que envolvam muito dinheiro ou questões jurídicas ou mesmo questões que afetem a saúde ou integridade das pessoas. Assim, teríamos uma responsabilidade mais "leve", o que nos daria condição de viver de forma mais descontraída e ter mais tempo para nossos "prazeres". Parece evidente que, nesse caso, as pessoas projetam as próprias frustrações sobre os estereótipos do que não conhecem e tomam isso como verdade absoluta, já que eficaz, para sanar certos buracos do percurso da alma.
Algumas pessoas consideram, também, que somos folgados, porque temos mais tempo de descanso, férias ou outras "regalias" (repare que coloquei aspas na palavra, indicando que não acredito nisso!). Teríamos, por exemplo, 30 dias em janeiro, mais 15 em julho, mais os feriados, o que faria com que estivéssemos em condição favorecida na comparação com outras profissões. Fico a pensar que se essas pessoas avaliam a carga de trabalho extra que levamos para casa, a quantidade de tempo de que precisamos para elaborar, planejar e viabilizar os cursos que ministramos, a obrigação social (acima até da pessoal, individual, de carreira) de estarmos atualizados em relação ao que se produz em matéria de ciência e conhecimento e até mesmo as exigências físicas e psicológicas de períodos de repouso e de convívio familiar dos estudantes.
Algumas pessoas, com sorriso sarcástico, insinuam que não utilizamos de verdade as horas que nos reservam e pagam para preparação de aulas, que recauchutamos aulas de outros tempos e vivemos num limbo de crescimento intelectual que nos torna monolíticos e ultrapassados, enquanto em outras profissões o mercado ou outra entidade extramaterial promoveria a necessidade de constante evolução. Engraçado e curioso pensar que algumas dessas pessoas vêm nos procurar para sanar urgentemente problemas básicos de português, matemática, conhecimentos gerais e outros associados a suas formações, muitos dos quais foram abordados por professores durante seus períodos como estudantes.
Algumas pessoas desacreditam de nosso trabalho porque creem que o mundo de hoje em dia é demasiado dinâmico para que a aprendizagem fique limitada ao "pobre e limitado" mundo da sala de aula (por favor, repare novamente no uso das aspas). Assim, o meu e o seu filho podem aprender o que quiserem do jeito que quiserem via TV, internet, museus, viagens etc., e a escola serviria como instrumento de legitimação social para essa criatura especial, brilhante e extraordinária a quem tivemos o prazer de doar parte de nosso não menos especial DNA. Esse talvez seja um pensamento típico de uma sociedade umbigocêntrica. Menosprezar a escola como espaço de convívio, socialização, aprendizado, desaprendizado (sim, isso faz parte!), conflito de ideias e interesses, diminuir a importância da atuação do Estado sobre a formação do cidadão, por mais limitada e carente que possa parecer aos que nada conhecem de educação, é, de certa forma, acreditar que os indivíduos se tornam indivíduos no parto, e não na relação com sua cultura e com o mundo que os rodeia. Isso soa a abrir mão da responsabilidade sobre a relação com o coletivo, o que pode ser muito, muito, muito perigoso.
Algumas pessoas, por fim, dizem que somos menores ou piores porque ganhamos menos que outras profissões. Não são em menor número essas pessoas, como talvez fizesse crer a desimportância que atribuo a essa mentalidade, ao não comentá-la com o mesmo cuidado que as outras. Mas é que esse é o tipo de afirmação que se destrói na própria enunciação. Por isso, esses eu passo, lembrando apenas que salários dependem de inúmeros fatores, como transformações históricas, escolhas de investimento e até mesmo opções políticas de determinadas sociedades e governos.
Enfim, encerro meu pequeno desabafo reafirmando meu orgulho de ser professor e minha disposição de esclarecer aqueles que diminuem minha profissão acerca dos perigos imensos desse tipo de discurso para uma sociedade com graves lacunas na formação de seus futuros profissionais.

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