quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Faro

Em meados de outubro deste ano, nossa coordenadora me procurou para falar de uma oferta de bolsas de estudo. Era o Colégio Santa Maria que, todo ano, solicitava às escolas duas indicações de alunos para fazer uma provinha de seleção. Os aprovados teriam direito a cursar gratuitamente o segundo grau na instituição.
Bem sei eu a importância desse tipo de iniciativa para alunos de baixa renda, como são os da nossa escola. É uma perspectiva de vida que se abre para eles, a possibilidade de fazer um segundo grau melhor, mais estruturado, e partir para a faculdade com mais alternativas e bagagem. Sem contar a oportunidade de criar uma nova rede de contatos além daquela que já possuem em sua comunidade.
Por isso, a tarefa que me foi designada não era nada fácil. Sobrou para mim indicar dois alunos (apenas dois) entre três oitavas séries para participar do processo de seleção. Era complicado, porque havia vários alunos que mereciam essa chance e que eu julgava que pudessem se dar bem. Pensei em vários diferentes critérios, várias alternativas, várias possibilidades. Reli o perfil desejado de aluno que o Santa Maria enviara. Matutei, matutei, matutei. Depois de muito raciocinar, cheguei a uns cinco ou seis nomes, que apresentavam habilidades acima da média em áreas diferentes.
(Digressão: essa coisa de "aluno que é bom, é bom em tudo" é bobagem. Ninguém, nem mesmo Leonardo Da Vinci, pode ser bom em tudo. Há alunos que têm facilidade em certo número de disciplinas, que, para sua sorte, são as disciplinas do currículo. Há também aqueles que se adaptaram bem ao processo de avaliação adotado pelas escolas, via de regra baseado em memorização e resolução de exercícios, e isso se reflete nos boletins. Mas as habilidades necessárias para ser "bom" na escola não são as mesmas em outros campos da experiência humana, e até chego à ousadia de afirmar que, se as disciplinas dos currículos fossem diferentes das que vemos, a lista de alunos considerados "bons" mudaria dramaticamente.)
Dentre esses cinco ou seis nomes, eu precisava pinçar dois. E eu não queria ser arbitrário - não gosto de premiar aluno "comportadinho" ou "bajulador". Optei, então, por escarafunchar as listas de pontuação que vinha desenvolvendo desde 2009. Eram pontuações para a disciplina que leciono, História, mas o método adotado permitia que fossem avaliadas, além das produções em sala de aula, resoluções de exercícios, respostas orais a perguntas do professor, atividades extrassala, postura participativa, empenho, organização do caderno, liderança, tolerância, relação com membros de grupos, enfim, uma série de fatores que tornavam mais ampla e abrangente a avaliação de cada um dos alunos.
Voltar os olhos para essas listas era algo arriscado, dado o contexto em que elas haviam sido recebidas pela gestão. O método de avaliação a partir da pontuação oferecia a chance de alunos com grandes dificuldades obterem notas mais altas, que condiriam com seu empenho, sua evolução particular e sua potencialidade de raciocínio recuperada pela consideração da oralidade. Muitos professores não compreendiam ou não aceitavam essa metodologia, e ficavam incomodados com as eventuais discrepâncias de notas que apareciam nos boletins entre História e outras disciplinas. Comprando o discurso desses professores, a coordenação pedagógica chegou questionar publicamente essa discrepância, ameaçando não aceitar as notas de História se não estivessem contemplados "vários instrumentos diferentes de avaliação", num claro indicativo de desconhecimento do que eu efetivamente estava realizando. A verdade é que, ao avaliar o aluno em mais aspectos do que os que eram preconizados pela avaliação tradicional, eu tinha a possibilidade de perceber e documentar mais potencialidades, mais talentos e mais capacidades, para as quais o sistema escolar ainda era surdo e cego. Infelizmente, isso foi compreendido como "dar nota só pelo esforço, sem avaliar o rendimento". Bola pra frente.
Revendo o rol dos alunos premiados por obter melhor pontuação, cheguei a dois, que apareciam em todas as listas, ora em primeiro, ora em segundo, ora em terceiro lugar. Esses mostravam uma constância de rendimento, nos dois anos analisados, que os distinguia dos outros. Mostravam levar a escola, as avaliações e o professor a sério. Era uma pontuação na minha disciplina, bem sei, mas fiz a aposta: escolhi a garota XXXA e o garoto XXXB, porque acreditava que minha forma de avaliar conseguiria identificar garotos com mais potencialidades, mais aptos à aprovação num concurso desse naipe. Levei minhas indicações à coordenação. Outros professores sugeriram outros nomes, e mesmo a coordenação perguntou sobre algumas possibilidades. Fechei questão, eram aqueles. Eu tinha um critério, não aceitaria arbitrariedades guiadas por empatia ou torcida pessoal.
Os alunos XXXA e XXXB fizeram a prova, tiveram bom rendimento em Matemática e Português, mas foram eliminados por causa do Inglês. Lamentei internamente, mas não deixei de parabenizá-los e lembrá-los de que era assim mesmo, essas seleções eram difíceis, e tal.
Por alguns dias, passou uma sombra pela minha cabeça. Eu me perguntava se algum outro aluno não poderia ter conseguido passar. Não que eu me arrependesse da escolha que fizera - pelo contrário, estava bem convicto, porque tinha sido criterioso. O que eu lamentava é que houvesse apenas duas vagas, e eu não pudesse indicar mais ninguém que, porventura, num dia de desempenho acima da média, alcançasse a nota para passar. Quem poderia saber do que esses meninos eram capazes? Será que meus critérios, embora justos, eram limitados, porque avaliavam os alunos de maior mérito escolar, mas não os que ofereciam maiores condições de aprovação nessas seleções? Será que os que me criticavam não teriam uma pontinha de razão, e eu precisaria rever minhas opções?
Deus entendeu que deveria dar uma resposta rapidamente. E, em meados de novembro, surgiu outra seleção, para um colégio que acabava de surgir, bolsa de estudo integral, possibilidade de cursar até a faculdade gratuitamente na mesma instituição. Novamente fiquei incumbido de fazer a lista dos que prestariam as provas. Novamente consultei minhas listas de pontuação. Escolhi quinze alunos, mas três sumiram (eram os últimos dias de aula) e acabei enviando apenas doze, sempre dentro dos critérios que me pautaram anteriormente. Foram para a prova a aluna XXXA, o aluno XXXB, e mais dez. Dessa vez, o leque de indicações se ampliara, e o desempenho surpresa de um aluno em particular poderia aparecer como fator decisivo. Ou seja, mesmo que eu tivesse errado ao adotar aqueles critérios, agora haveria margem de compensação.
Mas nem precisou de margem de compensação. Todos foram fazer as provas. O concurso ocorreu em duas etapas, e os cinquenta aprovados na prova escrita seriam convocados para entrevistas, das quais sairiam os trinta bolsistas. Eu pergunto: quais dos nossos alunos conseguiram ir para a segunda fase? Acertou, atento leitor: XXXA, XXXB; e ainda um terceiro nome, XXXC, que, não por coincidência, seria minha terceira opção para a seleção anterior, do Santa Maria. Os alunos foram para as entrevistas, e XXXB acabou ficando com uma das matrículas. Ele, que era minha primeira opção para o Santa Maria. Ele, que aparecia como o aluno com melhor desempenho nos meus critérios de avaliação. Ele, que era o aluno com a maior pontuação na minha disciplina. Ele, que era minha aposta anterior, sustentada contra critérios de simpatia e "eu gosto mais desse" ou "esse é uma graça".
Se eu tinha alguma migalha de dúvida sobre a correção e a abrangência dos critérios de avaliação que adotara nos últimos dois anos, elas acabavam de se dissipar. Os critérios eram tão bons que foram capazes de indicar COM EXATIDÃO E PRECISÃO os alunos de maior potencial para seleções externas de bolsas de estudo. E em aspectos extracurriculares também, porque a seleção contara com uma entrevista. Ora, os fatos estavam a meu favor. Caíam por terra os argumentos de discrepância, ou de ineficiência de minha proposta de avaliação por pontuação.
Mas saber, ao fim de tudo, que eu estava certo e os que me criticavam, errados, não é o mais importante. Isso é só vaidade, que, como todo ser humano, eu tenho, mas que não leva a nada. O mais importante é saber que minha teimosia, minha insistência em defender esses critérios, mesmo minha arrogância e vaidade, terminaram por oferecer a um aluno a chance de modificar sua vida. Eu fiz diferença na vida de XXXB. É isso que importa. É isso o que torna a nossa profissão a mais importante da sociedade.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O fim de um ciclo

Há nove anos, pedi remoção da EMEF Senador Luis Carlos Prestes para ministrar aulas perto de minha então residência, no Campo Belo. Escolhi a EMEF Dona Chiquinha Rodrigues pela localização. Não sabia nada a respeito da instituição, da linha de gestão, do corpo docente, dos alunos. Quando fazemos uma escolha dessa forma, é evidente que temos em primeiro plano outras coisas que não o magistério em si. Eu estava prestes a me casar, já morando com minha hoje ex-esposa, planejando mudanças na minha carreira (novas perspectivas, se fossem possíveis) e completamente exaurido das demoradas idas e vindas para a Cohab Inácio Monteiro, onde ficava a escola anterior. Tudo o que pensei foi em conseguir uma possibilidade mais conveniente e atrativa de trabalho, num local mais próximo à minha casa, a despeito do imenso carinho que tinha e ainda tenho pelas pessoas do Senador.
Em virtude dessa falta de pré-conceitos de minha parte, o Chiquinha Rodrigues foi uma surpresa em vários aspectos. No lado positivo, tinha um corpo de professores experiente e com muito tempo de casa, e uma direção consciente das demandas locais. No lado negativo, tinha uma comunidade dividida entre oriundos das favelas da avenida Águas Espraiadas e oriundos da classe média do Campo Belo. Logo percebi que teria de ser um profissional muito equilibrado para sobreviver à tensão do ambiente.
Os anos se passaram e houve uma mudança de direção, que passou a ter um perfil mais imperativo. Conquistei o respeito dos colegas aos poucos, como também colecionei algumas antipatias que, graças a Deus, não evoluíram para inimizades declaradas. Depois de dois anos em sala de aula, assumi o cargo de Orientador de Sala de Leitura, perfeitamente condizente com meu espírito irriquieto e minha formação intelectual. Estive sempre em contato com alunos de diferentes períodos, e participei de momentos muito emocionantes, como o Projeto Aquarela, e a montagem da professora Rosalina para comemoração do Dia da Consciência Negra. Posso dizer que tive uma passagem muito feliz pelo Chiquinha durante os primeiros seis anos em que lá trabalhei, apesar das não poucas divergências de concepção com coordenadores, assistentes e direção.
Acima de tudo isso, o que vou guardar para sempre em meu coração é o carinho com que fui tratado, ano após ano, trabalho após trabalho, pelos alunos da escola. É inapagável a lembrança de que, por três vezes, fui o profissional mais bem votado nos referendos realizados pelo Conselho de Escola, e de que, em todas essas vezes, tive votações de mais de 95% de aprovação entre os alunos. Esse carinho decorre, se não apenas de uma intensa dedicação profissional, também de uma identificação paulatina, uma percepção que se construiu ao longo dos anos sobre as demandas afetivas daquelas crianças. Eu aprendi a cantar e improvisar raps. Aprendi a colecionar figurinhas. Aprendi a organizar debates e jogos entre equipes. Aprendi a fazer imitações. Aprendi a premiar e a censurar com sobriedade. Tudo porque gostava sinceramente do corpo de alunos, e me sentia querido por eles também. Nem considerarei as exceções: três ou quatro casos mais ou menos sérios em oito anos não é nada. A aprovação da comunidade, e em especial dos alunos, e a relação terna e amistosa que construí com eles e com suas famílias é algo que valeu cada lágrima porventura derramada, cada indisposição sazonalmente vivida.
Nos três últimos anos ocorreram várias mudanças estruturais na Rede Municipal de Educação. Não foi difícil perceber que o perfil das gestões ficou mais exigente e intransigente, mais obsessivo com resultados e menos aberto às demandas dos grupos de trabalho. Esse processo parece-me ter sido sentido mais profundamente na Coordenadoria de Santo Amaro, da qual o Chiquinha faz parte: eu sempre tive a sensação muito forte de que o estilo de gestão implementado nessa Coordenadoria fosse mais autoritário que o de outras, porque sempre conversei muito com professores de outras escolas. Além disso, o autoritarismo vazava de forma insuspeita na fala e na tensão constante de nossos coordenadores e de nossa equipe gestora, a ponto de ficar cada vez mais evidente que as demandas dos órgãos centrais, ainda que contraditórias e alienadas das necessidades reais da escola, tinham absoluta preponderância no planejamento das ações em relação aos desesperados gritos de socorro dos professores. Em síntese, compreendia-se que o professor cumpria determinações da gestão, a gestão da Coordenadoria, e ponto. O mais, se não se resolvia, ignorava-se, camuflava-se, protelava-se, ou sei lá o quê.
Enquanto esse processo de fechamento administrativo acontecia, a comunidade escolar do Chiquinha também passava por modificações. O fim do EJA no período noturno contribuiu para tirar da instituição muitos trabalhadores e jovens de grande compromisso com as propostas educacionais estabelecidas. Ao mesmo tempo, as ocupações das Águas Espraiadas foram diminuindo, mas a estrutura de tráfico que lá se alojou permaneceu intocada, em grande parte pela conivência do Poder Público e dos órgãos responsáveis pela segurança social. O abandono e a tolerância do Estado permitiram ao tráfico criar raízes, estabelecer normas, ditar padrões e, em grande medida, construir uma escala de valores aceita e respeitada pela comunidade que ali remanesce. Incapaz de dialogar com esses valores, tanto pelo fato de que os professores não têm esse perfil, quanto pela ausência de um projeto pedagógico capaz de efetivamente trazer para o âmbito escolar a realidade do entorno, o Chiquinha Rodrigues viu a violência crescer de forma desmedida, desequilibrada, desestruturante.
Como se não bastasse tudo isso, o antigo núcleo duro do grupo de professores se dissolveu, e verificou-se uma rotatividade impressionante no quadro docente e mesmo na equipe técnica. Com trocas de direção, coordenação, assistentes, pessoal de apoio, o Chiquinha não conseguiu contruir um grupo coeso, nem manter os profissionais que por lá passaram pelo vínculo da aposta num projeto a longo prazo. Inacreditavelmente, em sete anos, eu me tornara o mais antigo profissional da instituição; todos os outros haviam se aposentado ou pedido remoção.
A esses fatores deve-se somar minha vivência particular desse período. Já fora da Sala de Leitura, achacado e impotente diante desse processo destrutivo, eu ainda quis permanecer na escola em nome dos velhos tempos, renovando propostas de trabalho e aprimorando sistemas de motivação. Foi em vão. As divergências conceituais chegaram ao nível máximo, e as diferenças de compreensão a respeito da função dos gestores e do espaço dado às iniciativas pedagógicas paralelas eram irreconciliáveis. Neste último ano, ninguém soube do projeto temático que fiz aproveitando a efervescência das eleições - e que deu muito certo, aliás. Não houve espaço nem organização para efetivação do projeto temático ligado às características do entorno - e que daria muito certo também. Iniciativas se perderam, talentos foram desperdiçados, ideias foram abortadas, professores e equipe fecharam-se num burocratismo insosso. Até aquilo que eu considerava a melhor das coisas que conseguira fazer com o tipo de público que atendíamos, que era o sistema de pontuação e premiação, pensado, repensado e aprimorado em função de estimular a participação em sala de aula, até essa iniciativa ficou no limbo. Ela não só não recebeu apoio, como esteve em risco, ameaçada por uma compreensão limitada do complexo e abrangente processo de avaliação que implicava.
Após nove anos, era hora de sair, e foi o que fiz. Sem mágoas, sem ressentimentos, sem arrependimento. O prazo de validade expirara, meu tempo se esvaíra. Se ficasse, seria suportar, arrastar, e não sei trabalhar sem estar inteiro. Optei por uma mudança de escola e de Coordenadoria, apostando numa consequente mudança de perspectiva profissional. Deixo votos de felicidade para todos, desejo que a escola fique muito melhor sem mim, e que eu possa também evoluir profissionalmente na EMEF Professor Olavo Pezzotti, ou onde quer que eu vá.
Saio porque quero trabalhar mais e cumprir menos obrigações. Saio sem medo, profissionalmente motivado por minhas crenças, pessoalmente motivado pelas perspectivas profissionais que construí com meus méritos e minha sorte, emocionalmente motivado pela busca do novo, pela nova enformação do velho sonho romântico de educador.
O Chiquinha vai comigo como história, de minha vida e da vida de tantos. Os amigos que fiz continuarão amigos, os alunos serão sempre meus mestres, os obstáculos e as diferenças serão sempre lembrados como oportunidades de crescimento.
Adeus.