terça-feira, 20 de julho de 2010

Cena que testemunhei - 2

- Professor, vai ter eleição para coordenador pedagógico na reunião do Conselho de Escola.
- Sim.
- Bom, essa candidata que tem aí... porque só tem uma...
- Sei, a XJT2343857.
- Então, a gente não tem muita confiança nela...
- Bom, é simples. É uma eleição. Você vai lá na reunião do Conselho e diz isso, para ela, para todos: nós não confiamos em você, por isso, por isso, por isso e tal. E diz: por isso, não voto nela. E tente convencer os outros.
- Mas, sabe o que é, professor? Você é presidente do Conselho. Não dá para dar um jeito?
- Jeito de quê?
- De ela não se eleger.
- O que eu posso fazer é garantir o espaço para quem é a favor e para quem é contra.
- Então você não vai fazer nada?
- Vou sim, vou conduzir o processo legitimamente.
- Mas, e se a gente descobrir que ela não tem algum documento, ou alguma qualificação necessária?
- Isso deve ser apresentado na reunião. Será avaliado.
- Mas, então, como a gente faz?
- Venha à reunião e apresente suas ideias. Colocaremos em votação.

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A reunião foi realizada sem a presença da pessoa que propôs o “jeito”.
Houve argumentação de que o fórum era pequeno. O presidente do Conselho disse que o regimento previa, após determinado tempo, votações com qualquer quorum. E que só o Conselho poderia se autodissolver. Colocada em votação, a proposta foi rejeitada, e o Conselho não se autodissolveu. Houve argumentação de que a moça não tinha os requisitos solicitados no edital. A moça foi buscar o edital. O presidente do Conselho conferiu. Ela os possuía, todos.
Procedeu-se a votação.
A moça venceu com larga maioria, contra a vontade da direção e dos representantes do pequeno grupo de professores que tramou melar a eleição. Ou seja: a escola a queria, e um pequeno grupo quase a prejudicou.
Mas o presidente do Conselho tinha, e tem, um mínimo de decência.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Cena que testemunhei - 1

- Professor, o senhor pode verificar o caso de uma aluna da oitava série?
- Que aluna?
- A XYZ1234. O senhor poderia rever as notas que foram atibuídas para ela?
- Perfeitamente

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- Aí estão. Ela ficou com NS porque não entregou o trabalho.
- Então, professor, o caso é que ela diz que entregou o trabalho para o senhor e o senhor deu nota baixa para ela.
- Não é verdade, ela não entregou o trabalho.
- Não é isso que a aluna está dizendo.
- Mas é isso que eu estou dizendo: ela não entregou o trabalho. Não posso rever a nota dela porque não há trabalho para rever.
- Mas professor, não seria possível rever essa situação?
- Não há o que rever.
- O senhor não poderia resolver esse problema de outra forma?
- De que forma?
- Atribuindo uma nota para a aluna.
- Como, se ela não entregou o trabalho?
- Mas ela disse que entregou.
- Tudo bem. Diga a ela que EU estou dizendo que ela não entregou e EU estou dizendo que não reverei a nota.
- Mas professor..., a menina ligou lá na coordenadoria reclamando.
- Ela pode reclamar do que quiser onde quiser. Ela não entregou o trabalho.
- Mas, professor, a coordenadoria ligou aqui e mandou resolver o caso. Não daria para resolvermos entre nós, para evitar maiores problemas?
- Resolver o quê, meu Deus do céu!
- Ela pode entrar com processo!
- Que entre!
- Mas, professor...
- Faça o seguinte: instrua a menina para entrar com processo.
- Professor, é justamente isso que queremos evitar.
- Eu não quero evitar nada. Faça isso: instrua a menina a entrar com processo contra mim.
- Mas a coisa pode ficar feia.
- Apenas instrua. Eu mostrarei que ela não fez o trabalho, e pronto. Faça isso. E fim de papo.

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A menina de fato não havia feito o trabalho, e nunca entrou com processo.
O caso foi encerrado como começou: com a mesma nota atribuída.

O professor saiu removido da nossa escola. Deixo aqui minha singela homenagem à força de seu caráter, e meu repúdio a esse estilo covarde de gestão, que tem medo de processo de aluno mas não de propor corromper a integridade ética do professor.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Magistério atlético

Basta ter uma dorzinha, um incomodozinho, uma indisposição física, que já percebo grande diferença nos resultados em sala de aula. Os alunos não me ouvem, eles me seguem. Quando falo de um assunto qualquer, preciso andar pela classe, fazer gestos amplos, colocar-me ao lado de meninos que estejam desatentos, cruzar meu olhar com outros olhares. Preciso ganhar o espaço. Preciso passear entre as carteiras, preciso tocar ombros e cotovelos com delicadeza afetuosa. Preciso dinamizar minha presença em sala.
Todo esse processo de diálogo e negociação geográfica serve para conseguir efetuar minhas programações de atividades com o máximo de aproveitamento possível por parte da maior quantidade de alunos que eu conseguir trazer para esse jogo. Se eu quisesse apenas dar aula para quem "quer aprender", não precisaria fazer nada de tão extenuante; ficaria simplesmente sentado à minha mesa, chamando cadernos à correção. Ou gritaria agressivamente para manter o silêncio da explicação que os alunos desejam não ouvir.
De vez em quando, confesso, não aguento tanta movimentação. Ninguém tem tanto pique nem tanta garganta para se impor dessa forma seis aulas por dia. Por isso, devo calcular mentalmente as aulas e os momentos em que farei a intervenção falada, em que proporei atividades em grupo, em que guiarei a classe por um ou outro caminho, em que farei intervenções na disposição das carteiras ou solicitarei ajuda para reorganizar e limpar a sala. É uma disputa, e posso perder. Portanto, torna-se estratégico vencer quando o essencial da aula está em jogo (para mim: quando se discutem os conceitos centrais do conteúdo, e quando há questões éticas a serem resolvidas).
Depois de dez anos trabalhando com o Ensino Fundamental dentro dessa concepção antiautoritária, centrada na capacidade de chamar a atenção e dominar psicologicamente a classe, compreendo perfeitamente porque as pessoas encontram-se desgastadas no fim de suas carreiras. O professor que não grita e não ameaça tem de ser magnético, e esse magnetismo, para o aluno de hoje, é primeiramente físico, para depois ser discursivo. Mas tanto a voz quanto o corpo têm seus limites, e sinceramente temo que não me seja possível contar com a mesma disposição e inteireza corporal daqui a dez anos. Tenho sentido que as aulas de História que ministro exigem mais disposição física que empenho mental ou profundidade intelectual, e isso incomoda, pois não creio ser talhado para esse tipo de atuação. Acredito, entretanto, que as coisas poderiam ser diferentes, com classes menores, acompanhamento de outros professores nas salas, priorização de trabalhos interdisciplinares e em grupo, e autonomia de fato na elaboração e aplicação de regimentos disciplinares. Por acreditar nisso tudo, continuo levando o barco, já que sei que as mudanças são lentas. Mas hoje tenho 36, e não posso pensar que estarei com o mesmo vigor físico aos 56 - tomara que sim, mas não é algo que se possa afirmar com certeza! Aprendi uma coisa muito importante este ano: que, quando alguém não respeita os próprios limites, o corpo cobra com juros, e as consequências podem ser irreversíveis.
Deveríamos nos perguntar, enquanto professores, quais são nossos limites, e porque aceitamos que sejam invadidos. Essa questão exige uma resposta coletiva, creio eu. Não fui capaz de encontrar uma resposta particular, só minha, que não envolvesse a possibilidade de desistir ou fazer "operação tartaruga". E considero isso inadmissível para mim. Ensinar é preciso, sempre.
Por isso, tenho me preocupado ultimamente em estudar as condições de saúde do professor, e travar contato com pessoas que estejam mais bem informadas a respeito. A questão não é saber até onde cada um suporta lecionar sem síndrome da desistência, porque se eu saio dos quadros da educação ou outra pessoa sai, o entrave continua o mesmo para quem entra no lugar. A questão é saber como tornar o trabalho mais leve, mais produtivo, mais recompensador, mais humanamente realizável para quem o faz já há muito tempo, e fará ainda por anos a fio. É um problema e tanto, e sei que não estou sozinho nessa inquietação. Tenho esperança de que mais pessoas despertem para isso e tragam ideias produtivas para que possamos revigorar e reanimar os professores no decorrer da carreira. Caso contrário, careceremos em breve de mestres para guiar as crianças, ou teremos de contratar atletas genuínos para a função.