Hoje, numa reunião entre amigos, ouvi uma professora dizer que dava 65 aulas por semana. Fiquei chocado com essa carga de trabalho, mas parei um pouco para pensar e vi que, entre horas-aula e horas-atividade na escola, eu trabalho o equivalente a 56 aulas, das quais 45 são em sala de aula, 8 em reuniões de trabalho e 3 em sala dos professores, para planejamento. E vi também que eu não me admirara, até a fala dessa professora, da minha própria carga de trabalho. Provavelmente por pura falta de tempo para pensar a respeito.
Nos últimos meses constatei que a única forma de garantir um padrão de vida razoavelmente decente para um professor é desdobrar-se para atuar em mais de uma escola, ou cargo, ou trabalho. Eu já devia saber disso, mas como, nos anos anteriores, sempre dividi o tempo do estudo (faculdade e depois mestrado) com o tempo do magistério, julgava que a sobrecarga acabaria tão logo eu pudesse dedicar-me só aos meus empregos. Mas a experiência que venho tendo neste início de 2009 mostrou com muita clareza que essa sobrecarga é condição quase obrigatória da profissão.
Praticamente não conheço professores que tenham apenas um cargo, ou que não tenham outro emprego. A explicação é simples e clara como água: professores têm baixa remuneração. Os Ioschpes da vida terão sempre quadros e estatísticas mostrando que estamos entre os mais bem remunerados da sociedade, que ganhamos mais que vários setores profissionais, que aumentar nosso salário não melhora o ensino, etc. Mas a verdade é que cheguei até a enfrentar uma crise de identidade profissional este ano, porque não reconhecia em mim o mesmo professor de outrora. Com menos tempo para preparar aulas, ler e me atualizar, e minado pelo cansaço de uma jornada que envolve, além das horas de trabalho, pelo menos mais duas horas e meia de transporte público, comecei a me sentir inseguro em relação àquilo que falava em sala de aula. Numa das aulas que ministrei, num dia de intenso calor, fiz uma análise sintática de uma frase erroneamente, e tive de mandar um e-mail para a sala depois, desculpando-me pela falha. Mais tarde, vim a descobrir que a análise não estava errada, mas a nomenclatura havia-me fugido da mente em função do desgaste, e isso me confundira. Noutros momentos, entrei em sala de aula tão extenuado que trocava palavras, tinha lapsos de memória e fazia um esforço descomunal para não perder o fio da meada nas explanações.
Isso não são "ossos do ofício"; isso é falta de valorização. O trabalho do professor exige planejamento e replanejamento constantes. Não é possível lecionar sem preparar muito bem as aulas. Mas nós, professores, não podemos abrir mão de nossos cargos e nossos complementos de renda, simplesmente porque, se o fizéssemos, não teríamos dinheiro para investir em nós mesmos. Alguns acham que o ofício é necessariamente franciscano e sacerdotal; creio, entretanto, que a maioria de nós tem perfeita consciência de que, tanto quanto qualquer outro cidadão (até mais, em alguns aspectos), o professor precisa de conforto material, espaço para desenvolvimento intelectual, atualização, lazer. Um apartamento (não precisa ser de alto padrão), um carro (não precisa ser o do ano), uma poupança (não precisa ser de milhões), acesso ao que se produz de mais relevante na sua área do conhecimento, tudo isso é justo que um professor possa um dia ter, dada sua importância vital para o desenvolvimento da sociedade. No entanto, o valor que recebemos por nosso trabalho está aquém dessas necessidades, o que nos obriga a sacrificar um pouco do tempo de "reabastecimento" para podermos nos estruturar economicamente. Isso, queiramos ou não, acaba se refletindo na qualidade de nossas vidas, e também na qualidade de nossas aulas.
Há cerca de dez dias, comentei esse sentimento com meus alunos, que foram muito compreensivos e compassivos. Acredito estar desempenhando decentemente meu papel, até porque eles nunca reclamaram de minha atuação. Incomoda-me, entretanto, a facilidade com que esses mesmos alunos reconhecem meus sinais de cansaço e minha menor disponibilidade. Eu sei e eles sabem que eu poderia fazer melhor, não no sentido de ter maior dedicação, mas no de possuir melhor condicionamento físico e mental, para que a essa dedicação pudesse produzir melhores resultados.
Creio que um grande passo para solucionar esse problema quase crônico da profissão seria garantir, nas jornadas dos professores, quantidade razoável de horas-aula remuneradas voltadas para a preparação do material e para a pesquisa. A jornada de 40 horas em dedicação exclusiva, preconizada pelo MEC como ideal para o trabalho do docente universitário, parece-me um importante passo nesse sentido. Ela prevê espaços para pesquisa, elaboração de atividades e atendimento de alunos, permitindo aos professores "respirarem" um pouco entre as atuações em sala de aula; aponta, assim, para um reconhecimento de que o professor é, antes de tudo, um intelectual, um produtor de conhecimento e um crítico da literatura especializada de sua área. Infelizmente, essa jornada ainda é um privilégio de poucos, entre os quais não me incluo. Espero que o empenho adicional desta fase de minha carreira possa me render, futuramente, o direito a esse "privilégio"; no fundo, quero ser mais otimista: espero que eu não tenha, no futuro, de chamar esse direito de privilégio.