terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O fim de um ciclo

Há nove anos, pedi remoção da EMEF Senador Luis Carlos Prestes para ministrar aulas perto de minha então residência, no Campo Belo. Escolhi a EMEF Dona Chiquinha Rodrigues pela localização. Não sabia nada a respeito da instituição, da linha de gestão, do corpo docente, dos alunos. Quando fazemos uma escolha dessa forma, é evidente que temos em primeiro plano outras coisas que não o magistério em si. Eu estava prestes a me casar, já morando com minha hoje ex-esposa, planejando mudanças na minha carreira (novas perspectivas, se fossem possíveis) e completamente exaurido das demoradas idas e vindas para a Cohab Inácio Monteiro, onde ficava a escola anterior. Tudo o que pensei foi em conseguir uma possibilidade mais conveniente e atrativa de trabalho, num local mais próximo à minha casa, a despeito do imenso carinho que tinha e ainda tenho pelas pessoas do Senador.
Em virtude dessa falta de pré-conceitos de minha parte, o Chiquinha Rodrigues foi uma surpresa em vários aspectos. No lado positivo, tinha um corpo de professores experiente e com muito tempo de casa, e uma direção consciente das demandas locais. No lado negativo, tinha uma comunidade dividida entre oriundos das favelas da avenida Águas Espraiadas e oriundos da classe média do Campo Belo. Logo percebi que teria de ser um profissional muito equilibrado para sobreviver à tensão do ambiente.
Os anos se passaram e houve uma mudança de direção, que passou a ter um perfil mais imperativo. Conquistei o respeito dos colegas aos poucos, como também colecionei algumas antipatias que, graças a Deus, não evoluíram para inimizades declaradas. Depois de dois anos em sala de aula, assumi o cargo de Orientador de Sala de Leitura, perfeitamente condizente com meu espírito irriquieto e minha formação intelectual. Estive sempre em contato com alunos de diferentes períodos, e participei de momentos muito emocionantes, como o Projeto Aquarela, e a montagem da professora Rosalina para comemoração do Dia da Consciência Negra. Posso dizer que tive uma passagem muito feliz pelo Chiquinha durante os primeiros seis anos em que lá trabalhei, apesar das não poucas divergências de concepção com coordenadores, assistentes e direção.
Acima de tudo isso, o que vou guardar para sempre em meu coração é o carinho com que fui tratado, ano após ano, trabalho após trabalho, pelos alunos da escola. É inapagável a lembrança de que, por três vezes, fui o profissional mais bem votado nos referendos realizados pelo Conselho de Escola, e de que, em todas essas vezes, tive votações de mais de 95% de aprovação entre os alunos. Esse carinho decorre, se não apenas de uma intensa dedicação profissional, também de uma identificação paulatina, uma percepção que se construiu ao longo dos anos sobre as demandas afetivas daquelas crianças. Eu aprendi a cantar e improvisar raps. Aprendi a colecionar figurinhas. Aprendi a organizar debates e jogos entre equipes. Aprendi a fazer imitações. Aprendi a premiar e a censurar com sobriedade. Tudo porque gostava sinceramente do corpo de alunos, e me sentia querido por eles também. Nem considerarei as exceções: três ou quatro casos mais ou menos sérios em oito anos não é nada. A aprovação da comunidade, e em especial dos alunos, e a relação terna e amistosa que construí com eles e com suas famílias é algo que valeu cada lágrima porventura derramada, cada indisposição sazonalmente vivida.
Nos três últimos anos ocorreram várias mudanças estruturais na Rede Municipal de Educação. Não foi difícil perceber que o perfil das gestões ficou mais exigente e intransigente, mais obsessivo com resultados e menos aberto às demandas dos grupos de trabalho. Esse processo parece-me ter sido sentido mais profundamente na Coordenadoria de Santo Amaro, da qual o Chiquinha faz parte: eu sempre tive a sensação muito forte de que o estilo de gestão implementado nessa Coordenadoria fosse mais autoritário que o de outras, porque sempre conversei muito com professores de outras escolas. Além disso, o autoritarismo vazava de forma insuspeita na fala e na tensão constante de nossos coordenadores e de nossa equipe gestora, a ponto de ficar cada vez mais evidente que as demandas dos órgãos centrais, ainda que contraditórias e alienadas das necessidades reais da escola, tinham absoluta preponderância no planejamento das ações em relação aos desesperados gritos de socorro dos professores. Em síntese, compreendia-se que o professor cumpria determinações da gestão, a gestão da Coordenadoria, e ponto. O mais, se não se resolvia, ignorava-se, camuflava-se, protelava-se, ou sei lá o quê.
Enquanto esse processo de fechamento administrativo acontecia, a comunidade escolar do Chiquinha também passava por modificações. O fim do EJA no período noturno contribuiu para tirar da instituição muitos trabalhadores e jovens de grande compromisso com as propostas educacionais estabelecidas. Ao mesmo tempo, as ocupações das Águas Espraiadas foram diminuindo, mas a estrutura de tráfico que lá se alojou permaneceu intocada, em grande parte pela conivência do Poder Público e dos órgãos responsáveis pela segurança social. O abandono e a tolerância do Estado permitiram ao tráfico criar raízes, estabelecer normas, ditar padrões e, em grande medida, construir uma escala de valores aceita e respeitada pela comunidade que ali remanesce. Incapaz de dialogar com esses valores, tanto pelo fato de que os professores não têm esse perfil, quanto pela ausência de um projeto pedagógico capaz de efetivamente trazer para o âmbito escolar a realidade do entorno, o Chiquinha Rodrigues viu a violência crescer de forma desmedida, desequilibrada, desestruturante.
Como se não bastasse tudo isso, o antigo núcleo duro do grupo de professores se dissolveu, e verificou-se uma rotatividade impressionante no quadro docente e mesmo na equipe técnica. Com trocas de direção, coordenação, assistentes, pessoal de apoio, o Chiquinha não conseguiu contruir um grupo coeso, nem manter os profissionais que por lá passaram pelo vínculo da aposta num projeto a longo prazo. Inacreditavelmente, em sete anos, eu me tornara o mais antigo profissional da instituição; todos os outros haviam se aposentado ou pedido remoção.
A esses fatores deve-se somar minha vivência particular desse período. Já fora da Sala de Leitura, achacado e impotente diante desse processo destrutivo, eu ainda quis permanecer na escola em nome dos velhos tempos, renovando propostas de trabalho e aprimorando sistemas de motivação. Foi em vão. As divergências conceituais chegaram ao nível máximo, e as diferenças de compreensão a respeito da função dos gestores e do espaço dado às iniciativas pedagógicas paralelas eram irreconciliáveis. Neste último ano, ninguém soube do projeto temático que fiz aproveitando a efervescência das eleições - e que deu muito certo, aliás. Não houve espaço nem organização para efetivação do projeto temático ligado às características do entorno - e que daria muito certo também. Iniciativas se perderam, talentos foram desperdiçados, ideias foram abortadas, professores e equipe fecharam-se num burocratismo insosso. Até aquilo que eu considerava a melhor das coisas que conseguira fazer com o tipo de público que atendíamos, que era o sistema de pontuação e premiação, pensado, repensado e aprimorado em função de estimular a participação em sala de aula, até essa iniciativa ficou no limbo. Ela não só não recebeu apoio, como esteve em risco, ameaçada por uma compreensão limitada do complexo e abrangente processo de avaliação que implicava.
Após nove anos, era hora de sair, e foi o que fiz. Sem mágoas, sem ressentimentos, sem arrependimento. O prazo de validade expirara, meu tempo se esvaíra. Se ficasse, seria suportar, arrastar, e não sei trabalhar sem estar inteiro. Optei por uma mudança de escola e de Coordenadoria, apostando numa consequente mudança de perspectiva profissional. Deixo votos de felicidade para todos, desejo que a escola fique muito melhor sem mim, e que eu possa também evoluir profissionalmente na EMEF Professor Olavo Pezzotti, ou onde quer que eu vá.
Saio porque quero trabalhar mais e cumprir menos obrigações. Saio sem medo, profissionalmente motivado por minhas crenças, pessoalmente motivado pelas perspectivas profissionais que construí com meus méritos e minha sorte, emocionalmente motivado pela busca do novo, pela nova enformação do velho sonho romântico de educador.
O Chiquinha vai comigo como história, de minha vida e da vida de tantos. Os amigos que fiz continuarão amigos, os alunos serão sempre meus mestres, os obstáculos e as diferenças serão sempre lembrados como oportunidades de crescimento.
Adeus.

Um comentário:

Unknown disse...

Acho que vc não entendeu o Programa Ler e Escrtever...
É uma pena vc ter uma visão tão massacrante do Ensino. Não vejo dessa maneira.