sábado, 20 de junho de 2009

Perspectivas

Publicaram meu salário na página da Prefeitura de São Paulo. Quem teve a curiosidade de acessar - confesso que nem eu mesmo tive - deve ter pensado que ganho mais do que realmente ganho, porque o que foi publicado foi o bruto, e não o líquido.
Eu concordo com necessidade de divulgar com transparência as contas públicas, mas achei meio desastrada essa iniciativa de publicar salários de cada pessoa individualmente. Isso realmente acaba expondo o funcionário, e é desnecessário: se você publica dados, por exemplo, sobre a folha de pagamento de determinada instituição, você continua sendo transparente, sem expor ninguém em particular.
Acho de mau gosto colocar meus rendimentos aqui, porque ninguém tem nada a ver com isso. Os que ganham mais que eu entenderiam como lamento, os que ganham menos entenderiam como esnobação. Tenho consciência de que ganho mais que a média da população brasileira, e, ao mesmo tempo, posso afirmar que ganho pouco em relação à importância estratégica de minha profissão para o desenvolvimento do país.
Quanto ao assunto salários, bato sempre na mesma tecla a esse respeito: números não são tudo, nem dizem tudo. Quero exemplificar com uma outra lista da qual fiz parte, essa há umas três semanas atrás. Trata-se da lista de aprovados no concurso do Instituto Federal de Educação, instituição na qual estudei quando ainda era Escola Técnica Federal. Passei em quinto lugar, o que me encheu de orgulho e satisfação, visto serem muito bons os candidatos.
Na verdade, eu não sabia minha colocação até o rapaz do RH do Instituto me telefonar perguntando se eu teria disponibilidade para início imediato. Foi tentador, mas tive de declinar da oferta. Os horários da faculdade e da Prefeitura chocavam-se com o horário oferecido, e eu seria obrigado a abandonar dois cargos, o que ainda não posso fazer. Ainda assim, a perspectiva de trabalhar numa instituição tão próxima de minha história de vida me deixou em dúvida, e eu até titubeei antes de recusar. Entretanto, pesou, mais que salário (menor que o da Prefeitura e da faculdade), mais que horários (incompatíveis), mais que tudo, um detalhe crucial: o caráter provisório da contratação. O contrato previa que eu só poderia trabalhar dois anos, findos os quais teria de ficar no mínimo outros dois sem trabalhar lá. Isso, para mim, foi o que fez pender a balança.
E, pelo jeito, foi o que pesou para todo mundo. Quando fui conferir, copiar e colar a lista de aprovados que saiu no Diário Oficial da União, vi que havia quatro pessoas na minha frente. Obviamente, mais qualificadas que eu nos critérios estabelecidos. Fiquei sondando por que razão nenhuma das quatro teria preenchido a vaga para a qual concorríamos. Salário? Incompatibilidade de horários? Plano de carreira? Outras razões?
O Instituto Federal de Educação de São Paulo é uma das instituições mais respeitadas e admiradas que conheço. Não são poucas as pessoas que fariam de tudo para trabalhar lá, ou fariam opção por ele mesmo tendo propostas economicamente mais atraentes. Não sei qual seria a razão do não preenchimento da vaga, mas imagino que este possa ser um exemplo de como fatores extrassalariais, no caso a perspectiva profissional a longo prazo, afastam os melhores profissionais dos postos que eles tanto precisariam ocupar. Como querer que um profissional, mestre, ou doutor, ou com gabarito de ter lecionado em vários lugares, e talvez com perspectiva de trabalhar em vários outros, aceite um tipo de contrato escrito de forma a evitar a caracterização de vínculo entre ele e a instituição em que trabalhará por, no mínimo, dois anos? É evidente que, neste caso, a seleção não conseguirá o melhor quadro.
Ouvi dizer que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está pensando em empregar professores com contratos desse tipo. Vai acontecer a mesma coisa, e depois vão ficar falando mal da gente. Se as perspectivas de trabalho não forem atraentes, as pessoas procurarão outras vagas, até fora da educação. Isso é óbvio, é a lei do mercado, que tanto é invocada para justificar cortes orçamentários e pauperizar a educação, mas que tantas vezes é esquecida também, quando convém.
Não considero ideal, mas até entendo a necessidade de contratos assim para preencher vagas ociosas com certa urgência em certas instituições. Mas adotar isso como modelo de contratação é muito perigoso. Eu defendo que a educação traga para seus quadros os melhores e mais gabaritados profissionais. Nesse sentido, é preciso rever valores, sim, e construir um sistema que permita ao professor programar-se para um trabalho de permanência na instituição e obtenção de resultados e excelência a longo prazo.
Podem publicar meu salário sem autorização, podem compará-lo com o que quiserem, podem dizer que ganho bem e choro de barriga cheia, que professor é privilegiado, etc. Quem entende um pouco de educação sabe quais são as consequências desse tipo de discurso desqualificador, e não leva isso a sério. Por outro lado, se houver maior confiança, maior investimento, maior aposta no professor, com certeza haverá melhores resultados. Na educação, só é possível fazer mais com mais. Experiência própria.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Valores

Pediram-me uns alunos do curso de Pedagogia que eu corrigisse seu TCC. Atolado de atribuições, adiei a leitura e correção do trabalho até uma data confortável, na qual pudesse aplicar-me com a integridade devida à leitura. Calculei que, finalizando meus apontamentos numa antecedência de até dez dias da entrega, daria tempo para que verificassem as alterações necessárias.

Faltavam justamente dez dias para a entrega quando encontrei um dos alunos. Cobrou-me do trabalho. Respondi que já o estava encaminhando, com as devidas observações, e que no dia seguinte estaria pronto. Surpreendi-me com a afirmação de que não seria mais preciso.
- Por quê? Vocês não têm de entregar daqui a dez dias?
- Ah, sim. Mas tem feriado esta semana.
- E vocês não vão mexer no trabalho no feriado?
- Não, né!

E não sei descrever esse último "não, né!". Parafraseando, seria algo como "é óbvio que não, são quatro dias de feriado e vamos viajar e ninguém vai ser tonto de ler nem escrever nada do TCC", dito com um sorriso que mofava de minha "inocência", mas sincero, e algo cínico, se é que isso é possível.
Findo o diálogo, passou um filme na minha cabeça. Meus dias de estudante. Minhas leituras feitas nos fins de semana. Quantas reuniões de grupo. Trabalhos exaustivamente corrigidos até quase minutos antes da entrega. Meus dias de mestrando. As últimas semanas antes do depósito da dissertação. Minha leitura minuciosa e desesperada de cada parágrafo três vezes antes da impressão definitiva. Os dois dias sem dormir antes da defesa. Tudo.
Fiquei me perguntando se eu levo as coisas a sério demais, ou se aqueles alunos levavam as coisas a sério de menos. Conversei com algumas pessoas, expliquei a cena, expus meu pasmo. A coisa mais sensata que ouvi a respeito foi: a importância que você dá para certas coisas é diferente, seus valores são diferentes, você não pode querer que as outras pessoas tenham os mesmos valores que você.

Isso é sensato como conselho, mas ainda não me conformo. Na era da Internet, do MSN, do celular, das mensagens de texto, e de tudo o mais, cinco pessoas (já acho isso um absurdo, TCC grupal), a dez dias da entrega do trabalho mais importante de seu curso de graduação (trabalho com graves problemas de redação, diga-se de passagem) simplesmente não vão se falar, não vão se reunir, não vão fazer um mínimo esforço adicional para melhorar seu texto. O que haverá de tão mais importante que a entrega desse TCC para esses alunos? Gostaria de saber. Porque se é tão mais importante assim, eu bobeei em minha vida de estudante inteira e provavelmente continuo bobeando em minha vida de professor. Preciso entender essa escala de valores, antes que passe por situação similar e fique com a cara de besta que fiquei.