Acaba o ano de 2011, com um saldo imensamente positivo e uma série de descobertas no campo profissional.
Desde meados de 2009, vinha crescendo em meu coração uma certeza, maior que todas as outras convicções que sempre carreguei na minha trajetória: eu vinha percebendo a necessidade de mudar.
Trabalhar com crianças e adolescentes é uma das coisas mais extraordinárias que um ser humano pode fazer. Fazer parte da formação de outros seres humanos é algo que não tem nome, não tem preço, não tem paralelo. Desde sempre, em minha profissão, quando eu colocava a cabeça no travesseiro, sabia que poderia dormir sossegado, porque estava realizando, todos os dias, um pedaço do que eu considero a verdadeira transformação do mundo.
Os anos se passaram, e minha disposição física e psicológica começou a cair, por vários motivos. Não seria sensato tentar enumerá-los todos, mas algumas coisas contribuíram decisivamente. Uma delas foi o começo da carreira no ensino superior particular, onde me senti muito mais cobrado intelectualmente que fisicamente, e me senti chamado novamente ao desenvolvimento intelectual. Essa oportunidade veio em função dos problemas econômicos pós-separação, e não exatamente de uma busca deliberada.
Depois, com dois empregos, minha disponibilidade caiu para amigos, hobbies, projetos pessoais e vida particular, mas o dinheiro era necessário. Foram cinco anos nessa toada, até que o corpo começou a avisar que havia problemas.
Acredito que boa parte do que sentimos fisicamente começa no nosso espírito. Nossas disposições mentais vão mudando, nossa tolerância com certas coisas vai diminuindo, e começamos a ficar chateados de ter de enfrentar os mesmos desafios que deveriam estar anteriormente superados. Não me refiro aos alunos, que são sempre desafios novos e gratificantes. Refiro-me à estrutura de trabalho, que vai criando cada vez mais empecilhos à verdadeira batalha, que é a da educação de qualidade. Eu vinha me decepcionando cada dia mais com os rumos administrativos e pedagógicos da educação fundamental.
Durante muito tempo, estive em Sala de Leitura, um trabalho que me permitia inovar, criar, determinar dinâmicas, e até ter um espaço meu para estudos e aprofundamentos, conforme o caso. A saída da Sala de Leitura, por razões burocráticas, jogou-me novamente no turbulento mundo das salas de aula sem recursos, das tecnocracias disciplinares, das relações estranhas em salas de professores. Passaram-se dois anos, com uma produtiva experiência em turmas de EJA para amenizá-los; mas, ao final deles, eu estava completamente esgotado.
Então, comecei a entender que era hora de fazer outra coisa, de procurar algo com o que tivesse condições de lidar. O barulho, a agitação física, o assédio moral, o ambiente carregado, as agressões naturalizadas, o autoritarismo das relações de trabalho, tudo isso estava me fazendo muito mal. Eu começara a reagir, a ser irônico, destrutivo, irritadiço. Eu começara a me defender com minha arrogância e minha dedicação insana ao trabalho. Eu começara a produzir dentro de mim sementes amargas. Resultado: cálculos renais grandes, que conduziram a duas penosas cirurgias e à quase improdutividade do primeiro semestre de 2010.
Já entendendo, antes mesmo das complicações físicas, que as coisas não poderiam continuar daquele jeito - ou seja, que eu estava, por incrível que pareça, infeliz com o que fazia -, comecei a investir na ideia de sair da condição de professor da Prefeitura de São Paulo. A princípio, pensei em ser coordenador, ou pelo menos abrir essa possibilidade. Entrei num curso de Pedagogia complementar, que acabaria não concluindo, pois atrasei os estágios em função das complicações físicas e não consegui rearticular tempo para fazê-los no prazo. Prestei concurso na área de coordenação, tendo sido aprovado. Paralelamente, fui prestando alguns outros concursos, sendo surpreendentemente aprovado em boa parte deles, a despeito do pouco tempo que tinha para estudar. Mas eram vagas complicadas: ou faziam com que eu permanecesse atrelado à Prefeitura, ou ofereciam cargos temporários, em função dos quais em não poderia jamais abrir mão do meu, que era efetivo.
Foi nesse contexto que prestei o concurso do Instituto Federal de Educação de São Paulo. Eu não achava que tivesse muita chance. Na verdade, quando eu prestei, eu nem sabia direito como funcionava a seleção. Tanto que, quando fiquei em segundo na primeira fase, não sabia quais seriam as etapas posteriores. Mas minha boa colocação dera-me o alento necessário para investir. Fui atrás, estudei, preparei minhas aulas para a segunda fase e, pela graça de Deus, logrei ser aprovado em segundo lugar.
O que considero mais extraordinário de ter ido tão longe é que meu objetivo não era, a princípio, galgar a carreira acadêmica na esfera pública. O que eu queria mesmo era procurar uma alternativa, fosse qual fosse, para manter a estabilidade de emprego e sair do tipo de trabalho que estava me fazendo mal. Eu não me pensava, naquele momento, como um professor universitário de uma Federal, sonho óbvio das pessoas em minha área. Eu queria condições de trabalhar sem prejuízos à minha saúde. E, ademais, eu tinha apenas o título de mestre, o que seria insuficiente para a maioria das vagas que se abriam.
Mas aconteceu, e veio em excelente momento. No meio do ano, saí da Prefeitura e - lamentavelmente, nesse caso - também da faculdade particular em que lecionava, e assumi o cargo de professor de português numa instituição que já conhecia, que fazia parte da minha formação e na qual eu podia me sentir verdadeiramente em casa, seguro.
Então, vieram os seis meses finais de 2011. Que são sem dúvida os de maior importância para mim, visto que os seis primeiros meses desse ano estiveram completamente atrelados à expectativa da convocação para o Instituto Federal. Posso dizer até que isso fez com que não fossem tão produtivos quanto deveriam, mas não me arrependo disso, e considero até natural, em vista do que se passava em meu coração.
E o segundo semestre de 2011 foi de intenso aprendizado. Em primeiro lugar, era preciso aprender a dar aula em duplas, coisa que até então nunca tinha feito, ou nunca tinha feito naquele formato. Era preciso, portanto, desenvolver certa inteligência política que nunca foi muito meu forte, e certa capacidade de lidar com problemas que não eram meus, o que costumava me aborrecer em outros tempos. Acredito que esse aprendizado foi vitorioso. Consegui levar bem as duplas, consegui realizar meu trabalho com relativa harmonia, na maior parte dos casos. Em certos momentos, percebi que poderia estar mais vulnerável do que pensava. Eu tinha de entender que estava trabalhando com um grupo muito qualificado, e que, nessas condições, era natural que as pessoas competissem por espaços e convicções pedagógicas de uma forma diferente daquela que até então havia vivenciado. Eu precisava aprender a me colocar, e ser mais cuidadoso; isso era uma coisa toda minha. À parte isso, nada tenho a reclamar dos meus colegas, nem de meus parceiros. Tudo correu como o programado em todas as disciplinas.
Em segundo lugar, era preciso aprender como funciona o Instituto, e quais são seus meandros e caminhos. O que me deixou bastante assustado, no começo, foi perceber que era uma instituição em que, a despeito dos objetivos educacionais, os funcionários administrativos tinham muito mais poder político, institucional e de diálogo que os professores. Isso era uma novidade desagradável para mim, acostumado a considerar meu trabalho como o centro das preocupações de qualquer lugar onde o exercesse. Outra coisa que percebi foi a existência de certo distanciamento de perspectivas entre os professores e os ocupantes de outros cargos, o que é característica de organizações fortemente burocratizadas e hierarquizadas. Mas o que realmente foi complicado de entender - e confesso que ainda não entendi - foi que, dentro dessa estrutura fortemente burocratizada e hierarquizada de decisões dentro do Instituto, a burocracia não era de fato eficiente. Porque é fácil lidar com os trâmites burocráticos quando eles resultam em ações claras e direcionamentos efetivos. Mas, acredite se quiser, os trâmites eram excessivos e paradoxalmente ineficazes para solucionar nossos problemas. Mas aos poucos fui me habituando e, sobretudo, entendendo que meu trabalho não seria afetado por isso, se eu não permitisse.
Em terceiro lugar, o maior e mais útil e mais perfeito e delicioso dos aprendizados. Eu tinha de lidar com o público estudantil mais qualificado que já conhecera. O que faz a diferença no Instituto em relação a qualquer outro ambiente de trabalho é o aluno, disso não tenho a menor dúvida. Nunca vira alunos tão bons, tão interessados, tão participativos, e tão bem preparados. Quando isso acontece, eu já sei o que fazer: trabalhar muito, muito, muito. Estudar, preparar aulas, trazer conteúdos, atender a quem eu puder atender, conversar sobre interesses da classe. Não, eu ainda não logrei atingir o melhor do que posso fazer. Mas senti que evoluí, porque fui exigido exatamente nos pontos onde posso render mais. Creio que só encontrei tamanho grau de satisfação quando lecionava em minhas turmas de Letras da faculdade. E sonho com a abertura, no Instituto, de uma Licenciatura em Letras, na qual eu me veria duplamente realizado.
Enfim, 2012 vem com muitas promessas, e eu creio que conseguirei alcançar resultados ainda mais expressivos do que consegui. Saio de 2011 fortalecido, prestigiado, vencedor da luta contra as condições em que vivi nos últimos anos, e pronto para edificar uma série de conquistas relacionadas àquilo que verdadeiramente amo: a língua, a arte, a música, a literatura, a educação, o diálogo respeitoso, a democracia, o conhecimento, o ser humano.