sábado, 31 de dezembro de 2016

Educação envolve muita gente



Olhando de forma irrefletida e superficial nosso trabalho e nossos contratos, somos remunerados como professores para realizar atividades de ensino dentro da especialidade que nossa formação contempla (não a nossa especialidade, porque ela não constitui, necessariamente, uma disciplina do currículo). Pensando dessa forma, caberia a cada um de nós encontrar uma maneira de didatizar conteúdos considerados elementares ou basilares, e encaixar essa solução dentro do universo chamado escola, com suas chamadas, salas de aula, horários de entrada, intervalo e saída etc. Assim, teríamos vários trabalhos em paralelo dentro de uma instituição, cada um deles voltado para uma área do conhecimento: matemática, educação física, artes, português, cada disciplina ministrada dentro da liberdade de cátedra do professor que dela se encarrega.
Embora essa descrição esteja servindo de contraexemplo introdutório, muitas escolas acabam trabalhando dessa forma, por inúmeras razões que não seria possível esgotar num texto curto. Essa segmentação do currículo e da atuação profissional é defendida por muitos docentes, mesmo às vezes de forma inconsciente, porque ela aparentemente cria um espaço de poder e controle sobre aquele campo do saber e sobre as práticas institucionais exigidas no magistério. Frequentemente percebemos colegas que não aceitam dialogar sobre suas práticas educativas e de interação com os alunos, por considerarem que são consolidadas e adequadas dentro do que compreendem que se configure como contribuição formativa da disciplina que ministram.
Acredito que a palavra "formativa" seja a chave da questão. O trabalho do docente dentro de uma escola é um trabalho de formação, seja qual for o caminho formativo escolhido ou a tendência pedagógica subjacente. Se trabalhamos em uma escola religiosa, sustentada por entidades religiosas, não há como negar ou abstrair de nosso trabalho todo um corpo de valores que se associa àquela religião. Isso não significa assimilar acriticamente, mas sim entender quais são os princípios e parâmetros que embasam o tipo de formação pretendida pela instituição. 
Ora, se o trabalho do docente dentro de uma instituição de ensino é um trabalho de formação, e se essa formação envolve, obrigatoriamente, um currículo, uma seleção de conteúdos e uma forma de organizar e administrar o ensino e as relações entre os participantes desse processo, o isolamento do professor dentro de sua "casinha" de especialidade não é adequado. Se lidamos com os mesmos alunos, a mesma organização administrativa e os mesmos recursos enquanto grupo de professores, precisamos estabelecer um trabalho verdadeiramente coletivo para que exista, de fato, uma formação coerente com os princípios que sustentamos. Evidentemente, trata-se de pensar em perspectivas inter, multi e transdisciplinares, mas acredito que a formação envolva mais coisas além das propostas de trabalhos com os alunos e com as disciplinas. 
Acredito que seja preciso, para cada professor em sua disciplina e em sua área do conhecimento, compreender, respeitar e valorizar as contribuições dos docentes em outras áreas do conhecimento, considerando as diferenças de perspectiva e visão de mundo. Obviamente, o diálogo aberto e a reflexão em grupo são as pontes mais sólidas para construir a coesão de atuação, inevitável para qualquer trabalho que se suponha coletivo. Torna-se difícil, no entanto, empreender esse diálogo que já tem caráter naturalmente conflitivo quando profissionais de ensino colocam-se de forma arrogante, menosprezando outras áreas de conhecimento e diminuindo a importância de outros trabalhos dentro do contexto mais amplo de formação. Como estabelecer um acordo entre o professor de Português e o de Educação Física se o primeiro considerar o trabalho do segundo como mera diversão? Como construir um trabalho sério e comprometido de ensino de Inglês ou Espanhol se os professores de Matemática ou Ciências considerarem seus conteúdos muito mais relevantes para a formação do estudante? Como equilibrar as coerções institucionais e o cumprimento de regras se os docentes fizerem questão de estabelecer graus hierárquicos não oficiais de poder sobre os colegas e os alunos?
Um trabalho de formação do estudante deve envolver uma contínua formação do professor, com debate e reflexão permanente, amplo, coletivo e aberto sobre suas práticas. Se não estamos preparados para trabalhar em grupo, não podemos tomar parte de forma íntegra em nenhum processo de formação educacional. Aceitar questionamentos e crescer com eles, sem prejuízo da percepção de que estamos todos no mesmo barco, parece-me ser imprescindível.
Como fazer isso? Não há receitas. Mas há talvez algumas percepções de possibilidades ligadas à experiência que tivemos com grupos de professores. 
Creio que seja necessário garantir espaços amplos de convivência dos docentes de várias formações. Aperto de mão, olho no olho, troca de ideias e impressões, isso faz muita diferença e ajuda a não criarmos uma projeção irreal do colega. Creio que seja necessário, também, valorizar cada uma das formações acadêmicas, humanas e de valores que são representadas pelos docentes em suas formas e estilos de educar. Entender como pensa o colega, por que ele pensa dessa forma e como concatenar suas ideias com as de outros colegas traz benefícios enormes à visão de formação com que se vai trabalhar. Por fim, acredito que seja importante, embora um pouco utópico nesses tempos de segmentação e departamentalização, estabelecer processos de formação entre os próprios docentes. Por exemplo, professor de Português poder aprender ou reaprender ou aprimorar seus conhecimentos de Ciências, um professor de Artes estabelecer projetos de ampliação de repertório de cinema ou artes plásticas para seus colegas, um professor de Matemática discutir questões de estatística com professores de Educação Física, um professor de Física trazer contribuições de seu mestrado ou doutorado para os colegas de áreas técnicas e tecnológicas: mais ou menos como reservar algumas aulas para os outros professores, para que possam ter uma visão mais abrangente do que está sendo realizado na escola.
Isso já seria um passo muito avançado. Se pudermos domar a arrogância, criar condições mínimas de respeito entre nossos pares e promover a consciência da importância de cada docente em um trabalho coletivo, já estamos com meio caminho andado.